domingo, 27 de novembro de 2016

Domenico De Masi: Sociólogo defende que se façam ‘pequenas revoluções’


 Otimismo. Para De Masi, Brasil pode ser um modelo para o mundo: 
“O país é pacífico na perspectiva internacional, 
aberto à solidariedade” - Divulgação
 
Para Domenico De Masi, prevalência da cultura técnica explica crise do emprego e xenofobia

TIRADENTES (MG) - O sociólogo italiano Domenico De Masi vê o avanço do neoliberalismo e a ascendência do conhecimento técnico sobre as humanidades como fenômenos relacionados e que estão na origem de dois grandes mal-estares atuais: o fortalecimento de discursos de ódio e autoritários e a crise do trabalho. Superar as raízes dessa malaise é urgente se a sociedade quiser evitar uma revolução sangrenta no futuro próximo, diz o professor da universidade La Sapienza, de Roma, que está em Tiradentes para participar da primeira edição do Fórum do Amanhã.

O senhor veio a Tiradentes (MG) falar sobre os caminhos para o desenvolvimento daqui para frente. Qual papel o Brasil pode desempenhar nisso?
O Brasil tem características positivas. È um país muito importante, o sétimo PIB do mundo, o 5º em extensão territorial. E há também o papel importante cultural. Em sua história, o Brasil só se envolveu em uma guerra, com o Paraguai, e essa é uma diferença em relação à Europa. Ele é violento internamente, claro, mas é pacífico na perspectiva internacional, aberto à solidariedade, enquanto a Europa está repelindo imigrantes. É um país propenso à alegria, à música. Pode haver aqui um modelo para o restante do mundo.

Você já disse que o Brasil é um país de sociólogos. Hoje, porém, em paralelo ao avanço de ideologias de extrema direita, muitos observadores apontam para o surgimento de forte movimento anti-intelectual, refratário às humanidades por aqui. O senhor tem percebido esse movimento?
Não tenho condições de dizer se isso está acontecendo ou não no Brasil. Mas na Itália isso é ocorre, assim como por toda a Europa e nos EUA. Isso é muito perigoso. Setenta anos após a Segunda Guerra, após o fim do fascismo e do nazismo, as novas gerações não viveram essas tragédias. As ciências humanas e sociais são ferramentas contra as ditaduras pois são fundamentalmente democráticas. As primeiras medidas ditatoriais são sempre suprimir as humanidades. Isso aconteceu com Stálin, que acabou com a sociologia, aconteceu com Mao Tsé-tung, com Pinochet. 

Elas estão sob risco?
Eu espero que não. A diferença de hoje é que as instituições democráticas são bem mais sólidas do que naquela época, e desempenham uma missão global para o mundo, não nacionalismo. Fascismo e nazismo eram forças nacionalistas. 

Trump se elegeu com uma mensagem anti-globalização, nacionalista e, para alguns, até nativista. Sua vitória não seria uma mensagem de mal-estar com relação à essas postura globalista das instituições?
Os EUA têm muitas diferenças internas. O percentual de população com nível superior é de 52% na Califórnia mas de 15% a 20% em Utah, por exemplo. Logo, não existe uma América única. E há outra coisa. A formação nos EUA é baseada em uma cultura técnica, não humanista. Este é um problema enorme, porque se a cultura técnica prevalece sobre a cultura humanista, não existe um edifício cultural que possa barrar o autoritarismo e o populismo. A cultura americana é técnica, são engenheiros, biólogos, químicos etc. Nos últimos 50 anos, aliás, está acontecendo a destruição do humanismo, no mundo inteiro e no Brasil também. Se um jovem vai à universidade, ele estuda técnicas, não humanidades. Até um país humanista, ou, melhor dizendo, espiritualista, como a Índia, está passando por esse processo. Uma outra coisa que não existe nos EUA é a cultura de classe social. Quem sabe que é pobre não pode pensar que sua salvação virá de um homem rico.

Um dos argumentos de Trump em sua campanha vitoriosa foram suas supostas qualidades como empresário. São Paulo acaba de eleger um prefeito que se autointitula gestor, o que parece ser uma tendência. O que está por trás dela?
Se ele é gestor de uma empresa, ele busca o lucro. E o prefeito de uma cidade, quer o quê? Não é suficiente nem a cultura tecnológica nem a econômica para governar uma cidade ou um estado. A cultura humanista é indispensável. Ela mostra o que fazer, enquanto que a cultura técnica mostra como fazer, sendo apenas um meio, não um fim. 

A xenofobia e a rejeição a imigrantes têm alguma coisa a ver com isso?
É uma outra consequência da ignorância humanista e, mesmo, um grande erro econômico. A Europa precisa de jovens, e os imigrantes são todos jovens. A mesma coisa acontece nos EUA. É um erro econômico, mas é acima de tudo um erro do ponto de vista humanista. 

O senhor ficou conhecido pela ideia do ócio criativo. O senhor vê futuro para ela mesmo quando um país como a França se rende à ideia de flexibilização das leis trabalhistas?
São duas coisas diferentes. Eu entendo ócio criativo pela possibilidade para todos que fazem trabalho criativo de unir trabalho, estudo e lazer. Eu e você estamos aqui, agora, trabalhando. Estamos trocando ideias, logo estamos estudando. E eu estou me divertindo. É fazer essas três coisas ao mesmo tempo. Como o percentual de trabalho de ordem criativa está crescendo no mundo pós-industrial e o trabalho não criativo está terminando, há mais espaço para o ócio criativo. 

Mesmo quando governos tentam dar a possibilidade a empregadores de aumentar a jornada de trabalho?
Esse sistema de flexibilização ao que você se refere está sendo usando em todo o mundo e é criminoso. Isso leva, eventualmente, à perda de trabalho. A primeira fase é a flexibilização, e a segunda é a demissão. Em vez de a empresa ter necessidade de cem trabalhadores, vai para dez. Em 1850, 94% era do trabalho era operário. Hoje, 33% são trabalho operário, 33% são serviços, finanças etc., e 33% são considerados criativos. Em 2030, 50% serão trabalho criativo, 25%, operário, e 25%, serviços, finanças etc. Mas não só o trabalho do operário está sendo substituído por inteligência artificial, parte do trabalho criativo também. Quando você escreve um artigo, a tendência é que a pesquisa que antecede a escrita seja feita por inteligência artificial, por exemplo. 

Essa transição gera muita ansiedade na sociedade...
Essa ansiedade é necessária.E eu acho até que ela é pouca (para a situação)! Mas eu acho que duas coisas são urgentes. A primeira dela é reduzir a carga de trabalho. Se você trabalha dez horas hoje, no futuro você trabalharia cinco para que outra pessoa também possa trabalhar. O passo adiante é muito mais problemático, porque para um número crescente de pessoas não encontrará nenhum trabalho. Neste ponto, o problema será como redistribuir a riquezas. 

Você concorda com Thomas Piketty quando ele propõe uma taxação das grandes fortunas com o objetivo de reduzir a concentração de capital?
Sim, claro! Mas eu não acredito que os ricos vão um dia pagar imposto. E agora? Aí os conflitos sociais aumentam. Os conflitos urbanos diminuíram, mas a violência social tende a aumentar. Ela se dá de muitas formas, como revoluções e guerras. 

O senhor é tido como otimista. Hoje, o senhor me parece bastante pessimista, não?
Antes de chegar nesses estágios, eu ainda acredito que vamos chegar a uma solução. Eu acho que antes de chegarmos a uma revolução enorme e violenta, seja possível que passemos por pequenas revoluções mais simples. Em meu próximo livro, que se chama "Uma simples revolução", eu detalho quais são elas. 

E quais seriam?
Uma delas é justamente uma redução drástica da jornada de trabalho. Não para 35 horas semanais, mas para 15 horas. Segundo, aumentar drasticamente o investimento em formação, de escolas a universidades, passando até por congressos e conferências. O outro passo é a superação do neoliberalismo, porque a situação atual é a filha dele. Desde a décadas de 1980, com Reagan e Tatcher, o mundo vive sob ele. 

Matteo Renzi, na Itália, se enquadra nessa classificação?
Ele é um neoliberal que diz ser social democrata. É o oposto de Fernando Henrique (Cardoso), que se dizia neoliberal mas era um social-democrata. 

O senhor falou em redução da jornada de trabalho e investimento pesado em educação. O Brasil parece estar indo nessa direção?
Não, mas nenhum país do mundo está. Isso é a prova de que eu tenho razão! Na minha opinião, um dos motivos para que dificultam a redução da jornada é o fato de que os trabalhadores que estão empregados e os sindicatos que o representam não querem isso. Quem ficar sem trabalho vai querer que isso ocorra. Como fazer isso? A solução pode ser semelhante ao Uber. Esses profissionais desempregados podem criar uma rede e, por um tempo, trabalhar de graça. Os empregadores vão preferir essa mão-de-obra gratuita àquela que é paga. Depois de um tempo, essa rede deixa de trabalhar de graça, e os empregadores serão obrigados a ceder. Essa é uma possível revolução, pequena, simples, sem violência e sem terrorismo.

O senhor acha que isso que essas tais “pequenas revoluções” são de fato possíveis ou são apenas um desejo do senhor?
Se formos inteligentes, creio que esta é a única saída. Na Itália, há 2 milhões de jovens desempregados. Com a evolução da inteligência artificial, esse número pode ir para seis ou sete milhões. Hoje, esses jovens têm pais que trabalham e que os suportam. É o que eu faço com a minha filha. 

O senhor é um leitor de obras brasileiras. Qual foi o último livro que lhe interessou?
O daquela jornalista de economia, Miriam Leitão ("História do Futuro"). Quando lancei o livro "O Futuro Chegou" aqui, essa mesma jornalista fez uma crítica muito violenta contra ele. Já eu acho o livro dela muito bonito. Também gostei de "Brasil: Uma Biografia", de Lilia Schwarcz (com Heloisa Murgel Starling). Outro que li recentmente foi "Os Pensadores que Inventaram o Brasil". E leio sempre Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Hollanda.

A percepção sobre o Brasil piorou bastante no mundo nos últimos anos, não?
A imagem do Brasil melhorou em uma constante desde o início do governo FH até o primeiro governo Dilma, porque o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou. Para mim, que sempre venho ao Brasil, ficou difícil entender. O Dilma foi eleita com 52%,, depois, em dois meses, começaram a falar de impeachment. Não é comprreensível. Mas acho que nem os brasileiros entenderam. 

O senhor continua otimista com o Brasil mesmo diante de toda essa situação?
Sim, claro. O problema do Brasil é mais o Trump do que a Dilma. O Brasil também corre um grave risco psicológico, o de ter um álibi para tudo o que não funciona: "Foi culpa da Dilma, do PT". Isso é um álibi que impede o Brasil de achar as razões verdadeiras. 
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Reportagem por Rennan Setti, Enviado especial
FONTE:  http://oglobo.globo.com/economia/sociologo-defende-que-se-facam-pequenas-revolucoes-20538198

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