domingo, 23 de junho de 2024

Maria João Heitor. Em Portugal, “uma em cada quatro pessoas sofre de doença mental. Não o podemos ignorar

Ana Mafalda Inácio

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O suicídio é a segunda causa de morte entre os jovens dos 15 aos 29 anos no nosso país. A psiquiatra e professora na Faculdade de Medicina, da Universidade Católica Portuguesa diz que os “números devem preocupar-nos”, porque há “aumento de certos comportamentos”.

Portugal é dos países da União Europeia com uma prevalência elevada nas doenças do foro psiquiátrico, mas qual é a dimensão?
Portugal tem cerca de 23% de prevalência anual de perturbações psiquiátricas, na idade adulta, uma das mais elevadas da Europa, de facto. Ou seja, quase um em cada quatro pessoas sofre de doença mental. O suicídio é a segunda causa de morte entre os jovens dos 15 aos 29 anos. São números que nos devem preocupar. E, durante a pandemia, mais de um quarto dos indivíduos da população geral adulta e cerca de metade dos profissionais de saúde reportaram sintomas de sofrimento psicológico com queixas compatíveis com ansiedade e depressão moderadas a graves, e perturbação de stress pós-traumático. Na população em geral, foram sobretudo mulheres, jovens adultos entre os 18 e os 29 anos, desempregados e indivíduos com mais baixo rendimento que reportaram também estes sintomas. E não podemos ficar indiferentes face ao aumento da ansiedade, depressão, perturbação de stress pós-traumático, burnout, comportamentos aditivos e risco de suicídio.

O que é preciso fazer para mudar esta realidade?
Temos de atuar na comunidade, na informação e sensibilização do público em geral, visando uma maior literacia. Só assim, o sofrimento psicológico e os sintomas e sinais precoces de doença mental poderão ser mais facilmente detetados e as pessoas adequadamente encaminhadas, sem medo do estigma e da discriminação. A saúde mental não é apenas a ausência de doença, é, sim, um estado de bem-estar global. Há que identificar fatores de proteção e eventual risco, para definirmos medidas de mitigação e recomendações. A manutenção de estilos de vida saudáveis e atividades de lazer, o apoio sociofamiliar e a elevada resiliência são fatores protetores. Os preditores de sofrimento psicológico incluem ser mulher e haver dificuldades na conciliação entre trabalho e família.

Mas, concretamente, o que deve ser feito, nalgumas áreas?
Temos de investir em todos os setores da sociedade e a múltiplos níveis, porque há setores da sociedade que estão em particular risco. A título de exemplo, e por que os cidadãos em idade ativa passam um terço da sua vida no trabalho, é, de facto, fundamental investir na liderança das empresas e outras organizações, informar e formar as equipas no local de trabalho, falar abertamente sobre como evitar fatores de risco e promover fatores de proteção, tal como uma adequada conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar. A nível mais individual, considero que se devem implementar medidas que passem por promover hábitos e estilos de vida saudáveis, com higiene do sono, atividade física regular, e atenção aos consumos de substâncias (álcool, tabaco, café e substâncias ilícitas) e às dependências comportamentais.

E relativamente aos serviços de saúde, o que é preciso fazer?
É fundamental a distribuição adequada de recursos multidisciplinares nos serviços de saúde e na comunidade, bem como o alargamento da rede nacional de cuidados continuados integrados de saúde mental para os doentes mais graves. A agilização de mecanismos de financiamento e de contratação de recursos humanos no Serviço Nacional de Saúde, e o uso de tecnologias digitais complementares às habituais modalidades nos cuidados de saúde são igualmente medidas necessárias para podermos fazer frente ao aumento da prevalência dessas doenças psiquiátricas, nomeadamente perturbações depressivas e perturbações da ansiedade.


Qual a importância da saúde mental e do bem-estar das pessoas na sociedade em geral?
A saúde mental é um determinante major para uma boa saúde. Não há saúde sem saúde mental. Numa época pós covid, de guerra, crise económica, ameaças ambientais e climáticas, vivemos uma fase de alarme social, com consequências na saúde mental, em particular em grupos vulneráveis, como mulheres, jovens, idosos, pessoas com patologias crónicas, migrantes, refugiados e sem-abrigo.

Há doentes mais jovens com necessidade de acompanhamento?
O que posso dizer é que cerca de metade de todas as doenças mentais emergem antes dos 14 anos e 75% têm início até aos 25. Como tal, é fundamental o investimento, quer na infância e na adolescência, quer na fase de transição para a idade adulta, em particular em medidas de promoção da saúde mental e prevenção da doença mental, e de tratamento quando o problema já está instalado.

As escolas e outras entidades deveriam ter um papel mais ativo na prevenção destas doenças?
Em primeiro lugar, há que identificar fatores de proteção e eventual risco, para definirmos medidas de mitigação e recomendações ao nível biopsicossocial. Uma vinculação precoce segura e a promoção da saúde mental têm de começar a ser trabalhadas desde a infância, nas creches, nos jardins de infância e depois nas escolas, em articulação com as famílias.

Fala-se muito na integração dos doentes mentais crónicos na sociedade. Isso é possível?
Assim como outras pessoas com doenças crónicas estão inseridas na sociedade, também as pessoas com doença mental grave, com cronicidade, podem estar integradas, mas para isso, há que investir em programas de reabilitação psicossocial e mobilizar recursos comunitários de habitação, emprego, de lazer e outros, além de respostas de saúde atempadas e adequadas às necessidades.

Considera que ainda existe um estigma associado à doença mental. De que forma se pode ultrapassá-lo ou diminui-lo?
Falar sobre doença mental é ter de enfrentar estigmas. Há um medo de repercussões negativas, da preocupação e vergonha de que seja visto, pelos outros, como um “sinal de fraqueza”. Muitas vezes é o próprio que tem dificuldade em aceitar o problema e tende a esconder até da família, numa autoestigmatização, outras vezes existe o estigma comunitário. Estas atitudes impedem a procura atempada de ajuda. O estigma é um dos maiores obstáculos para o acesso aos cuidados de psiquiatria e saúde mental. A informação sobre o que é a doença mental e a literacia em saúde mental contribuem para que as pessoas doentes e as suas famílias se sintam menos perdidas, e saibam onde procurar ajuda. Quando figuras públicas dão a cara e falam ou escrevem sobre a própria experiência de doença mental, isso ajuda a desdramatizar e faz com que as outras pessoas que também têm uma doença mental consigam partilhar as suas experiências e recorram aos serviços de saúde, públicos ou privados, como em qualquer outra doença.

Maria João Heitor tambémé consultora do Grupo Luz Saúde para a área da Saúde Mental e coordenou o trabalho que levou à criação do primeiro serviço de internamento no setor privado na re DR
 
Fonte:  https://www.dn.pt/5826357076/maria-joao-heitor-em-portugal-uma-em-cada-quatro-pessoas-sofre-de-doenca-mental-nao-o-podemos-ignorar/

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