Entrevista - Karen Armstrong
Para escritora britânica, violência é inerente aos estados,
que influenciam as tradições religiosas
ao propagá-las pelo mundo
A violência e a intolerância não são elementos inevitáveis no "DNA
cultural" das religiões, mas sim efeitos colaterais da aliança entre fé e
política, para os quais as tradições religiosas são capazes de
desenvolver antídotos pacifistas.
É o que afirma a escritora britânica Karen Armstrong, 68, que participa do ciclo Fronteiras do Pensamento amanhã, em São Paulo.
Ex-freira, Armstrong estudou literatura na Universidade de Oxford e
passou as últimas décadas produzindo documentários e escrevendo livros
que investigam a história das grandes tradições religiosas. "A ética da
compaixão é o centro de todas essas grandes tradições, e é preciso
retomá-la", argumenta.
Por email, ela diz à Folha que o ateísmo radical é produto do
fundamentalismo e que está "encorajada" com os sinais de humildade do
papa Francisco, embora não espere grandes mudanças.
Folha - É comum ouvir dizer que, ao longo da história, o monoteísmo
deu impulso à violência e à intolerância porque ele tende a ser
exclusivista. A sra. concorda?
Karen Armstrong - Não. Existem fundamentalistas entre os hindus e budistas.
A história mostra que nenhuma fé consegue se transformar numa "religião
mundial" se não for adotada por um Estado ou império dinâmico e em
expansão.
Como os Estados são inerentemente violentos (nenhum pode se dar ao luxo
de acabar com seus exércitos), as religiões acabam adquirindo uma
ideologia "imperial".
Mas os monoteísmos também desenvolveram uma alternativa contracultural
não violenta. As pessoas é que são violentas, e não as abstrações que
chamamos de "religiões".
O que significa ser uma monoteísta "freelance", como a sra. se
definiu certa vez? É possível transcender as raízes históricas do
judaísmo, do cristianismo e do islamismo e ainda se considerar
monoteísta?
Esse é um termo que usei de forma casual e que tem me perseguido desde
então. Eu quis dizer que era capaz de obter sustento espiritual das três
fés abraâmicas [referência a Abraão, que seria ancestral de judeus e
árabes], e que não conseguia ver nenhuma delas como superior.
Depois que afirmei isso, estudei as religiões orientais não teístas, e sou capaz de encontrar igual inspiração nelas.
O termo que aplico a mim mesma hoje em dia é o de "convalescente". Estou
em "fase de recuperação" depois de ter uma experiência religiosa ruim
quando era moça [Armstrong tornou-se noviça aos 17 e sofreu com a
disciplina e as penitências físicas].
Ao ler seus livros, a impressão é que a sra. fala de Deus como um
conceito importante, mas que não necessariamente teria base real "lá
fora". Se Deus não tem existência objetiva, por que se importar com Ele?
Nossas mentes possuem uma predisposição natural para a transcendência,
ou seja, temos ideias e experiências que estão além do alcance de nossa
compreensão. Todos nós buscamos momentos de "êxtase", nos quais "ficamos
de fora" do nosso eu. Se não encontrarmos isso na religião, vamos
buscar tal sensação na arte, na música, na natureza, até no esporte.
Nesses momentos, sentimos que habitamos nossa humanidade de um jeito
mais pleno. "Deus" é um símbolo que, se usado de forma apropriada, traz
essa experiência.
Como a sra. enxerga o movimento dos Novos Ateus, que defende que os
não crentes combatam de forma mais ativa a religião? É o sinal de um
futuro cada vez mais secular?
O Novo Ateísmo é, em grande medida, um produto do fundamentalismo
religioso, o qual tentou domesticar a transcendência de "Deus" e acabou
por transformá-lo em algo inacreditável.
Mas, ao longo da história, os monoteístas, por exemplo, insistiram que
"Deus" não é um outro ser e que não podemos dizer que "ele" existe,
porque nossa noção do que é a existência é limitada demais.
Na verdade, as pessoas estão ficando enjoadas com [Richard] Dawkins
[zoólogo britânico], [Sam] Harris [neurocientista americano; ambos são
expoentes dos Novos Ateus] etc. porque eles são agressivos e
intolerantes demais. Acho que a Europa está de fato destinada a seguir o
caminho do secularismo, mas os EUA continuam sendo um país muito
religioso.
Quais são suas impressões sobre o papa Francisco?
Achei muito encorajador quando fiquei sabendo que ele abandonou seu
palácio e adotou um estilo de vida mais simples. Mas ele ainda é
conservador do ponto de vista teológico e ético, então não espere muitas
mudanças!
Vários papas, diante da pressão pelo sacerdócio de mulheres,
afirmaram que teologicamente isso seria impossível, já que Jesus
escolheu como apóstolos apenas homens. Como vê esse raciocínio?
Eu acho que Jesus ficaria surpreso ao ver qualquer tipo de sacerdócio no
"cristianismo". Os primeiros cristãos achavam que os sacerdotes só
existiam no paganismo e no judaísmo; o modelo deles era mais
igualitário.
Raio-x Karen Armstrong
14 de novembro de 1944, em Wildmoor, Reino Unido
FORMAÇÃO
Aos 17 anos, tornou-se noviça e assumiu o nome de irmã Marta. Deixou o convento quatro anos depois. Estudou literatura inglesa na Universidade de Oxford
PRINCIPAIS LIVROS
"Jerusalém - Uma Cidade, Três Religiões" (2000), "Maomé - Uma Biografia do Profeta" (2002)
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Reportagem por REINALDO JOSÉ LOPES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Fonte: Folha on line, 07/05/2013
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