quinta-feira, 27 de junho de 2024

Uma noite no cemitério da Consolação

 Jéssica Moreira* 

Homem com megafone em caminhada noturna pelo Cemitério da Consolação

 Thiago de Souza durante caminhada pelo Cemitério da Consolação - Jéssica Moreira/Jéssica Moreira 

 

Projeto "O que te assombra?" revela histórias em caminhadas por cemitérios

São Paulo (SP)

Sábado de lua cheia. Noite iluminada. Cenário perfeito para…? Uma caminhada noturna no Cemitério da Consolação (SP), ora!

Convidei diversos amigos e amigas. Alguns estranharam. "Deus me livre". "Que medo". "Misericódia". Eu acho graça. Venho de Perus (SP), onde o Cemitério Dom Bosco é carregado de memórias da Ditadura Civil-Militar. Meu tio, ex-sepultador, morou em frente à necrópole peruense por muitos anos. A expressão "ir ao cemitério" era sinônimo de passeio com meu pai – que pelo menos uma segunda-feira de cada mês acendia velas às almas.

Meu marido e duas amigas toparam – quem tem amigo tem tudo. Tamanha foi minha surpresa ao descobrir que, além de mim, mais de 100 pessoas também nutrem esse gosto – digamos peculiar – por cemitérios e ouviam atentas à fala de abertura do nosso mediador, Thiago de Souza.

Em um megafone branco com uma luz vermelha na ponta, as falas de Thiago vinham acompanhadas de um reflexo também vermelho no rosto, em meio à escuridão do cemitério naquela noite. Antes de sair para a caminhada, alguns avisos importantes. "Regra um: nunca mate uma barata". Vai que alguém tropeça em um túmulo, não é mesmo? Regra dois: "nunca pise nos jazigos dos túmulos". Se eu fosse dar uma dica, diria: vá de calças compridas e sapatos fechados para não dar sorte para nenhuma barata.

Criador do projeto "O Que Te Assombra ?", Thiago é um advogado, compositor e roteirista curioso pelas memórias e histórias que rondam a cidade. O projeto nasceu em 2021, em meio à pandemia de Covid-19. "Eu tinha perdido uma tia e aquilo me mobilizou muito. Tinha pais idosos e duas filhas pequenas. Estava morrendo de medo de morrer mesmo. Procurei um jeito de dialogar e me conciliar com o tema da morte e das coisas inexplicáveis que estavam cercando a gente", conta.

Inspirado no livro "Assombrações do Recife Velho", de Gilberto Freyre, Thiago e outros amigos organizaram um acervo na cidade de Campinas, interior de SP. "Inicialmente, eram pesquisas na internet. Depois, fiz pesquisa de campo, e quando conseguimos voltar a circular, fizemos dois passeios em Campinas, em 2022".

Passados quase dois anos, o "O que te Assombra?" já realizou diversas caminhadas ressuscitando memórias locais. Seja em São Paulo ou outros estados pelo país, Thiago perdeu a conta de quantas necrópoles já conheceu. Somando todas as atividades, o projeto já realizou caminhadas com mais de 7 mil pessoas, tanto em cemitérios, como pelas ruas e esquinas das cidades

‘Consolação e suas vozes’

Mais antigo cemitério da capital paulista em funcionamento, o Consolação foi inaugurado oficialmente em 15 de agosto de 1858. Um fato curioso é que a Marquesa de Santos, conhecida popularmente como a padroeira das prostitutas, doou recursos para a construção da Capela do Cemitério e mais 4 contos de réis. "Dizem que ela é uma fantasma e sempre aparece por aqui".

A caminhada é cheia desses momentos de humor e graça, que Thiago chama de "momento fofoca" do tour, já que além do tom sério das explicações e contextos históricos, ele traz uma pitada de informações adicionais que fazem até o mais medroso dos visitantes cair na risada. Pessoalmente, acredito ser importante desmistificar o tema e mostrar que falar sobre morte também pode ser cômico.

Em meio aos prédios pontiagudos do centro de São Paulo, o Cemitério da Consolação impera, dando um respiro à paisagem com esculturas, árvores e edificações rebuscadas. O mausoléu da milionária Família Matarazzo — ou, melhor, do "tataravô do Supla" — deve ser maior do que a minha casa, com certeza. O túmulo do presidente Campos Salles parece um anfiteatro, com colunas que relembram a arquitetura antiga.

Esculturas do Cemitério da Consolação
Esculturas do Cemitério da Consolação - Jéssica Moreira/Jéssica Moreira

São vários os túmulos estilizados, seja com esculturas de Marias erguendo as mãos ao alto ou imagens que contam histórias da pessoa morta, como uma escultura que se transforma em um ponto de interrogação quando viramos a cabeça para interpretá-la. "As artes estão representadas tanto no inestimável valor dos monumentos tumulares dispostos em seus domínios, a começar pelo portal de entrada projetado pelo imenso Ramos de Azevedo – também sepultado no Cemitério da Consolação – como em muitos outros personagens", explica Thiago.

Alguns chamam este e outros cemitérios de "museu a céu aberto". Thiago, no entanto, vai além, e reivindica a importância do lugar do cemitério na cidade por ele mesmo. "Este importante aparelho público, além de suas aplicações sanitárias, traz na essência verdadeira vocação cívico/democrática em várias vertentes. Em suas raízes, é possível verificar os pulsos políticos, sociais, artísticos, arquitetônicos, religiosos e místicos".

"Muita gente se interessa pelas histórias de fantasma. Mas eu diria que o próprio cemitério tem uma mística muito particular. Acho que o sucesso [das caminhadas] se dá porque há um interesse represado sobre o tema da morte em geral. Sinto que as pessoas não conseguiram viver o luto da pandemia, por isso tem mais gente interessada no tema", tenta explicar por que 100 pessoas caminham por ali num sábado à noite.

As figuras ilustres do Consolação

É aqui que moram os restos mortais de figuras conhecidas de nossa história. Para Thiago, o "morador" mais ilustre desta necrópole é o advogado, poeta, escritor e abolicionista Luiz Gama. Confesso, envergonhada, que não sabia. Pode parecer bobeira para alguns, mas falar de seus feitos em frente ao seu túmulo é como evocar toda a força e luta contra a escravidão em todo o país. Gama é o patrono da abolição no Brasil.

"No dia de seu sepultamento, uma multidão de 4 mil pessoas fez um cortejo por São Paulo, do Brás até o Cemitério da Consolação. Pensando que a capital paulista tinha cerca de 40 mil habitantes naquela época, é possível imaginar como ele era querido e respeitado", reitera Thiago.

Túmulo do abolicionista Luiz Gama
Túmulo do abolicionista Luiz Gama - Jéssica Moreira

Além de Gama, outras figuras amplamente divulgadas nos livros de História também estão no Consolação. É o caso dos integrantes do "grupo dos cinco" da Semana de Arte Moderna de 1922: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Em meio a cruzes e imagens, o cemitério cumpre seu papel pedagógico. É possível até mesmo imaginar aulas inteiras de História e Artes no local. Talvez, os estudantes aprendessem muito mais do que dentro dos modelos pré-formatados que engessam nossa inventividade.

Cemitérios e memória da cidade

"Os cemitérios carregam muito da memória das cidades". Mesmo relembrando os grandes nomes, Thiago é, antes de tudo, um contador assíduo de causos de assombrações que atravessam ruas e viram a catraca do ônibus.

Cético e respeitoso em relação às histórias, Thiago vê todas elas — dos ricos aos pobres; dos populares aos anônimos — como patrimônio imaterial da cidade. "Eu não gosto da espetacularização da assombração. Por que tem que ser uma assombração ruim? Por que não falamos da assombração que aparece de dia?", reflete.

Isso me fez lembrar do livro "O Corpo Encantado das Ruas", de Luiz Antônio Simas, em que ele mostra como os orixás estão presentes no cotidiano. "As ruas são de Exu em dias de festa e feira, dos malandros e pombagiras quando os homens e mulheres vadeiam e dos ibêjis quando as crianças brincam."

Depois da caminhada de sábado, diria que as ruas são também das assombrações. Ou, então, de gente que morreu, mas continua no imaginário popular dos cemitérios e das regiões onde estão enterradas.

É o caso dos chamados Milagreiros e Milagreiras de Cemitérios. Crianças, mulheres, idosos: gente que viveu alguma morte trágica e, ainda hoje, centenas continuam indo aos seus túmulos em busca de graças e milagres.

"Milagreiros e Milagreiras de Cemitério eclodem de um fenômeno devocional que possui muitas características sociais, ritualísticas, mas, fundamentalmente regionais. E não tenho qualquer reserva em dizer que a devoção atribuída a esta categoria devocional faz parte do patrimônio imaterial das cidades", conta o mediador Thiago.

Cultuado e conhecido em todo o país, o túmulo do milagreiro Antoninho da Rocha Marmo é coberto de placas de agradecimento. Gente que conseguiu passar em provas, livrou-se de doenças, e tantas outras placas agradecendo o garoto que morreu ainda jovem. Thiago resume essa história:

"O menino milagreiro, que tinha como brincadeira favorita ministrar missas católicas no quintal de sua casa, previu a data de sua morte, que ocorreu em 21 de dezembro de 1930, depois de ser acometido de tuberculose. Em 19 de outubro de 2021 seus restos mortais foram exumados e levados do Cemitério da Consolação para a Cidade de São José dos Campos, onde repousa atualmente sob o altar da Capela de Nossa Senhora da Saúde, situada no instituto hospitalar que leva seu nome". A Prefeitura de São Paulo reconhece – por meio de edital – 12 desses milagreiros espalhados pela cidade, o que garante minimamente a proteção e manutenção de seus túmulos. Thiago, porém, descobriu outros milagreiros pelo estado, totalizando 23. Em 2023, realizou pedido formal de inclusão dessa descoberta, mas sem sucesso.

"Eu pedi a inclusão desses "novos" milagreiros no rol a ser protegido. Como não tivemos resposta, escrevi um livro sobre essa busca dos milagreiros nos cemitérios públicos de SP", conta. O livro, intitulado 'Milagreiros de Cemitério' será lançado em breve pela Pontes Editores e Thiago promete que será em uma necrópole, hein?

Se a curiosidade bater por aí, você pode ir ao cemitério mais próximo e, para quem acredita, pedir a intercessão desses milagreiros na graça que deseja alcançar. Eu mesma já pedi a intercessão à Milagreira Maria Judith de Barros, também "moradora" do Consolação.

Placas de agradecimento no túmulo de Maria Judith de Barros, no Cemitério da Consolação
Placas de agradecimento no túmulo de Maria Judith de Barros, no Cemitério da Consolação - Fabrício Lobel/Folhapress

Para quem gosta de acompanhar "true crime", a caminhada também entrega tudo. Afinal, os crimes de verdade também são carregados de místicas e memórias que contam sobre um determinado período da cidade. É o caso do túmulo da Família Dos Reis, que nos remete imediatamente ao "Crime do Castelinho da Rua Apa", próximo ao Elevado Presidente João Goulart, o "Minhocão", em SP.

A mãe, Maria Cândida Guimarães dos Reis, 73, e os dois filhos, Armando César dos Reis e Álvaro dos Reis, foram encontrados mortos. Algumas histórias apontam que Álvaro matou a mãe e o irmão e depois se suicidou. Mas as circunstâncias do crime nunca foram esclarecidas. Desde 1996, a ONG Clube de Mães tem autorização para utilizar o local.

Mas não só de histórias de terror de filme vivem os cemitérios. E nesse tour há espaço, inclusive, para momentos de fofura. Com certeza, o momento mais fofo de nossa visita foi quando conhecemos o túmulo do Spike, o primeiro cachorro – e único até hoje – a ser enterrado neste cemitério.

Túmulo do Cão Spike, no Cemitério da Consolação
Túmulo do Cão Spike, no Cemitério da Consolação - Jéssica Moreira

Ainda em construção, a placa de Spike mostra o carinho dos trabalhadores cemiteriais com o bichinho: "amigo fiel, obrigado pela alegria de cada dia de trabalho juntos. Guardião dos amigos". Abandonado na necrópole, Spike acompanhava os cortejos até o sepultamento. Detalhe: sempre respeitando as famílias, sem nem latir. "Quando o enterro finalmente acontecia, ele deitava sobre o túmulo, quase dizendo ‘podem ir, que agora eu cuido’". Sobre a terra do túmulo de Spike há uma bolinha azul de plástico em sua homenagem. Confesso: pedi para ele interceder pela saúde da Tuca, minha cachorra de três anos.

Passamos por pelo menos 20 jazigos. Cada um com sua história, suas assombrações, lembranças de medos, risos ou fofocas. São trajetórias que ajudam a montar o mosaico que constroi a História de nossa cidade, só que todas reunidas neste local, ora abandonado pelo poder público, ora visto apenas como um espaço de medo e dor.

É claro que esses sentimentos estão, também, impregnados em cada quadra, cada árvore, cada túmulo de um cemitério. Mas, antes de tudo, esses lugares marcam a concretude de histórias que existiram e continuam importantes para toda a sociedade. Voltar ao passado sempre nos ajuda a conhecer o presente e projetar o futuro. Como me disse a psicanalista Ingrid Yurie, que também acompanhou a caminhada: "agora, não acho mais o cemitério um lugar assustador. Acho mais um livro de pedras cheio de curiosidades."
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O próximo passeio será em Campinas, em datas ainda a serem confirmadas, mas prometem ser à meia noite. Você pode conferir na página do "O que te assombra?".

* Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/blogs/morte-sem-tabu/2024/06/uma-noite-no-cemiterio-da-consolacao.shtml

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