segunda-feira, 3 de junho de 2024

‘Dói não conseguir levar notícias boas sobre o clima’

Por Mariana Vick

 23 de março: Dia Mundial da Meteorologia - Olhar Digital

Estael Sias, meteorologista há 20 anos e sócia-diretora da empresa MetSul, fala ao ‘Nexo’ sobre as mudanças no trabalho e no cotidiano durante o desastre no Rio Grande do Sul

“Às vezes não consigo dizer o que estou sentindo”, disse Estael Sias ao Nexo em 24 de maio, após mais um dia de previsão do tempo no desastre que atinge o Rio Grande do Sul. Meteorologista com mais de 20 anos de carreira, a sócia-diretora da empresa MetSul e moradora de Canoas falou sobre a experiência inédita de ser vítima de uma tragédia com a qual lida no trabalho. “Não sei quando vou poder voltar para casa”, afirmou. 

Formada em meteorologia pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e mestre pela USP (Universidade de São Paulo) na área de tempestades, Sias deixou sua casa para se abrigar com amigos no dia 3 de maio. Não interrompeu a previsão do tempo nesse período. “Muitas vezes querem que eu tenha uma boa notícia, mas está difícil.”

Sias é a primeira entrevistada da cobertura especial que o Nexo faz para dar espaço a profissionais que estão na linha de frente da tragédia no Rio Grande do Sul. A iniciativa traz entrevistas com representantes de diferentes categorias que contam quais são os desafios de trabalhar neste momento e como o desastre os afetou. Mostra também o que os motiva num cenário de tantas adversidades.

O que te motivou a ser meteorologista?

ESTAEL SIAS Eu morava no interior do Rio Grande do Sul e tinha vontade de fazer algo diferente, desafiador. Uma professora com quem conversava no ensino médio me falou de meteorologia, disse que achava que tinha a ver comigo e era uma profissão do futuro. Eu não tinha condições de fazer uma faculdade particular. Na época, tinha vontade de fazer jornalismo, mas em Pelotas só tinha a [Universidade] Católica [de Pelotas]. Me dava muito bem com matemática, física, a área de exatas, e resolvi fazer meteorologia. Desde criança, tive curiosidade pelos fenômenos. Minha mãe tinha muito medo de tempestade, não deixava a gente olhar na janela, e eu tinha muita curiosidade de ver os raios, as tempestades. Sempre gostei de admirar o formato das nuvens. Tinha muita curiosidade sobre como esses fenômenos se formavam. Acabou juntando de tudo um pouco. 

Quais são os desafios de estar na linha de frente neste momento, cobrindo a tragédia no Rio Grande do Sul? 

ESTAEL SIAS São vários desafios, mas acredito que o maior deles é a responsabilidade no que a gente fala. A gente sabia lá no início que esse seria um período muito prolongado de alertas, de reanálise, de reavaliações, que seria um período em que o cenário iria se agravar cada vez mais e que, na medida em que as coisas fossem acontecendo, a gente iria enxergar a dimensão que tudo isso iria tomar — por conhecer nosso estado, conhecer a dinâmica dos rios, conhecer as áreas vulneráveis, os fenômenos que estavam se sucedendo, os volumes de precipitação que estavam se acumulando. 

Junto isso ao cansaço. Saí de casa no dia 3 de maio. Comecei a trabalhar num ambiente completamente fora do meu, com a família desalojada, na casa de amigos. Além da questão profissional — que por si só já seria um enorme desafio, de passar muitas madrugadas em claro, monitorando, acompanhando —, tive um desafio pessoal se somando a essa condição. E saber, ter consciência, por trabalhar com isso, que iria e vai demorar muito para eu retornar para casa… Foram vários aspectos se somando. 

[Outro desafio foi] a dificuldade de prognóstico, às vezes até de convencimento das pessoas da gravidade da situação, de que seria algo inédito, excepcional, muito fora daquilo com que a gente está acostumado a lidar. Na medida em que as coisas foram acontecendo, as pessoas foram se dando conta, e a gente também foi percebendo que tem domínio limitado da condição atmosférica, da chuva, da dinâmica dos rios. Entra aí também a questão de estrutura de contenção de enchentes, que foi testada no seu limite, e em muitas áreas acabou cedendo, mas, falando da condição atmosférica, isso nos trouxe uma ansiedade gigantesca — e aquele senso de responsabilidade, de ser muito claro, muito objetivo, apesar de sentir na pele a importância de cada palavra sendo dita, de cada alerta trazendo mais medo nas pessoas, insegurança — uma insegurança que a gente também tinha, porque tinha que sair de casa e, indo para locais que a gente não conhecia, [pensava] será que era seguro o suficiente para eu estar com a minha família? 

Essa cobertura é algo que vai ficar na minha memória, dos meus filhos e da minha família. Certamente será uma história que vou contar para os meus netos e bisnetos. Meus filhos vão contar para seus filhos e netos. Porque realmente foi uma experiência, do ponto de vista profissional e pessoal, muito forte. E ainda tá sendo, né? Ainda não chegou o fim. Não sei quando eu vou poder voltar para casa. 

Como o desastre afetou seu cotidiano? Tem sido possível separar trabalho e vida pessoal num momento como este?

ESTAEL SIAS Na maior parte do tempo, internamente, separo. Parece que viro uma chave. Quando tenho que trabalhar, consigo me desligar dos problemas. Já trabalho de casa há um tempo, então consigo lidar com o ambiente familiar e pessoal misturado com o profissional. Às vezes tenho a impressão, falando abertamente, de que tudo por que passei nestes últimos anos, todas as experiências que tive, me prepararam para este momento. Acho que é um momento emblemático na minha carreira, na minha profissão, do ponto de vista de alerta e principalmente porque a gente nunca, jamais, imaginava ser vítima de todo esse contexto de desastre e emergência climática.

Viro uma chave. Quando tenho que trabalhar, me concentro, trabalho, trago as informações. Me senti vulnerável em alguns momentos na TV ao vivo. Apresento o jornal local e, em alguns momentos, vendo principalmente imagens da minha cidade, do meu bairro e de pessoas que conhecia, acabei chorando ao vivo. Faço um esforço enorme para isso não acontecer, mas é difícil. Em geral, tenho alguma forma, um mecanismo de proteção — não sei explicar —, mas por muitos dias chorei, por muitos dias terminei de trabalhar, exausta, e, tendo um tempo para conversar com os amigos, muitas vezes eles queriam que eu tivesse alguma boa notícia — e está difícil ter uma boa notícia, porque o tempo não tem colaborado. Não conseguir levar notícias boas dói. 

Muitas pessoas que não conheço me procuram nas redes sociais. É um assédio gigantesco de pessoas preocupadas, solidárias, um apoio, uma uma corrente do bem, de amor, de carinho, de força gigantesca. Mas em muitos momentos fiquei vulnerável, de ver meus filhos ansiosos, fora da rotina deles, perguntando quando a gente vai voltar. É uma pergunta que não sei responder. 

Foi e está sendo um grande desafio. Quando tudo isso passar e a gente entrar na  normalidade climática — não digo nem da minha vida pessoal, de voltar para casa —, acho que toda essa emoção que eu estou segurando e escondendo em algum lugar vai aparecer. Por enquanto, tento me manter forte — até para poder trabalhar, que é uma forma que eu consigo de fato ajudar e colaborar em todo esse processo.

O que mais te surpreendeu nas últimas semanas? Há algo que a sra. nunca havia visto nos seus anos de trabalho? 

ESTAEL SIAS O que é, de certa forma, surpreendente — mas não digo que é surpresa, porque a gente está prevendo e acompanhando — é que é um período muito longo de tragédias sucessivas, que se somam. É uma reação em cadeia. Imaginar que 90% do estado teve situações de tempestade, enxurrada, volume de chuva, inundação, alagamento — múltiplos fenômenos — por duas, três, quatro semanas sucessivas… O período é muito prolongado. Está sendo muito exaustivo, e às vezes chega a ser inacreditável. A gente olha os modelos e de novo tem chuva, de novo vai vir temporal. É assustador olhar para tudo isso, entender — como já trabalhei na Defesa Civil por sete anos — a vulnerabilidade das áreas e ver que vai vir mais e mais chuva, num cenário de total colapso de estruturas de contenção. A chuva não cessa — ela dá umas tréguas, mas volta. 

Acho que essa é a maior dificuldade. Isso vai trazendo uma carga emocional, de ansiedade, de angústia. Às vezes não consigo dizer exatamente o que estou sentindo. É uma dor, uma dor grande de olhar pra minha casa, as imagens que recebo, meu condomínio, minha cidade, Canoas, em que escolhi morar com a minha família — minha filha nasceu lá, meu filho foi morar lá com 2 anos, então é muito difícil olhar pra minha cidade, uma cidade em que invisto minha vida, meu convívio, e vê-la destruída daquele jeito. É desolador.

O que tem te motivado agora? Qual é a importância dos profissionais de meteorologia neste momento? 

ESTAEL SIAS Desde o ano passado, me recordo de ter comentado que, além de um Super El Niño [fenômeno climático presente desde a metade de 2023], tínhamos todos os oceanos do planeta mais quentes que o normal — algo sem precedentes, que poderia suceder eventos também sem precedentes. Entrávamos em terreno desconhecido de projeção climática e de tempo, então deveríamos estar preparados para o pior e esperar o melhor. Lembro que em vários momentos falei essa frase. E acredito realmente — acredito que todo o trabalho de anos que a MetSul tem feito das mudanças climáticas, tentando mostrar estatisticamente os eventos que acontecem pelo mundo, acredito que tudo isso foi plantando uma semente, semeando algo em terreno muitas vezes infértil, mas por vezes fértil. O negacionismo ainda é forte em uma parte da sociedade brasileira, mas acredito que tudo isso, de alguma forma, foi preparando as pessoas para este momento. 

Muitas pessoas talvez nem acreditassem na dimensão do que ia acontecer, mas tiveram respeito, tomaram atitude, se anteciparam, saíram de casa. Acredito que, se não fosse o trabalho incansável de meteorologistas avisando desde abril que a virada do mês seria de um evento excepcional de chuva — e, na medida em que as coisas foram acontecendo, a gente foi ampliando esses alertas, aumentando o tom —, acredito que, se não fosse isso, teríamos inevitavelmente um número de óbitos maior. 

Foram muitas as pessoas que me trouxeram informações, agradecimentos, falando que tinham evitado sair ou que tinham saído de casa mais cedo porque viram nossos alertas e confiaram nas nossas informações. É isso que motiva. Por essas pessoas e também por aquelas que acabaram não levando a sério, mas que, infelizmente, por uma situação terrível, a partir de agora vão procurar se informar melhor, entender melhor de meteorologia, buscar informações confiáveis — porque infelizmente a as redes têm muito lixo, muita gente mais interessada em caçar clique, em monetizar seu conteúdo… É uma virada de chave. 

É inimaginável a dor de tantas pessoas, de tantas famílias, que perderam tantas coisas e que levarão talvez anos pra conseguir recuperar ou ter algo perto de uma normalidade. Esse cenário traumático certamente vai nos fazer ter uma mudança de postura como sociedade, exigindo do poder público também uma mudança de posicionamento, porque não dá mais para aceitar não estar preparado para essas situações. É claro que essa situação foi extraordinária. 

Acredito que houve um esforço gigantesco para atender [à população] e para alertar da melhor forma possível. Os municípios fizeram um esforço absurdo, e muitos deles, também tendo suas tragédias pessoais, não deixaram de trabalhar incansavelmente. A Defesa Civil, os bombeiros, a Polícia Militar, muitos gestores públicos — não teve classe social que não foi impactada. Todos foram. Tudo virou área de risco. Alguma mudança vai ter que acontecer depois disso. E a gente vai ter que repensar — repensar nossa cidade, nossa sociedade, o plano diretor, o licenciamento ambiental… 

Tem que haver uma reforma importante, porque os eventos vão continuar acontecendo, a natureza vai continuar cada vez mais severa, e o que a sociedade pode fazer pela sua sobrevivência é buscar se preparar com tecnologias, sistemas de alerta mais eficientes, Não só a Defesa Civil tem que estar bem estruturada, mas a população tem que estar melhor preparada e saber reagir, ter respeito pelos alertas.

É muito difícil sair de casa. Tem o medo de ser saqueado — no meu condomínio estamos pagando segurança particular há semanas. Existem várias questões que vão precisar ser abordadas, questionadas, reavaliadas, e o meteorologista é fundamental em todos esses processos. Em cenário de desastre, a experiência é fundamental, seja da Defesa Civil, seja do meteorologista, para ele ter previsões que vão de fato auxiliar nas tomadas de decisões, que vão decidir vidas — que são o principal de tudo. É isso que me motiva. Toda a experiência que tive até hoje, de décadas de previsão do tempo, me prepararam para este momento. 

Sinto que a MetSul conseguiu alertar dentro de que era possível sobre os fenômenos e modelos atmosféricos. Está tudo documentado. Desde o dia 25 [de abril], começamos a avisar sobre o que iria acontecer. E diariamente a gente não deixou de informar, de alertar, mesmo todos nós sendo afetados, mesmo a gente saindo da nossa zona de conforto, do nosso ambiente natural de trabalho, muitas vezes sem ter a roupa e o calçado adequado — situações que um dia, talvez, a gente vá contar os bastidores —, ainda assim a gente seguiu firme, trabalhando dia e noite, passando muitas noites em claro, exaustos, mas cumprindo nossa missão. Nosso trabalho é uma missão que muitas vezes as pessoas não entendem. Acham que é hobby, que é achismo, mas não — é um trabalho técnico, científico e de valor cada vez maior na sociedade. Me orgulho muito desse trabalho e da escolha que fiz com 17 anos. 

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/profissoes/2024/05/31/estael-sias-meteorologista-linha-de-frente-rio-grande-do-sul?utm_medium=email&utm_campaign=03062024_a_nexo&utm_content=03062024_a_nexo+CID_63aa5ffa14a645047f2d47b405744342&utm_source=Email%20CM&utm_term=Di%20no%20conseguir%20levar%20notcias%20boas%20sobre%20o%20clima

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