Frei Betto*
Frei Betto conversa
com Fidel em 1985:
líder cubano revelou detalhes sobre sua formação religiosa -
Divulgação
Líder
cubano não gostava de ser interrompido, mas não monopolizava a palavra
Perco
um grande amigo. Nosso último encontro foi a 3 de agosto, quando completou 90
anos. Recebeu-me em sua casa, em Havana, e, à tarde, fomos ao Teatro Karl Marx,
onde um espetáculo musical o homenageou. Embora tivesse o organismo debilitado,
caminhou sem apoio da entrada do teatro à sua poltrona.
Com
Fidel, desaparece o último grande líder político do século XX, o único que
logrou sobreviver mais de 50 anos à própria obra: a Revolução Cubana. Graças a
ela, a pequena ilha deixou de ser o prostíbulo do Caribe, explorado pela máfia,
para se tornar uma nação respeitada, soberana e solidária, que mantém
profissionais da saúde e da educação em mais de cem países, inclusive o Brasil.
Conheci
Fidel em 1980, em Manágua. O que primeiro chamava atenção era sua imponência.
Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia
autoridade e decisão. A impressão era de que qualquer poltrona era
demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Quando ingressava num recinto era
como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Todos ficavam esperando que
ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema da conversa, fizesse uma proposta
ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que sua presença era
uma a mais e que o tratariam sem cerimônias e reverências. Como na canção de
Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples
homem do campo, sem a fama que o revestia. Certa ocasião, o escritor Gabriel
García Márquez, de quem era grande amigo, perguntou se ele sentia falta de
algo. Fidel respondeu: “De ficar parado, anônimo, numa esquina.”
Outro
detalhe que surpreendia em Fidel era o seu timbre de voz. O tom em falsete
contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores
tinham de apurar os ouvidos. E quando falava, não gostava de ser interrompido.
Porém, não monopolizava a palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de
conversar como ele. Desde que não fossem encontros protocolares, nos quais as
mentiras diplomáticas ressoam como verdades definitivas, Fidel não sabia
receber uma pessoa por 10 ou 20 minutos.
A
convite de Fidel e dos bispos de seu país, atuei no resgate da liberdade
religiosa em Cuba, facilitado pela entrevista contida no livro “Fidel e a
religião” (Fontanar), na qual o líder comunista aprecia positivamente o
fenômeno religioso.
Não
saberia dizer quantas conversas privadas tive com Fidel. Uma curiosidade é que
este homem, capaz de entreter a multidão por três ou quatro horas, detestava,
como eu, falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho sempre foi
sucinto.
Minhas
frequentes viagens a Havana estreitaram nossos laços de amizade. No prefácio
que generosamente escreveu para a minha biografia, lançada esta semana pela
Civilização Brasileira, Fidel ressalta que defendo Cuba “sem deixar de
sustentar pontos discrepantes ou diferentes dos nossos”. Na década de 1980,
quando expressei críticas à Revolução, o Comandante frisou: “É seu direito. E
mais: o seu dever”.
Todas
as vezes que eu o visitava em sua casa, depois que deixou o governo, levava-lhe
chocolates amargos, seu preferido, castanhas e livros em espanhol sobre
cosmologia e astrofísica. Conversávamos sobre a conjuntura política mundial, a
sua admiração pelo Papa Francisco e, em especial, sobre cosmologia. Contei-lhe
que ao visitar Oscar Niemeyer, pouco antes de sua morte, este me disse,
animado, que toda semana reunia em seu escritório um grupo de amigos para
receber aulas de cosmologia. O fato de dois eminentes comunistas se
interessarem tanto pelo tema, comentei com Fidel, me fez recordar uma cena do
filme “A teoria de tudo”, no qual o intérprete do físico inglês Stephen
Hawking, ainda estudante, pergunta à jovem com quem iniciava o namoro: “O que
você estuda?” “História”, ela responde, e devolve a curiosidade. Ele informa:
“Estudo cosmologia". “O que é isso?”, indaga ela. E ele frisa: “uma
religião para ateus inteligentes.”
Tenho
para mim que Fidel, aluno interno de colégios religiosos ao longo de dez anos ,
abandonou a fé cristã ao abraçar o marxismo. De alguns anos para cá deixou-me a
nítida impressão de que se tornara agnóstico. Várias vezes me pediu, ao nos
despedirmos: “Ore por nós.” Tenho certeza de que Fidel transvivenciou feliz com
a sua coerência de vida.
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