segunda-feira, 10 de junho de 2024

A 'cabeça aberta' dos modernos contempla o nada

 Luiz Felipe Pondé*

Título: Sabedoria níblica antiga. A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com lápis grafite 6B sobre papel em acabamento estilizado, com traços e texturas, depois foi escaneada e aplicada sobre fundo papel craft e aplicados tons leves de amarelo e azul. Na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, a ilustração apresenta uma figura de um sábio antigo com cabelos e barba longos, sentado olhando para baixo, entre ondas, nuvens e ornamentos. A sua frente, um grande livro aberto, ao lado, uma grande ampulheta e dois pássaros voando. No  canto superior, à direita, entre nuvens, uma figura com auréola nas costas e um dos braços parece apontar a figura central.
Ilustração de Cammarota - Folhapress

No século 21, a sabedoria dos ancestrais foi substituída pelo coach e pela miséria das celebridades nas redes sociais

São quatro os livros que compõem a sabedoria israelita antiga. A tradição remete a autoria ao rei Salomão, filho de David, conhecido por sua sabedoria. Provavelmente, Salomão viveu e reinou entre os anos 900 e 980 antes de Cristo.

Os estudiosos do texto hebraico antigo —o "Velho Testamento"— e de arqueologia bíblica, põem em dúvida a autoria de Salomão. Para nós por aqui, essa questão não importa.

Importam as diferentes formas de sabedoria que cada um dos textos carrega, compondo um processo espiritual semelhante a uma peregrinação em direção ao conhecimento direto de Deus ou, como tanto judeus quanto cristãos chamam, "a experiencia mística". Voltaremos a ela quando chegarmos ao texto que é entendido nesse conjunto como uma descrição desse tipo de experiência, "O Cântico dos Cânticos".

O primeiro é "Provérbios". Vivamos como nossos patriarcas. Trata-se de um conjunto de máximas que remete o leitor, tanto o antigo quanto o atual, à ideia de que existe uma sabedoria típica dos ancestrais hebreus que deveríamos seguir como horizonte moral de comportamento.

Qualquer pessoa razoavelmente culta sabe que essa ideia de sabedoria dos ancestrais não é privilégio dos israelitas antigos. Culturas que atravessam os tempos e têm o luxo de guardar certos preceitos estabelecidos em herança escrita —como é o caso aqui— ou herança oral têm recursos como esse.

A perenidade de uma sabedoria desse tipo é base para as religiões que cultuam os ancestrais. Lembremos que eles nos legaram a vida e o mundo, coisa que não sabemos se conseguiremos fazer para nossos descendentes —aliás, se depender das novas gerações e seu comportamento narcísico, nem descendentes teremos.

O vínculo de respeito à ancestralidade é um dos focos de desprezo por parte da experiência moderna. Esta rompeu com o tecido histórico de experiências que se repetiam infinitamente no tempo porque "tudo mudou".

Nós modernos consideramos tudo o que veio antes de nós mera superstição, ignorância e preconceito. Trevas por oposição à luz que somos nós. No século 21, a sabedoria dos ancestrais foi substituída pelo "coach" e pela miséria das celebridades nas redes sociais. A "cabeça aberta" dos modernos contempla o nada.

O "Eclesiastes" é tomado por muitos como a cosmologia bíblica. O texto descreveria nosso lugar "embaixo do sol", como repete o texto. Dessa forma, embaixo do sol, tudo é vaidade, vão, repetição pura e simples do mesmo vazio de ser.

Somos "um nada" diante de Deus e da criação. Tudo passa e nada permanece. Em nossas vidas, devemos ler o "Eclesiastes" quando temos sucesso em nossos esforços para lembrar, como diria Lutero, que tudo é graça.

A teórica bíblica Erica Brown, em seu "Ecclesiastes and the Search for Meaning", chega a afirmar que o livro carrega um niilismo como forma de atravessamento do efêmero em direção a Deus.

"O livro de Jó" nos lembra, como diz Deus, "onde você estava quando coloquei as estrelas no firmamento?". Não podemos julgar nossa própria virtude. Só Deus é a régua da moral.

O texto é um dos pilares da recusa bíblica da teologia da retribuição. Deus não faz barganha com ninguém. "Sou bom, logo, você, Eterno, me deve..."

O último, "Cântico dos Cânticos", considerado por muitos na tradição judaica como o "santo dos santos" entre os textos do cânone hebraico, narra o encontro direto entre Deus e Israel —para os judeus— e entre Deus e a alma humana— para os cristãos. São Bernardo de Claraval tem comentários belíssimos sobre esse texto.

O importante componente erótico do texto —trata-se de uma narrativa de amor, seus sofrimentos e suas delícias, entre um homem e uma mulher— necessita de um tratamento específico. Mas esse elemento erótico é essencial para dizer que o encontro com Deus pode ser uma experiência de prazer na vida.

Claro, nem toda narrativa mística tem essa conotação. Muitas, aliás, carregam consigo o peso de "uma noite escura da alma", como diria são João da Cruz. "É longo o caminho que leva das trevas à luz", segundo o poeta John Milton.

 *Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP. 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2024/06/a-cabeca-aberta-dos-modernos-contempla-o-nada.shtml

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