MARTHA MEDEIROS*
Foi só ler no jornal sobre a remota possibilidade de voltarmos a ter
trens de passageiros no país e me pus a delirar – que luxo seria poder
ir de trem para Santa Catarina em vez de perder horas infindáveis em
congestionamentos, ou ir de trem para as cidades da serra, contemplando
aquele cenário inspirador passando pela janela, ou ir de trem até
Montevidéu, mesmo numa viagem mais demorada do que um voo, mas
certamente mais romântica e menos estressante, sem sujeição a
cancelamentos, atrasos e outras chatices corriqueiras do setor
aeroviário.
Minha mãe fala com saudosismo das viagens que fazia entre Porto Alegre e Sant’Ana do Livramento, onde viveu quando criança. Eu não tive trens povoando minha infância. O primeiro me encontrou já com 24 anos, quando precisei me deslocar de Londres até a cidade portuária de Dover, na Inglaterra. Atravessei então o Canal da Mancha num barco que atracou em Osteende, na Bélgica, e ali mesmo peguei outro trem para Bruxelas, e essas duas viagens em um único dia, por dois países diferentes, selaram minha rendição. Daquele dia em diante, circulei pelos países da Europa em trens diversos, desde uns bem esculhambadinhos até os modernos TGVs, sempre em segurança e militarmente no horário (trens marcados para as 14h37min saem às 14h37min, uma indecência de pontualidade). Mas o melhor de tudo é o benefício que pouco se comenta: o convite a refletir, que todo trem nos faz.
O escritor e filósofo Alain de Botton tem uma frase ótima a respeito: “Viagens são parteiras de pensamentos”. Dentro de trens, então, nem se fala. Ônibus também convidam à dispersão, porém são veículos que precisam parar nos postos de pedágio, que desaceleram diante de um buraco, que fazem ultrapassagens que nos obrigam a trocar a dispersão por preces aflitas. Já trens mantêm velocidade constante, e isso ajuda no fluxo das ideias – somos conduzidos não só para outra cidade, mas para um estado elevado de transcendência.
E tem a mística envolvida. Ninguém conseguiria imaginar o detetive Hercule Poirot desvendando assassinatos no interior de um ônibus da Unesul, assim como é improvável que um rapaz sente ao lado de uma moça num pinga-pinga e proponha que desçam juntos na próxima parada para percorrerem uma cidade desconhecida – Camaquã, por exemplo. Já em um trem, propostas malucas podem ser levadas em consideração. Foi o que aconteceu no filme Antes do Amanhecer, em que Ethan Hawke e Julie Delpy se conhecem num vagão, desembarcam juntos em Viena e... bom, assistam.
O Brasil é craque em filme de caminhão, que são road movies mais ligados à nossa identidade. É difícil imaginar que, num país onde nem o metrô pegou, teremos trens de passageiros desafogando as estradas e inspirando livros, filmes e casos de amor, mas não custa sonhar. Tanta coisa temos que colocar nos trilhos, quem sabe não começamos por aquelas que os têm por direito.
Minha mãe fala com saudosismo das viagens que fazia entre Porto Alegre e Sant’Ana do Livramento, onde viveu quando criança. Eu não tive trens povoando minha infância. O primeiro me encontrou já com 24 anos, quando precisei me deslocar de Londres até a cidade portuária de Dover, na Inglaterra. Atravessei então o Canal da Mancha num barco que atracou em Osteende, na Bélgica, e ali mesmo peguei outro trem para Bruxelas, e essas duas viagens em um único dia, por dois países diferentes, selaram minha rendição. Daquele dia em diante, circulei pelos países da Europa em trens diversos, desde uns bem esculhambadinhos até os modernos TGVs, sempre em segurança e militarmente no horário (trens marcados para as 14h37min saem às 14h37min, uma indecência de pontualidade). Mas o melhor de tudo é o benefício que pouco se comenta: o convite a refletir, que todo trem nos faz.
O escritor e filósofo Alain de Botton tem uma frase ótima a respeito: “Viagens são parteiras de pensamentos”. Dentro de trens, então, nem se fala. Ônibus também convidam à dispersão, porém são veículos que precisam parar nos postos de pedágio, que desaceleram diante de um buraco, que fazem ultrapassagens que nos obrigam a trocar a dispersão por preces aflitas. Já trens mantêm velocidade constante, e isso ajuda no fluxo das ideias – somos conduzidos não só para outra cidade, mas para um estado elevado de transcendência.
E tem a mística envolvida. Ninguém conseguiria imaginar o detetive Hercule Poirot desvendando assassinatos no interior de um ônibus da Unesul, assim como é improvável que um rapaz sente ao lado de uma moça num pinga-pinga e proponha que desçam juntos na próxima parada para percorrerem uma cidade desconhecida – Camaquã, por exemplo. Já em um trem, propostas malucas podem ser levadas em consideração. Foi o que aconteceu no filme Antes do Amanhecer, em que Ethan Hawke e Julie Delpy se conhecem num vagão, desembarcam juntos em Viena e... bom, assistam.
O Brasil é craque em filme de caminhão, que são road movies mais ligados à nossa identidade. É difícil imaginar que, num país onde nem o metrô pegou, teremos trens de passageiros desafogando as estradas e inspirando livros, filmes e casos de amor, mas não custa sonhar. Tanta coisa temos que colocar nos trilhos, quem sabe não começamos por aquelas que os têm por direito.
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* Escritora. Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 22/08/2012
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