Mulher comete crime e culpa o antidepressivo, com sérios efeitos
colaterais, que o seu psiquiatra prescreveu. Esse foi o argumento que
Scott Z. Burns encontrou para levar às telas do cinema o abuso na
prescrição de remédios contra doenças que afetam o estado emocional das
pessoas. "Há uma proliferação de antidepressivos nos EUA, com muita
publicidade dos medicamentos na TV. Adotando produtos químicos,
declaramos uma guerra contra a tristeza, mas sem diferenciar o que é um
estágio passageiro, provocado por um infortúnio, e a doença persistente,
que precisa ser tratada'', afirma Burns, roteirista de "Terapia de
Risco", thriller assinado pelo diretor americano Steven Soderbergh.
Em cartaz a partir do dia 17 nos cinemas brasileiros, o
longa-metragem é resultado de extensa pesquisa realizada por Burns no
hospital Bellevue, de Nova York, há mais de dez anos. Na época, o
roteirista colhia material para um programa de televisão da rede NBC,
"Wonderland'', criado por Peter Berg, acompanhando de perto o trabalho
do psiquiatra Sasha Bardey, coprodutor e consultor de "Terapia de
Risco''. "Aprendi muito sobre a interseção entre psiquiatria,
legislação, farmacologia e comportamento humano, percebendo que o tema
renderia um bom roteiro de filme'', diz Burns, aos jornalistas, em
Berlim.
Soderbergh viu no universo das drogas ("onde existe remédio para
tudo'') a chance de fazer a sua homenagem a Alfred Hitchcock - ainda que
a temática não seja explorada tão a fundo. O foco do filme não cai
necessariamente nas maquinações da indústria farmacêutica - o que
aproximaria o título de "Traffic'' (2000), em que Soderbergh abordou a
questão do tráfico de drogas de várias perspectivas. A ênfase está na
mente manipuladora de certos personagens, que se aproveitam do culto aos
medicamentos do gênero e do acesso fácil aos mesmos.
Quando se trata de antidepressivos,
a
medicação dispensável é tão grave
quanto a negação da sua necessidade,
segundo Carlos Neumann
Interpretada por Rooney Mara (de "Millennium - Os Homens Que Não
Amavam as Mulheres''), a protagonista é uma mulher que sofre de
ansiedade e depressão. A situação se agrava quando ela precisa lidar com
as expectativas do marido (Channing Tatum), recém-saído da prisão, após
quatro anos de confinamento. Depois da prescrição de seu psiquiatra
(Jude Law), com o aval de sua psiquiatra anterior (Catherine
Zeta-Jones), ela passa a tomar uma medicação nova no mercado, anunciada
constantemente na TV. É sobre a influência desse remédio, com muitos
efeitos ainda desconhecidos, que ela perde o controle e comete um crime,
do qual a mulher jura não se lembrar. Ela alega inocência e joga a
responsabilidade sobre o psiquiatra, que vê a sua reputação desmoronar.
"Se o cinema de Hitchcock é relevante até hoje, não é por mérito
apenas dos aspectos técnicos e das inovações dos seus filmes. Mas sim
porque quase todos tratam da culpa, algo interessante e que nunca nos
deixa em paz. Nosso filme explora algo recorrente na obra de Hitchcock: a
transferência da culpa de um personagem a outro'', conta o diretor, no
encontro em Berlim.
Embora Burns, filho de psicólogos, tenha usado um remédio fictício no
filme, chamado Ablixa, o roteirista se baseou em remédios disponíveis
no mercado americano. "Com a ajuda de Bardey, selecionamos os produtos e
reproduzimos no filme a maneira como eles se vendem em seus anúncios
publicitários e nas suas páginas na internet'', comenta Burns. Ele
lembra que a ideia das campanhas é sempre transmitir que o paciente pode
"alcançar a felicidade apenas com um comprimido''.
Em sua preparação para encarnar o psiquiatra da história, Jude Law
conheceu vários médicos e pacientes. "Obviamente os remédios são
benéficos em muitos casos. O problema está na tendência atual da
sociedade de buscar um atalho para tudo. Em vez de tratar do que nos
incomoda, parece mais fácil tomar um comprimido e fazer o desconforto
sumir, como em passe de mágica'', diz o ator. "Muitas vezes, esquecemos
que, tomando essas drogas, nós só reforçamos o sistema. Por trás do
médico, há toda uma indústria que o encoraja a prescrevê-las. E quem
movimenta essa indústria são os investidores'', completa.
A busca por medicamentos é uma forma de se desconectar da realidade,
na visão de Ivonise Fernandes da Motta, psicoterapeuta, psicanalista e
professora de psicologia da USP. "O remédio pode ajudar no tratamento
psicoterápico, principalmente para diminuir a angústia e a ansiedade.
Mas o ideal é sempre caminhar para não precisar mais da medicação'',
afirma.
Ivonise diz acreditar ser pouco provável o álibi apresentado pela
protagonista de "Terapia de Risco'', que culpa o Ablixa pelo
comportamento imprevisível. "O remédio poderia influenciar, mas o
esquecimento total de um fato geralmente tem outra razão. Há casos em
que o paciente suprime da memória experiências muito dolorosas. A mente
humana é capaz de fazer isso.''
Só o abuso do álcool pode gerar uma espécie de amnésia, segundo
Carlos Neumann, psiquiatra, psicanalista, psicoterapeuta e professor do
curso de especialização do Departamento de Psicologia Clínica do
Instituto de Psicologia da USP. "Há casos em que a pessoa bebe muito e
não se lembre de nada no dia seguinte, independentemente da ingestão de
antidepressivos'', afirma.
Embora reconheça a prescrição indiscriminada de remédios do gênero
("quando o psiquiatra não vê a pessoa mais globalmente"), Neumann
destaca a sua importância em tratamentos específicos. O primeiro passo é
separar os casos de depressão. "Um paciente que passa por luto ou
situação pessoal grave não pode ser tratado como o melancólico, que
muitas vezes é assim desde criança.'' Feita a avaliação, o
antidepressivo é recomendável quando o paciente tem transtornos ansiosos
graves, ataques de pânico, compulsões ou ideias suicidas. "Ou seja,
sintomas que realmente atrapalham a sua vida.''
Para Neumann, quando se trata de antidepressivos, a medicação
dispensável é tão grave quanto a negação da sua necessidade. "Por um
lado, temos o paciente que quer tomar o comprimido por qualquer coisa,
só para se ver livre de uma tristeza momentânea. Mas, por outro, há os
que precisam de medicação, mas preferem fingir que não." Neste caso, o
paciente pode alegar justamente que não quer fazer parte dessa febre
pelos "remédios da felicidade'', para não aumentar ainda mais os lucros
da indústria farmacêutica. "O discurso sobre a ganância do setor tanto
pode ser usado para o bem quanto para o mal", comenta Neumann.
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Por Elaine Guerini | Para o Valor, de Berlim
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