sexta-feira, 7 de junho de 2024

“Ritos mortuários: o retorno à terra”.

Artigo de Lorenzo Prezzi*

 Foto: Reerdigung | Reprodução | Settimana News

"A realização de ritos fúnebres nunca é apenas uma questão técnica de custos, eficiência e mercado. É sempre também uma questão religiosa, simbólica e civilizacional".

Segundo ele, "a intolerável violência contra os corpos registrada na guerra russo-ucraniana, nos massacres de civis produzidos pelas tropas russas, na impossibilidade de ligação com os próprios falecidos resultante da migração forçada de armênios de Nagorno Karabakh, na repreensível arrogância para com os doentes e mortos mostrada pelas tropas de Israel (e antes das ações terroristas do Hamas), são sinais dramáticos sobre a necessidade de salvaguardar a dignidade dos cadáveres".

Eis o artigo.

Ao lado do sepultamento no solo e da colocação de urnas após a cremação, surge uma terceira forma de sepultamento: colocar o composto do corpo do falecido de volta à terra. A sua prática, iniciada nos Estados Unidos especificamente para animais de estimação e de companhia, chegou à Europa através de uma startup alemã que reformulou o processo. Chama-se Reerdigung (aqui está o site oficial), “retorno à terra”, que pode ser traduzido como “reumatação”, “retorno ao húmus”. O novo método sugere o neologismo.

Processo inovador e nova palavra

O processo é inovador. O cadáver é colocado em um recipiente denominado “casulo”, uma espécie de banheira feita de plástico reciclado ou aço. O corpo é colocado sobre uma “cama” de trevo, tremoço, alfafa e palha. Os resíduos verdes são umedecidos para estimular os microrganismos já existentes na natureza e parcialmente adicionados.

O recipiente, “o casulo”, fica fechado e lacrado por 40 dias. Tempo suficiente para que os tecidos moles do falecido se transformem em solo, o que, na prática do sepultamento com caixão, levaria cerca de 20 anos. A temperatura interna é mantida em 70 graus.

O “casulo” sofre um movimento ondulatório após ser colocado em um “alvearium”, local que coleta vários “casulos” durante o tempo previsto (40 dias) para obtenção do composto. No entanto, permanecem os ossos e dentes, que passam por um moinho de ossos. O pó granulado obtido nesta etapa é então misturado ao composto.

Tudo o que é retirado do “casulo” é colocado num lençol de linho que é enterrado a algumas dezenas de centímetros de profundidade. Seu conteúdo é rapidamente assimilado pelo solo que o hospeda. A escolha pode recair sobre um cemitério, bem como sobre uma floresta ou um terreno dedicado. A reumatação também pode ser usada para fetos.

Primeiros enterros e primeiros estudos

Todo o processo dispensa o uso de caixão, requer muito menos energia que uma cremação, reduz drasticamente as emissões de CO2 e requer um período mais longo (40 dias) para o processo de luto.

A pequena empresa é dirigida por Paolo Metz e Max Hüsch. Deu-se o nome de Meine Erde (minha terra), iniciando uma fundação, a Reerdigung. Cerca de quinze reumatações já foram realizadas em Schleswig-Holstein (norte da Alemanha), solicitando-se uma avaliação dos vários momentos do processo e, em particular, do sepultamento a um laboratório da Universidade de Leipzig.

Os pesquisadores avaliaram que a transformação do material orgânico do falecido em composto ocorreu de fato em 40 dias e que, pelas amostras colhidas e analisadas no terreno, não é possível reconhecer nenhum DNA. O sinal verde para o estudo, porém, é limitado pela investigação feita em apenas dois sepultamentos.

As críticas

A Associação dos Diretores Funerários Alemães (BDB) e outros especialistas, especialmente na área do direito, são muito críticos.

Em primeiro lugar, há que esclarecer a transparência de todo o processo, pois só assim poderá ser garantida a plena dignidade do falecido. Os vários deslocamentos e movimentos, desde a ondulação do “casulo” às viagens do cadáver, aos movimentos da colmeia ao cemitério, parecem minar o vínculo jurídico da “paz dos mortos”.

Os riscos para os envolvidos na custódia, movimentação e sepultamento ainda não estão esclarecidos. Mesmo que a empresa recuse os cadáveres de pessoas que morreram de doenças infecciosas graves (covid, ebola, vírus de Marburgo ou vírus da Crimeia-Congo), não é certo que o composto no solo não provoque efeitos secundários perigosos.

A suposta redução do consumo de energia não tem em conta a energia necessária para manter a temperatura em torno dos 70 graus do “casulo” na colmeia e a energia necessária para levar os cadáveres ao local de tratamento.

Governos e igrejas

As opiniões dos vários estados alemães (Länder) que gerem os julgamentos e a legislação sobre mortes também estão divididas. Embora Schleswig-Holstein tenha permitido a experimentação e tanto Frankfurt como Berlim estejam interessados neste tipo de enterro, a Baviera e a Renânia-Vestefália expressaram total oposição.

Divisões que também emergem em nível político. Alguns expoentes dos socialistas disseram estar convencidos, mas os líderes da CDU (Democratas-Cristãos) parecem muito frios. Os especialistas também estão divididos, aguardando os resultados de estudos maiores e mais convincentes. Ainda é cedo para definir os custos do sepultamento de reumatização. Até o momento rondam os 10.000 euros, um valor ligeiramente superior aos comuns.

Foto: Reerdigung | Reprodução | Settimana News

Do lado das igrejas, há uma certa disponibilidade de alguns pastores protestantes. O pastor evangélico luterano de Mölln, Hilke Lage – local onde ocorreram os primeiros sepultamentos – disse estar convencido da sustentabilidade do processo e da sua compatibilidade com as fórmulas funerárias tradicionais. O chefe do distrito eclesiástico de Altholstein, Almut Witt, testemunhou a abertura do “casulo” e reconheceu o tratamento digno e respeitoso dispensado ao corpo do falecido.

Ainda não há respostas oficiais nem do lado protestante (EKD), nem da Conferência Episcopal Católica ou dos seus representantes leigos. Presume-se uma certa simpatia pelo processo por parte do Islã e do Hinduísmo que desconhecem a utilização de caixões nos seus ritos fúnebres tradicionais.

Enterro adaptável

Um primeiro estudo sociológico sobre a aceitabilidade ou não do sepultamento por reumatação teria mostrado um interesse positivo para 27,4% dos contatados. Se a orientação fosse confirmada, uma mudança significativa nas percentagens poderia ser produzida na Alemanha. Para já, a cremação representa 78% do tratamento dos corpos dos mortos. O enterro na terra foi bastante reduzido. A nova proposta poderá interessar a quem está atento à proteção do meio ambiente.

A realização de ritos fúnebres nunca é apenas uma questão técnica de custos, eficiência e mercado. É sempre também uma questão religiosa, simbólica e civilizacional. Importantes elementos antropológicos, culturais, sociais e rituais são postos em fibrilação.

Se confirmada, a reumatação poderá atravessar tanto as novas sensibilidades para os sepultamentos ambientais, anônimos e inter-religiosos, como a atenção aos ritos da tradição cristã e às suas formulações litúrgicas, bem como a alguns aspectos dos ritos islâmicos e hindus.

Foto: Reerdigung | Reprodução | Settimana News

Os direitos dos mortos

A intolerável violência contra os corpos registrada na guerra russo-ucraniana, nos massacres de civis produzidos pelas tropas russas, na impossibilidade de ligação com os próprios falecidos resultante da migração forçada de armênios de Nagorno Karabakh, na repreensível arrogância para com os doentes e mortos mostrada pelas tropas de Israel (e antes das ações terroristas do Hamas), são sinais dramáticos sobre a necessidade de salvaguardar a dignidade dos cadáveres.

Enterrar e ser enterrado é um fato antropológico básico. O homem é o ser vivo que enterra o seu falecido e o tratamento dispensado aos mortos é uma medida da humanidade de uma sociedade. Até a morte pertence à vida e os direitos dos vivos estendem-se aos mortos e aos sobreviventes.

Cadáveres nunca são “coisas” ou “materiais”. Trazem consigo a dignidade dos vivos e, para os crentes, dos chamados à ressurreição. A Comissão Alemã de Justiça e Paz está desenvolvendo um texto sobre os direitos dos mortos, como uma expansão dos direitos fundamentais reconhecidos em 1948. A esperança é que em breve venha à luz.

* Teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 06-06-2024. Tradução de Luisa Rabolini.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/640103-ritos-mortuarios-a-reumatacao-artigo-de-lorenzo-prezzi

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