por Ladislau Dowbor
Desigualdade e frustrações deslocaram o eixo da polÃtica para o campo dos valores – onde opera uma aliança entre interesses financeiros, preconceitos de gênero e religião. Hipótese: esquerda pode (e precisa!) disputar este território
Estávamos acostumados a tratar questões polÃticas, econômicas, religiosas e de gênero como espaços diferentes, tanto nas discussões como nas pesquisas, e em particular como áreas separadas nas universidades. Isso fragilizou muito a nossa compreensão das novas dinâmicas que transformam a sociedade a partir da sua própria base.
Lembro que há uns 15 anos atrás, tempos de governo Lula, uma alta autoridade da União Europeia me perguntou do que eu achava da perspectiva de os evangélicos chegarem ao poder no Brasil. Comuniquei de maneira condescendente que não estava no horizonte polÃtico. Hoje me arrependo desta minha incompreensão do que estava se passando no paÃs, transformação melhor entendida por um especialista europeu. O que está hoje escancarado, é precisamente que o populismo de direita se enraizou na base da sociedade numa aliança que usa crenças religiosas, preconceitos de gênero, interesses financeiros, sistemas modernos de comunicação comportamental, e os sentimentos de frustração irritada dos mais pobres para gerar uma máquina de poder polÃtico, o populismo de direita.
No caso do Brasil, um livro de primeira ordem, de Bruno Paes Manso, A fé e o Fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI, (2023) analisa precisamente como se formou esta convergência de diversas dimensões do cotidiano da população, aliando religião, polÃtica, polÃcia e criminalidade numa nova “costura” que articula as comunidades, gerando novos sistemas de governança. A religião e a sexualidade, o controle do comportamento Ãntimo das famÃlias, passam a desempenhar um papel poderoso. Quando elegemos um polÃtico, teoricamente se trata de assegurar que o setor público administre os investimentos necessários na educação, na saúde, nas infraestruturas, na promoção de empregos e semelhante. São os “programas” que se apresentam para as eleições. Em vez disso, as pessoas irão votar no que se apresenta como costumes, como se os polÃticos devessem tratar de como e para quem rezamos, como organizamos as nossas famÃlias, como educamos nossos filhos. Deus, Pátria, FamÃlia já era o mote da ditadura de Salazar em Portugal, um século atrás. E como funciona. Não busca a racionalidade, busca as emoções.
O livro que queria aqui apresentar foca essas dimensões no plano internacional. Na Europa tão cultural e civilizada, enfrenta-se essa convergência da luta anti-gênero (leia-se controle da sexualidade das mulheres), da promoção da religiosidade (como se estivéssemos elegendo pastores), do uso das mÃdias sociais personalizadas (baseadas no uso de informações privadas das pessoas), e de pretensos valores “tradicionais”. Nos Estados Unidos as religiões se transformaram já há tempos em feudos de poder, com impressionante convergência entre valores retrógrados e as mÃdias mais avançadas, também navegando no mundo de frustrações geradas pela desigualdade e estagnação na base da sociedade. Os mais pobres nas mãos dos que mais reproduzem a pobreza.
Duas polonesas, Agnieszka Graff e Elzbieta Korolczuk realizaram uma pesquisa de impressionante riqueza sobre justamente como se articulam essas diversas dimensões da sociedade, com poderoso impacto polÃtico que se enraÃza na intimidade de como rezamos, de como nos relacionamos com a famÃlia, mas também de como votamos. O populismo polÃtico de direita é aqui visto como construção inovadora, que termina se articulando com as forças econômicas das grandes corporações, como no caso das Koch Industries nos Estados Unidos, justificando e assegurando apoio polÃtico da base social mais explorada para o sistema tecnologicamente mais avançado e explorador. A análise nos ajuda a entender como se construiu esse paradoxo polÃtico, por meio da pretensa superioridade moral, com uso não de propostas de soluções concretas de governança, mas sim de grandes acenos à famÃlia, uso da bandeira, conceito de austeridade na polÃtica, e de controle comportamental, em particular das mulheres.
As autoras analisam o caso da Polônia, que acaba de sair de 7 anos de um governo religioso fundamentalista que desestruturou as polÃticas públicas, e também os casos de Donald Trump nos Estados Unidos, de Orban na Hungria, bem como dos movimentos semelhantes na Itália, na França, na Inglaterra e inclusive no Brasil. A força do livro resulta em grande parte da profundidade da análise: as autoras participaram como observadoras das grandes reuniões internacionais dos movimentos de extrema direita populista nos diferentes paÃses e em diferentes épocas, permitindo justamente a compreensão de como o uso das religiões, dos movimentos anti-gender, em particular com a questão do aborto, dos interesses financeiros e dos interesses polÃtico-partidários convergiram para a formação do poderoso movimento populista de extrema direita que se tornou tão poderoso no mundo.
Tive uma reunião com uma das autoras, Elzbieta Korolczuk, em Varsóvia, em julho deste ano, ela me deu a versão polonesa do livro, que terminei lendo no avião. Impressionante a riqueza das análises. Ao comunicar-lhe por e-mail o meu entusiasmo, Korolczuk, que é professora na Suécia, me mandou o link da versão original em inglês, disponÃvel gratuitamente online, opção que tantos autores e editores estão começando a adotar: não substitui a venda dos livros impressos, pelo contrário, estimula, como constato com meus próprios livros, todos disponÃveis no meu site Dowbor.org e nas livrarias. Tempo de nos modernizarmos.
Uso moderno e construtivo das tecnologias mais avançadas, para denunciar, neste caso, o uso dessas tecnologias para nos empurrar para o mais profundo obscurantismo polÃtico e comportamental. O problema não está nas tecnologias, e sim no para que são usadas, como é o caso em particular da inteligência artificial. Hoje o poder das plataformas da comunicação, o dinheiro dos gigantes financeiros, e o controle dos nossos comportamentos Ãntimos geram uma nova ameaça, e se tornaram dominantes. Estamos na era da inteligência artificial manipulando a profundidade das nossas emoções, das nossas dimensões irracionais, buscando nos trancar em regimes obscurantistas.
O ponto de partida das autoras é a própria Polônia, onde o tradicionalismo religioso e o controle das polÃticas feministas, o “anti-gender” como é qualificado no plano mundial, foram apropriados pelo partido PIS (Prawo i Sprawiedliwosc: Direito e Justiça) para eleger um governo fundamentalista religioso de extrema direita. Quando chegaram ao extremo de proibir e criminalizar o aborto até em casos de estupro e de malformação do feto, houve uma reação impressionante: meio milhão de mulheres desceram à s ruas, vestidas de preto, e com cartazes radicais em defesa dos direitos das mulheres. A causa do aborto, tratada com tantos cuidados e prudência em diversos paÃses, aqui foi escancarada, e transformada em movimento polÃtico poderoso, contribuindo fortemente, inclusive, para a queda do PIS em 2023. Caiu o governo, mas o enraizamento do discurso populista, a propagação da sua falsa superioridade moral, e a sua articulação com o populismo polÃtico continuam muito presentes na sociedade, em particular no meio rural e nas camadas mais pobres.
Segundo as autoras, “As campanhas antigênero se alimentam de sentimentos religiosos e empregam discursos moralizantes, mas sua disseminação só pode ser devidamente compreendida no contexto da ascensão de forças polÃticas de direita que buscam meios ideológicos e afetivos para ganhar hegemonia.”(164) Trata-se de manipulação de sentimentos, no sentido mais direto. “A retórica anti-gênero funciona porque reorienta a raiva coletiva para longe das questões econômicas estruturais e para as morais. No processo, o anti-generismo confere aos sujeitos a memória de uma vergonha imaginária e a promessa de uma nova dignidade; oferece satisfação moral (nossos inimigos são maus, mas miseráveis), um senso de propósito e uma comunidade.”(135) O populismo, segundo as autoras, “se alimenta do ressentimento e do medo, e tende a moralizar os conflitos e necessita de inimigos.”
“Argumentamos que a mobilização antigênero desempenhou um papel importante na consolidação da direita populista como um movimento transnacional, que aproveita com sucesso a ansiedade, a vergonha e a raiva causadas pelo neoliberalismo. Em paÃs após paÃs, atores antigênero construÃram alianças com populistas de direita: juntos eles atacaram os direitos das mulheres, minorias sexuais e étnicas, promovendo o que os conservadores chamam de “valores familiares”. Os vários episódios que observamos em diferentes contextos – campanhas contra o aborto e a educação sexual, esforços para impedir a ratificação da Convenção de Istambul e ataques contra a comunidade LGBT – somam-se a um fenômeno transnacional na interseção de cultura, religião e polÃtica, que liga diferentes atores e agendas ideológicas muitas vezes dÃspares.”(165)
O sucesso da impressionante mobilização feminina na Polônia foi devido em grande parte ao fato de responder na mesma moeda, nas emoções, na solidariedade, na reversão do medo, indo além do papel que desempenha a argumentação racional. As mulheres desceram à s ruas com raiva. “Na Polônia, A luta das mulheres pela liberdade reprodutiva foi promulgada com sucesso como uma revolta popular, uma luta pela democracia e contra a violência do populismo de direita. Também acabou sendo um movimento de esquerda, que prontamente apoiou protestos de pessoas com deficiência exigindo incluir entre os seus objectivos um conjunto de exigências relativas à cuidados, provisões sociais para famÃlias e justiça social.”(162)
As autoras citam o manifesto Feminismo para os 99%: “O que estamos vivendo é uma crise da sociedade como um todo. De forma alguma restrito aos recintos das finanças, é simultaneamente uma crise de economia, ecologia, polÃtica e “cuidado”. Uma crise geral de toda uma forma da organização social, é no fundo uma crise do capitalismo – e em particular da forma viciosamente predatória de capitalismo que habitamos hoje: globalizante, financeirizado, neoliberal.”(p.142)
A leitura do livro nos enriquece muito, na medida em que traz informações sobre como a extrema direita, que hoje tanto progride no mundo, utiliza esta articulação da sexualidade, da falsa proteção “das nossas crianças”, da manipulação religiosa, da moralidade familiar, da mÃdia social, de sÃmbolos poderosos como a pátria, para favorecer a submissão ao mundo corporativo. Permite também, em diversos capÃtulos, entender como organizações de extrema direita se organizam no mundo para esta articulação, com participação direta, por exemplo, de Steve Bannon, tão importante na eleição do Trump nos Estados Unidos, inclusive com referências ao bolsonarismo.
São desafios polÃticos no sentido mais amplo, envolvendo muito além dos partidos e das propostas de polÃticas públicas. Usam as tecnologias mais avançadas de comunicação, e também o enraizamento nas comunidades religiosas, para formar uma máquina de manipulação poderosa. Para mim, a leitura simultânea do livro de Bruno Manso mencionado acima, e da análise dos diversos movimentos no plano internacional, ajuda a entender o deslocamento profundo do que chamamos de polÃtica. Trata-se de uma batalha de valores e de civilização. Lembrando mais uma vez que o livro em inglês está disponÃvel gratuitamente online, no link Anti-Gender Politics in the Populist Moment | Agnieszka Graff, Elżbiet (taylorfrancis.com) Eu recomendaria muito que fosse traduzido e publicado online no Brasil.
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/dowbor-paradecifrar-o-enigma-da-ultradireita/
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