sexta-feira, 3 de maio de 2024

Um primeiro de maio triste para os que são livres como pássaros

Por Mauro Luis Iasi*

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em tempos de subordinação real e não meramente formal, certos segmentos da classe trabalhadora podem inclusive operar seus próprios meios, no entanto só podem operá-los subordinados ao capital e inserindo-se no mercado de produção de mercadorias ou serviços operados por grandes empresas. Como se fosse uma lei natural que sempre existiu. Os pássaros livres voam para o bem do capital que os aprisiona.

Quando em 1886 os trabalhadores norte americanos entraram em greve pela jornada de trabalho de oito horas (a jornada média era de 13 horas), descanso semanal e férias remuneradas, mal poderiam imaginar que cento e trinta e oito anos depois, trabalhadores de aplicativo exigiriam o direito de trabalhar doze horas e sem direitos.

Em um primeiro de maio convocado por quase todas as centrais sindicais, com uma participação muito pequena, cerca de quatro ou cinco mil pessoas, o presidente Lula conclamou por um país mais justo. Mas, deixemos por um tempo o governo e suas intenções. Voltemos nossa reflexão para a cobertura jornalística. Deixando de lado a conhecida campanha de ataque ao governo pela direita e extrema-direita, que insistiu em apontar possíveis deslizes eleitorais ou o almoço dos ministros, me chamou a atenção a pauta da Globo News, com claro corte editorial, uma vez que vários comentaristas ao longo do dia insistiram em uma conhecida tese.

Para os chamados comentaristas da emissora, o presidente falaria para uma classe que não mais existe, que lutava por salários e direitos, enquanto a atual classe trabalhadora é formada por empreendedores individuais que não querem patrão, “querem mandar em seu próprio nariz”, nas palavras de um dos supostos jornalistas, “querem fazer seus próprios horários’, enfim, “querem ser livres”. O Estado, segundo essa visão, não deveria se meter na livre negociação entre trabalhadores e patrões e sim dar as condições gerais para que o clima econômico seja favorável, a inflação controlada e, além disso, estabelecer um conjunto de políticas públicas que permitiria aos mais pobres ter um patamar adequado para entrar na livre concorrência por empregos e capacidade de consumo.

Sabemos que isto que ocupou o lugar do jornalismo especializou-se em descrever a forma mais superficial das aparências, portanto não devemos cobrar nada que se aproxime a uma análise. Aqui, nos interessa destacar como a ideologia opera nesta ação supostamente informativa. Uma das características da ideologia é que ela não apenas encobre determinações, mais precisamente a operação ideológica encobre mostrando, revela para ocultar. Mas, o que estaria oculto no fenômeno descrito em sua aparência?

Houve uma profunda alteração da forma da classe trabalhadora, como nos diz Ricardo Antunes (2005) – na morfologia da classe – e sabemos que isto se deve a alterações nos padrões de acumulação do capital nas condições das relações sociais de produção contemporâneas. As eufemisticamente chamadas de relações “flexíveis”, nada mais são que a adequação das relações de trabalho às exigências do capital monopolista mundial. Sabemos que o efeito destas exigências incide sobre os trabalhadores precarizando os contratos de trabalho, dispersando a classe, rebaixando níveis salariais e eliminando direitos duramente conquistados.

Tudo isto é conhecido, mas o que nos interessa é a afirmação que este novo trabalhador, na versão do porta-voz do capital na mídia corporativa, não quer direitos e condições de trabalho porque isto afetaria sua liberdade. Diante de tal afirmação tendemos a reagir emocionalmente afirmando que não é verdade, é pura manipulação. Entretanto, acredito que aqui está o centro de nossa inquietação, a ideologia não é mera enganação, mentira e falsificação, embora tudo isto esteja presente na ação ideológica, como nos diz Eagleton (1997). A ideologia apresenta uma inversão que não pode ser criada no terreno ideal, mas habita no mundo e, ao fazê-lo, opera legitimando-a como natural e necessária.

Nesta direção, ao invés de questionar o discurso ideológico que se expressa na afirmação – “o trabalhador não quer direitos, quer ser livre” – devemos nos perguntar sobre a materialidade de tal comportamento e suas determinações que não vão se apresentar na superfície e não podem ser escritas em nenhum teleprompter.

Primeiro, devemos inquirir sobre esta liberdade. Marx (2013) nos dizia que o modo de produção capitalista exige uma pré-condição que é a separação do produtor direto de seu meio de produção, para ser claro, uma expropriação. Desta forma, nos diz Marx, para que o capitalismo exista foi e é necessário “acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas ao mercado de trabalho como proletários absolutamente livres” (Marx, 2013, p. 787).

O termo em alemão que nosso autor utiliza nesta passagem é Vogelfrei, que pode ser traduzido como “livre como os pássaros” ou “fora-da-lei”. Assim, livre aqui se refere à separação entre o produtor direto e seus meios de subsistência e de trabalho.

Alguém poderia argumentar que tal processo diz respeito ao proletariado tradicional e não à nova classe trabalhadora, exatamente pelo fato que seria, segundo o otimista jornalista, formada por empreendedores individuais que operam com seus próprios meios. Aqui se destaca outro elemento da operação ideológica: tomar o todo pela parte. Eis que como um passe de mágica toda a classe trabalhadora é formada por indivíduos donos de seus meios de trabalho. Mas não nos adiantemos.

A nova configuração do trabalho teria assumido a forma de indivíduos livres como os pássaros que não querem direitos, querem determinar livremente sua jornada e as condições de trabalho e receber pelo serviço ou produto resultante de seu trabalho. Certo, mas de quem estamos falando?

Segundo o IBGE, a população economicamente ativa no Brasil é de 107,46 milhões de pessoas, das quais estariam ocupadas 95,4 milhões. Trabalhariam com carteira assinada no setor privado 34,55 milhões trabalhadores e trabalhadoras e 12,38 sem carteira assinada (46,93 milhões no total de assalariados e assalariadas). Os chamados “trabalhadores por conta própria” seriam 25,5 milhões.

O que o discurso ideológico oculta é que a composição da classe trabalhadora ocupada é de 49% de assalariados no setor privado (com ou sem carteira assinada) e de 26,8% de trabalhadores por conta própria, apresentados homogeneamente como não querendo direitos. Se somarmos os funcionários públicos, que parecem não estar ansiosos por perder direitos, os assalariados seriam 61,09% da população ocupada. A mágica da ideologia é apresentar o particular como se fosse universal.

Os trabalhadores livres como pássaros, portanto despojados dos meios de produção que lhes foram expropriados e concentrados em grandes monopólios, têm salários, FGTS, férias, 13º salário, planos de saúde, descanso semanal remunerado e, ainda que atacado, um certo direito à aposentadoria. Os trabalhadores de plataformas submetidas a algoritmos, que defendem a liberdade, trabalham doze horas por dia por uma remuneração variável a critério do algoritmo (a Uber, por exemplo, fica com cerca de 40% do valor da corrida), sem direito ao descanso semanal e férias, sem aposentadoria e sem nenhuma cobertura de saúde.

Apesar de se acharem livres, a atual negociação de um projeto que regularia a categoria e chegaria a algum patamar de direitos (um projeto bem limitado, diga-se de passagem) foi estabelecida com as empresas e, no caso dos entregadores, a principal delas melou o acordo se retirando das negociações!

Isto nos leva a afirmar que, por um aparente paradoxo, os trabalhadores mais precarizados que se acham livres, que utilizam de seus meios para trabalhar (o carro, a moto, seu computador para o home office, etc.) expressariam um interesse de manter tal condição. Como compreender? Certamente não chegaremos perto da resposta assistindo a Globo News e os comentários impostos pela pauta editorial.

Voltemos às brumas distantes da acumulação primitiva, processo no qual se deu a grande expropriação que separou os trabalhadores de seus meios de trabalho e subsistência. Por muito tempo tiveram que ser forçados a se pôr a trabalhar para outro, seja o arrendatário no campo, depois o arrendatário capitalista nas manufaturas e depois nas indústrias. Diz Marx na parte que trata do tema:

Não basta que as condições de trabalho aparecem em um polo como capital e no outro como pessoas que não tem nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas (Marx, 2013. p. 808).

A forma como se dão as relações entre trabalhadores e os donos do capital mudou muito historicamente, tanto pela constante alteração e desenvolvimento técnico dos meios de produção, como pela luta de classes. Em 1886, os trabalhadores de Chicago tiveram que lutar e os mártires foram mortos na forca para diminuir a jornada para oito horas. Muitas outras lutas em todo o mundo e no Brasil foram necessárias para estabelecer o salário mensal, o descanso semanal remunerado, férias, direitos previdenciários e tantos outros. Hoje, vivemos uma correlação de forças que leva a desconstrução destes patamares de direito. O que não se altera é que o fundamento das relações de trabalho se dá entre aqueles que entregam sua força de trabalho para uma empresa que utiliza seu trabalho para gerar valor e mais valor.

A educação, a tradição e o hábito forjam novos acomodamentos às exigências do capital que se apresentam ideologicamente como naturais. O que explica que tal acomodamento possa se dar em uma relação de profunda exploração de uma grande empresa monopolista e vários trabalhadores que se acreditam livres pois utilizam seus meios para exercer o trabalho?

Em outra passagem do mesmo texto acreditamos encontrar uma pista valiosa. Quando descreve o nascimento de um proletariado, Marx avaliará que nas condições de seu surgimento, o trabalho ainda vivenciaria uma “subordinação formal” ao capital, isto porque os proletários ainda eram um pequeno número no conjunto da população, imersos na enorme população camponesa e pela produção corporativa nas manufaturas. Isto porque, afirma o autor, “o modo de produção não possuía ainda um caráter especificamente capitalista”.

Ora, vivemos hoje um modo de produção especificamente capitalista, o que implica que vivemos uma subordinação real do trabalho ao capital, que os expropriados só podem garantir sua existência subordinando-se aos ditames da mercadoria e da valorização. Não podemos mais comer, vestir, morar ou nos divertirmos sem que entremos nos círculos da mercadoria e do capital. Em tempos de subordinação real e não meramente formal, certos segmentos da classe trabalhadora podem inclusive operar seus próprios meios, no entanto só podem operá-los subordinados ao capital e inserindo-se no mercado de produção de mercadorias ou serviços operados por grandes empresas. Como se fosse uma lei natural que sempre existiu.

Agora são livres, mesmo tendo a posse direta de meios de trabalho (motos, carros, computadores, produzidos por operários em grandes fábricas pelo mundo), para se somar ao enorme conjunto de expropriados que só pode existir subordinando-se ao processo de valorização e realização do valor em toda a sua dimensão.

O torpe jornalista imbecil sorri ao final de seu comentário inútil como se fosse a revelação enfim encontrada das leis que movem o universo. Os pássaros livres voam para o bem do capital que os aprisiona.

Referências bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha. São Paulo: Boitempo, 2005.
EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Boitempo/Unesp, 1997.
MARX, Karl. O capital [Livro I]. São Paulo: Boitempo, 2013.

 *Professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

Fonte:  https://blogdaboitempo.com.br/2024/05/03/um-primeiro-de-maio-triste-para-os-que-sao-livres-como-passaros/

Sorria, você está sendo filmado, analisado e rastreado

 Por Pedro Pannunzio*

Totem da White Segurança, no Itaim Bibi, em São Paulo

 

Totens de vigilância particulares se espalham pelas metrópoles com controvérsias que vão do urbanismo ao reconhecimento facial


Em um dos trechos mais movimentados da Avenida Faria Lima, em São Paulo, um consultor de segurança grava um vídeo promocional para as redes sociais da empresa CoSecurity. “Se você está andando na calçada e visualiza um poste [com câmeras de vigilância], e você é uma pessoa de bem, se sente mais protegido. Assim como um mal-intencionado vai se sentir monitorado.”

Logo atrás dele, fincado num canteiro, está um exemplar do item de segurança privada da vez nas grandes cidades: os totens de monitoramento. Trata-se de um poste cilíndrico metálico que às vezes bate nos 3 metros de altura, com um conjunto de duas a quatro câmeras no topo, em muitos casos com uma auréola de led acima de tudo.

Na capital paulista, o totem vem se multiplicando rapidamente desde o ano passado. Em regiões mais ricas, como os Jardins, há quarteirões com mais de meia dúzia deles. É um item que traz novidades, algumas delas um tanto controversas, quando não irregulares. O pragmatismo de quem deseja espantar o crime de sua rua, porém, tem falado mais alto, em uma cidade que teve 439 651 registros de roubos e furtos no ano passado, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública.

A piauí identificou nove empresas que oferecem o equipamento na capital paulista. O local da instalação é o primeiro ponto polêmico: fica muitas vezes logo em frente ao muro dos prédios, mas também há casos de instalação na outra ponta da calçada, onde usualmente estão postes de luz.

“Hoje tem muita empresa que faz coisa errada e instala o poste fora de recuo. Isso é uma coisa que prejudica o produto. É preciso respeitar a lei da cidade”, diz Luciano Caruso, cofundador da CoSecurity, empresa do Grupo Haganá que alega ser a pioneira no produto.

No vídeo promocional da sua empresa, porém, um dos postes aparece no meio de um canteiro na calçada. A Prefeitura de São Paulo diz que “quando instalados em espaços públicos, como calçadas e praças, esses equipamentos precisam ter aprovação da CPPU [Comissão de Proteção à Paisagem Urbana]”. A aprovação é caso a caso e, ainda de acordo com a gestão municipal, nenhum pedido do tipo foi recebido.

A instalação em frente aos muros é objeto de questionamento. A prefeitura informou à piauí, em um primeiro momento, que a situação era regular por entender que os postes fazem parte do “mobiliário urbano”, regulamentado pelo decreto 59 671. Bianca Tavolari, professora de direito da FGV e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), contestou: “O mobiliário urbano tem alguma dimensão pública, como um banco ou um relógio. Nesse caso, a função é inteiramente privada. É o prédio que vai se valer das câmeras. Se acontece alguma coisa na rua, o prédio até pode ceder as gravações, mas a câmera não é pública”, diz.

Após novo questionamento, a prefeitura disse que “não há regulamentação específica para instalação desse tipo de equipamento como mobiliário urbano”.

Além disso, praticamente todos os modelos de poste estampam a logomarca de uma das empresas (com cores vibrantes), sem respeitar os ritos legais exigidos pela Lei Cidade Limpa. Segundo a prefeitura, a autorização para a exposição desse tipo de publicidade não foi solicitada por qualquer uma das empresas à Comissão de Proteção à Paisagem Urbana: “A CPPU informa que não há um regramento específico na Lei Cidade Limpa para esse tipo de equipamento. Interessados devem apresentar à Comissão projetos de comunicação visual para que seja avaliada a pertinência de edição de uma resolução sobre o tema.”

Para a pesquisadora Tavolari, a exposição da marca das empresas nos postes é um anúncio publicitário e, portanto, fere a lei. Ainda que haja algum caso pontual que poderia ser enquadrado como exceção, todas as empresas atuam de forma irregular, já que não houve solicitação à prefeitura. “Há exceções para a exposição de nomes, símbolos, ou logotipos, definidas pelo artigo 2º da Lei Cidade Limpa, desde que sejam aprovadas pela Comissão de Proteção à Paisagem Urbana. Não é automático, a Comissão tem que analisar caso a caso”, diz Tavolari.

A instalação do poste nem sempre é cobrada e a mensalidade costuma girar entre 299 e 800 reais.  

Os totens ampliam também as discussões entre os limites da segurança privada. Por lei, as imagens sob custódia das empresas só poderiam ser compartilhadas após um ofício emitido pela delegacia que investiga um crime. A constituição garante, em seu artigo 5º, o direito à privacidade de imagem das pessoas, exceto quando se tratar de uma investigação criminal, daí a necessidade de ofício emitido por um delegado. Também pela lei, essas investigações são atribuições exclusivas das forças públicas de segurança, conforme definido pelo artigo 144 da Constituição. 

Em seu discurso de venda, empresas como a CoSecurity deixam claro que ultrapassam esses limites. “Assim que alertada, nossa equipe acessa as câmeras e inicia seu trabalho de auxiliar a polícia na identificação e até na detenção dos transgressores, levando a investigação para um outro patamar”, informa um vídeo promocional. O cofundador Caruso afirma à piauí que as investigações conduzidas internamente são um diferencial: “O que faz mais a diferença é o trabalho que a gente faz na central. Ali a gente monta as ocorrências, com o compilado da cena do crime e entrega esse compilado para o delegado, o investigador ou pro batalhão da polícia militar. A gente tem esse trabalho, vamos dizer, proativo.”

Para Maíra Zapater, professora de direito penal da Universidade Federal de São Paulo, uma investigação conduzida por uma empresa privada, sem que os ritos legais sejam respeitados, pode até resultar em uma prisão injusta. “Fazer uma investigação nesse formato pode violar o direito à privacidade, o direito à intimidade e pode dar origem a provas ilícitas. É preciso que se assegurem os direitos e garantias de quem está sendo investigado, e não tem como haver controle em uma esfera privada”, diz. 

Outra que adotou processos questionáveis de compartilhamento de imagens é a Gabriel, com mais de 5 500 câmeras espalhadas por São Paulo e pelo Rio. Uma reportagem do Intercept mostrou que a startup mantinha uma rede de troca de informações pelo WhatsApp com forças policiais. “Quando a polícia pedia as imagens do local A, a gente, proativamente, checava a imagem de todas as câmeras no perímetro para enviar à polícia o arquivo completo, com todas as outras câmeras que não tinham sido oficiadas. Naturalmente, isso convergiu, em algum momento, para a criação de um grupo de WhatsApp ou Telegram”, disse Otávio Miranda, sócio da empresa, à piauí

Para botar ordem na casa, os grupos com a polícia, diz Miranda, foram deletados e a empresa criou uma plataforma para que autoridades possam solicitar imagens. Agora, para acessar alguma gravação, é preciso preencher um formulário com a identificação profissional (cargo e delegacia em que trabalha, por exemplo) que fica disponível no site da Gabriel. Ainda segundo Miranda, depois disso, é preciso anexar o Boletim de Ocorrência ao sistema para, enfim, ter acesso ao vídeo. “Foram pouco mais de 300 prisões que a polícia conseguiu realizar com base nas imagens da Grabriel e inocentamos, até agora, oito pessoas. Me orgulho muito de ter colaborado com a soltura de inocentes – não por coincidência, pessoas pretas e pobres”, diz. 

Para Cleber Lopes, professor do departamento de ciências sociais e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança da Universidade Estadual de Londrina, o compartilhamento irrestrito de imagens pode acarretar em perseguições sem base legal. “Esse ‘só’ fornecimento de imagens tem um problema enorme. Isso pode gerar um Estado com um poder gigantesco para tornar uma pessoa suspeita e a gente não sabe como essa troca de informação está sendo feita”, avalia.

É comum que as empresas do ramo tenham policiais ou ex-policiais. No quadro de sócios da Vektran, empresa do setor que informa aos clientes ter 2 mil câmeras, há um policial civil da ativa. Alberto Cunio é, atualmente, escrivão do Setor de Homicídios da Delegacia Seccional de Polícia de Osasco, na região metropolitana de São Paulo. 

A Lei Orgânica da Polícias do Estado de São Paulo, de 1979, proíbe a atividade comercial para agentes da ativa, exceto quando ela se restringe à participação societária, como no caso de Cunio. O artigo 63 da lei diz: “São transgressões disciplinares exercer comércio (…) ou participar de sociedade comercial salvo como acionista, cotista ou comanditário.” 

Apesar da brecha legal, André Zanetic, doutor em ciência política e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entende que há conflito de interesse: “Isso é um pouco contraditório com o exercício da função pública. A gente já viu muitos casos de policiais que usam o cargo para atrair clientes, ainda que ele não exerça efetivamente funções de gestão e seja apenas um acionista”, diz. “É um pouco nebulosa a figura do acionista.”

A piauí tentou contato com Alberto Cunio, mas não obteve resposta. Marcelo Cortelazo, seu sócio e primo, diz que não há conflito. “Ele é escrivão de homicídios, não tem nada a ver com o que a gente faz. Hoje ele praticamente nem opera na empresa. Então não tem nenhum conflito de interesses. E outro detalhe: nós não operamos em Osasco. Meu forte é Jardins, não tem nada a ver com a região em que ele [Cunio] trabalha.” 

Já a Yellowcam faz alarde da relação próxima que mantém com a Polícia Militar. No quadro de funcionários há, ao menos, um ex-PM. Em um vídeo promocional de 2021, um vigilante do “Pelotão More” (o nome usado para batizar a própria central de monitoramento) explica como conseguiu o emprego: “Uma associação dos policiais militares nos apresentou à empresa e agora eu tô dando continuidade no que eu fazia. Eu era policial militar”, diz o homem, que não foi identificado no vídeo “por questões de segurança.” Legalmente, não há restrição a policiais aposentados. A empresa não respondeu aos questionamentos sobre esse assunto. 

Com ou sem poste, o sistema que interliga as câmeras de monitoramento é o mesmo e opera de forma mais ou menos parecida em todas as empresas: as imagens captadas são enviadas em tempo real a uma central de monitoramento e ficam salvas de quinze a trinta dias, a depender da política de armazenamento. Em caso de ocorrência, a central recebe um alerta e avalia o que deve ser feito dali em diante (chamar a polícia, por exemplo). 

A tecnologia entra de forma diferente em cada empresa. “A segurança baseada em inteligência artificial é a nova fronteira da segurança condominial. Usando câmeras, sensores e algoritmos, ela é capaz de detectar e prevenir ameaças de forma mais eficaz do que os métodos tradicionais”, anunciava uma publicação no Instagram da White Segurança. 

No modelo, a inteligência artificial é responsável por emitir o alerta de perigo à central de monitoramento quando há identificação de uma “ação delituosa”, explica o diretor executivo da White, Rodrigo Couto, à piauí. A empresa categoriza seis tipos diferentes de delito, segundo seu próprio site: roubo, sequestro, furto, invasão, vandalismo e “vadiagem”. “Categorizamos como vadiagem os delitos cometidos por usuários de drogas que queiram fazer uso de entorpecentes na área monitorada. O objetivo é evitar que o perímetro protegido seja utilizado para qualquer fim ilícito”, diz Couto. Ele se baseia na Lei das Contravenções Penais, de 1941, que tipifica a “vadiagem” como crime com pena de quinze dias a três meses de prisão.

Renan Domingos, superintendente de tecnologia da RS Vigia, outra empresa que anuncia o uso de IA, afirma que é possível programar a máquina para parâmetros que garantam até 90% de precisão. O sistema é usado, por exemplo, para indicar que uma pessoa está armada. “Eu consigo trabalhar o percentual de assertividade daquele evento. A gente trabalha caso a caso, ambiente a ambiente”, explica.

Para alguns concorrentes, o recurso de inteligência artificial é balela. “Isso não existe. Não tem como, em uma via pública, você diferenciar uma pessoa que sacou uma arma de uma que sacou um guarda-chuva”, afirma Otávio Miranda, da Gabriel. Marcelo Cortelazo, da Vektran, diz algo semelhante: “Eles vendem uma coisa que não está funcionando ainda”.

Caruso diz que a Cosecurity trabalha com IA, mas vê limites na tecnologia: “A inteligência artificial ainda não é um grande contribuidor para [esclarecer] as ocorrências. São muitos alertas falsos para você caçar uma ocorrência verdadeira.” 

Outra tecnologia bastante controversa, e potencialmente ilegal, é o reconhecimento facial. Ele é usado por, pelo menos, duas empresas do setor: a RS Vigia e a White Segurança. Para treinar o sistema, a RS Vigia usa o banco de dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) do Ministério da Justiça e Segurança Pública para mapear rostos de foragidos. “A gente pega as imagens do Sinesp Cidadão, insere pra dentro da nossa plataforma e quando essa pessoa passar por algum totem nosso, o sistema vai receber um alerta”, explicou Renan Domingos. O Ministério da Justiça e Segurança Pública diz não saber que o banco de dados está sendo usado para essa finalidade. Domingos diz que a RS Vigia tem dois postes com essa tecnologia embutida em funcionamento.

A ideia da empresa é, em um segundo momento, criar um banco de imagens próprio, com dados colhidos pelas câmeras particulares: “O objetivo é que tenhamos uma block list que nós criamos, a partir da imagem de pessoas que passaram pelo nosso sistema e que tenham apresentando algum comportamento indevido, ou praticado um ato ilícito. A partir daí, conseguimos emitir um sinal de alerta quando a pessoa voltar a aparecer no sistema”, explica Domingos. Em outras palavras, toda vez que uma pessoa catalogada como suspeita passar em frente a uma câmera com reconhecimento facial, o sistema irá emitir um alerta para a central de monitoramento. 

Filipe Medon, professor de Direito Civil e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio de Janeiro, explica que o reconhecimento facial é uma área que necessita de regulação específica. Ainda assim, ele entende que os planos da RS Vigia violam a Lei Geral da Proteção de Dados, por se tratar de uma coleta desenfreada de informações pessoais sem qualquer tipo de consentimento, ou autorização: “Para tratar dados, você precisa de uma base legal. Isso pode ser o consentimento da pessoa, pode ser eventualmente o cumprimento de uma obrigação legal, ou até mesmo a realização de um estudo por órgão de pesquisa. O titular dos dados tem direito a saber como seu dado é tratado. Isso está previsto na legislação.”

Medon afirma que esse tipo de coleta de informações pode abrir margem para abusos. “Você vai ter um órgão privado realizando uma função de segurança pública, a partir de um mega monitoramento e coleta de dados. Elas têm ali um acervo muito farto para produzir dados. Você sabe para onde as pessoas se movimentam e consegue rastrear uma pessoa.”

Enquanto não há uma regulação mais específica, o próprio poder público se engaja nos novos sistemas. No fim de agosto do ano passado, a Gabriel assinou um termo de colaboração com a Polícia Civil do Rio de Janeiro, a fim de garantir acesso, de forma gratuita, ao sistema de imagens da empresa. Em São Paulo, o programa Muralha Paulista, criado em 2023 pelo governo estadual, firmou parcerias para cessão de imagens com algumas empresas. 

Uma delas é a RS Vigia. “A integração acontece via sistemas. As empresas colocam as imagens dentro do CICC [Centro Integrado de Comando e Controle, da Polícia Civil] e elas são consultadas quando solicitadas. A força pública não fica visualizando em tempo real. É até meio inviável, não tem efetivo para isso”, conta Renan Domingos. 

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse que não poderia comentar o caso até que um decreto, com detalhes sobre o funcionamento do programa, seja publicado, o que ainda não tem previsão para ocorrer. “O compartilhamento de imagens ainda não está funcionando”, disse a assessoria de imprensa da pasta à piauí, por telefone. Domingos, no entanto, alega que a RS Vigia compartilha imagens com o governo estadual por meio do programa Muralha Paulista desde o ano passado. Luciano Caruso, da CoSecurity, também diz que a empresa passou a compartilhar imagens no período. 

A Prefeitura de São Paulo também pretende integrar as câmeras da iniciativa privada ao seu sistema de vigilância. O programa Smart Sampa foi lançado em 2023 com a previsão de instalação de 20 mil câmeras próprias e integração com outras 20 mil câmeras particulares. De acordo com a gestão municipal, um chamamento público será lançado para que “empresas privadas, concessionárias e munícipes” manifestem interesse em compartilhar suas imagens. “A integração tem propósito colaborativo e não há custos para a gestão municipal e colaborador”, diz a prefeitura.

Paul Auster, o acaso e as mudanças climáticas

por


Paul Auster, o acaso e as mudanças climáticas  
RS decretou estado de calamidade pública | Foto: Mauricio Tonetto / Secom

Morreu o grande escritor Paul Auster. O Rio Grande do Sul está em “estado de calamidade pública” por causa das chuvas. Meu amigo Luís Gomes, grande editor da Sulina, é a pessoa que mais lê a obra de Auster entre todas as que eu conheço. Eu gosto dos livros de Auster. O que pode justificar o título deste texto? Auster sempre foi fascinado pelo acaso. Nos seus romances o “e se” parece ser o motor principal. Há quem defenda que as mudanças climáticas em curso no planeta sejam fruto do acaso ou de mecanismos próprios da natureza.

Ver os estragos dos temporais nas cidades gaúchas assusta e entristece: pontes sendo engolidas pelas águas como se fossem de cartão, estradas devoradas como se o asfalto fosse uma casquinha de chocolate, casas levadas como aqueles castelinhos de areia na praia… Cenas que emocionam. São tantas pessoas desabrigadas, perdendo tudo, feridos, mortos, uma tragédia cujas marcas se estenderão pelo tempo. Tudo fruto do acaso? Pode ser que alguém estar na estrada no momento em que uma barreira cai seja acaso. Por que aquela pessoa e não outra? Por que não cinco minutos antes ou depois? Por que a viagem saiu se há estava cancelada? Por que ele e não eu?

Em oito meses o Rio Grande do Sul se vê confrontado a duas das maiores catástrofes naturais da sua história. Falar assim, catástrofe natural, faz pensar em fatalidade, ação aleatória do clima, conjunção de fatores estranhos ao humano, algo que, em determinado época, seria atribuído à ira dos deuses, e em outra, que era a nossa não faz muito, à fúria dos elementos em seus jogos sem um controlador. Num caso, punição do comando; no outro, falta de alguém no comando. Em todos esses casos o único inocente da história era o ser humano.

O fenômeno climático que sacode o mundo, porém, não é casual, está longe de ser o resultado de uma loteria natural. Tem a mão do ser humano. A mão do homem moderno, falocrático, dominador, determinado a controlar a natureza em todos os seus aspectos. A conta chegou. Séculos de intervenção brutal no meio ambiente provocaram as entranhas do organismo vivo que é a Terra. As consequências se revelam de modo violento. Nada, contudo, parece indicar que haverá de parte das autoridades mundiais uma mudança de rumo. Fala-se muito, algumas medidas aparecem, mas, no conjunto, tudo se perpetua. O projeto moderno de subjugação da natureza sempre teve a pretensão de ser o único possível. Como, então, parar ou alterar o rumo?

Paulo Auster se foi. Era um escritor sofisticado, elegante, intenso e, ao mesmo tempo, legível, suave, límpido, contador de histórias muito humanas, cheias de bifurcações, de inesperados, de variações existenciais, frestas que se abriam diante dos personagens, viradas impensadas, jogadas humanas ou da natureza capazes de mudar o jogo, alterar um “destino”, fixar um novo cenário. Em termos climáticos, estamos em novo e impactante cenário. Continuamos a jogar cartas como se nada tivesse acontecido. Precisamos de um Paul Auster que narre este momento que poderia ter o título de um dos seus últimos livros, o alentado “4321” ou 4…3…2…1…

*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.

Fonte:  https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/paul-auster-o-acaso-e-as-mudancas-climaticas/

 

quinta-feira, 2 de maio de 2024

‘The Anxious Generation’: o livro que tira o sono dos pais

Por Leonardo Rodrigues

Menina loira, de costas para a câmera, usa celular. 

 FOTO: h3idi.harman/Flickr - 13.ago.2011


Psicólogo social Jonathan Haidt sustenta que uso de telas por crianças e adolescentes está diretamente relacionado a transtornos mentais

O livro “The Anxious Generation” (“A geração ansiosa”, em português), lançado em inglês no início de abril, traz um alerta para pais de crianças e adolescentes que passaram ou passam parte da fase inicial da vida diante de telas conectadas à internet. Segundo o autor, o psicólogo social Jonathan Haidt, esse hábito está diretamente relacionado ao crescimento da ansiedade, depressão e outros transtornos mentais pelo mundo desde a década de 2010. 

O tom adotado sobre temas que são sensíveis para um grande número de pessoas — infância, tecnologia e saúde mental — manteve o título no topo da lista de mais vendidos de não ficção do jornal americano The New York Times por duas semanas. Mas enquanto algumas reflexões de Haidt reacenderam o debate sobre a responsabilidade das plataformas digitais em problemas sociais, outras foram associadas a puro alarmismo.

Neste texto, o Nexo apresenta as principais ideias de “The Anxious Generation” e detalha como elas se relacionam com as produções que mantêm esse tema no centro do debate público.

Modelos de infância

Jonathan Haidt nasceu em Nova York, nos EUA, em 1963. Doutor em psicologia social pela Universidade da Pensilvânia, ele acumulou experiências como professor e pesquisador na academia até se tornar um estudioso popular do comportamento e das relações sociais em um mundo mais digital, individualizado e em transição. 

Em 2006, publicou “A hipótese da felicidade”, livro em que questionou algumas premissas da realização individual no século 21. Passou a publicar em veículos como a revista The Atlantic e escreveu ainda “A mente moralista: Por que pessoas boas são segregadas por política e religião”, em 2012, e “The Coddling of the American Mind”, em 2018, obra reconhecida por importantes publicações americanas. De lá para cá, se tornou uma voz constante em palestras e outras discussões sobre fenômenos da contemporaneidade.

FOTO: Reprodução / YoutubeO psicólogo social Jonathan Haidt: autor associa uso das redes sociais pelos mais jovens a transtornos mentais

O psicólogo social Jonathan Haidt: autor associa uso das redes sociais pelos mais jovens a transtornos mentais

O alerta de “The Anxious Generation” tem data de nascimento. Trata-se do início da década de 2010, quando a internet móvel de alta velocidade, os iPhones e as redes sociais se popularizaram mundialmente. Pais e avós, que não conviveram com essas ferramentas na infância, de uma nova geração: os nativos digitais. 

Eram crianças e adolescentes até então criados de forma bastante protegida, com menos autonomia para vivenciar o “mundo real” do que seus pais, segundo o livro. Mas essa proteção foi colocada à prova no mundo conectado, onde os limites e os espaços que deveriam ou não ser acessados não estavam tão claros. As mudanças vieram com as longas horas diante das telas, interagindo com entidades virtuais em jogos e feeds. Para Haidt, foi assim que a centralidade da infância migrou da brincadeira para a conectividade, gerando quatro efeitos visíveis:

  • Privação social
  • Privação de sono
  • Fragmentação da atenção
  • Dependência

Segundo Haidt, esse conjunto de comportamentos teve impactos danosos para a saúde mental dessa geração. Dados da American College Health Association compilados no livro mostraram aumentos de 134% e 106%, respectivamente, nas taxas de ansiedade e depressão nos EUA de 2010 a 2019. No caso dos americanos de 12 a 17 anos, a taxa de depressão feminina cresceu 161%, e a masculina, 135%, de 2004 a 2022.

Na comparação entre adolescentes que usavam ou não redes sociais, os transtornos afetam mais o primeiro grupo. A relação entre as duas coisas fica demonstrada, para o psicólogo, quando uma adolescente é exposta a padrões estéticos inalcançáveis nas redes e desenvolve problemas de autoestima. Ou quando um adolescente tem acesso precoce à pornografia e enfrenta problemas de autoconfiança e ansiedade ao se relacionar sexualmente. Na psicologia, não havia precedente claro para essas situações.

Haidt considera que o poder público e as companhias digitais devem ser pressionados por uma mudança nas plataformas. Mas as principais atitudes para reverter o quadro de saúde mental estabelecido devem partir das próprias famílias. Para o psicólogo, há quatro atitudes a serem tomadas:

  • Inibir o acesso a smartphones antes dos 14 anos
  • Inibir o acesso a redes sociais antes dos 16 anos
  • Afastar os celulares do ambiente escolar
  • Estimular a autonomia e o livre brincar durante a infância

Os quatro passos descritos em “The Anxious Generation” serviriam para recuperar bases do período inicial da vida humana. Crianças e adolescentes chegariam à vida adulta mais protegidos da vida digital e mais autônomos para encarar o mundo real.

Alertas se acumulam

A tese do livro está ancorada ao pensamento de outros autores da psicologia social e de outras ciências que se debruçaram sobre o tema. 

Em 2008, o professor Mark Bauerlein escreveu no livro “The Dumbest Generation” ( “A geração mais idiota”, em tradução livre) que o acesso desenfreado à televisão e aos videogames na infância formaria uma geração de “pessoas estúpidas”, pouco capazes de manter a concentração e absorver conhecimento. 

Nove anos depois, a obra “iGen”, de Jean Twenge, examinou hábitos e estilo de vida de americanos nascidos entre 1995 e 2012 para concluir que jovens estavam perdendo maturidade emocional e autonomia ao substituir a interação humana pela virtual. 

Em 2020, a psiquiatra Shimi Kang escreveu “Tecnologia na infância”, na qual aconselhou pais a afastarem seus filhos das telas. O objetivo era assegurar uma boa formação cognitiva e emocional dessas crianças, na linha do trabalho de colegas seus que diagnosticavam e tratavam crianças e adolescentes dependentes da tecnologia.

Mas foi também em 2020 que a pandemia de covid-19 mergulhou crianças e adolescentes ainda mais na hiperconectividade — em muitos casos, como vício. Enquanto algumas plataformas ficavam para trás, outras como o TikTok — rede social mais utilizada por brasileiros de 9 a 17 anos — surgiram para manter uma nova geração diante das telas. Transtornos mentais também se tornaram mais frequentes no período.

FOTO: FOTO: Amanda Perobelli//Reutersprofessora acompanha alunos em sala de aula infantil

Crianças usam tablets durante aula: pandemia acelerou a transição educacional e levou as telas para dentro da escola

Críticos do trabalho de Haidt, no entanto, consideram que o livro não comprovou uma relação de causa e efeito entre a hiperconectividade e os transtornos. Isso porque, na década de 2010, período em que o autor baseia suas observações e pesquisa, a Organização Mundial da Saúde registrou uma tendência de queda nas taxas de suicídio de adolescentes em diversos países citados por Haidt. 

Os índices são apontados por especialistas como dados mais concretos, porque não estão sujeitos à inflação de diagnósticos — a saúde mental se tornou um tema mais presente no debate público nesse período, o que pode intensificar a identificação e a busca por tratamento. 

Outros estudiosos do tema consideram que teses como a de “The Anxious Generation”, ao responsabilizar as plataformas pela crise de saúde mental, ignoram um importante fator econômico: essa é a primeira geração com perspectivas financeiras piores que as de seus pais. E, para um jovem, a ideia turva de um futuro economicamente pior pode contribuir para um quadro de transtorno mental. 

Mas mesmo entre os que discordam de Haidt, contudo, não há dúvida quanto ao fato de que a hiperconectividade alterou a forma de criar — e crescer — no mundo.

Fonte;  https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/04/19/livro-the-anxious-generation-jonathan-haidt?utm_medium=email&utm_campaign=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240502&utm_content=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240502+CID_2eb940daaec1585d3ec05df96d443709&utm_source=Email%20CM&utm_term=The%20Anxious%20Generation%20o%20livro%20que%20tira%20o%20sono%20dos%20pais

Para repatriar cérebros, respeite os cientistas

 Alicia Kowaltowski*

A inteligência artificial como objeto de pesquisa em Saúde nos artigos da  Reciis | ICICT | Fiocruz
Sem pesquisa científica própria, Brasil corre o risco de não ter soberania e desenvolvimento nacionais

Ciência, um processo em que trabalhamos coletivamente para explorar o universo, expandindo nosso conhecimento, é por natureza uma prática colaborativa e mundial. É por isso que é importante para o bom cientista ter experiência internacional imersiva durante sua formação. Trabalhar em projetos científicos no exterior permite que o jovem cientista aprenda novas técnicas e modos de pensar, além de ver diferentes maneiras de fazer perguntas e orientar outros jovens cientistas. Trabalhar no exterior, e junto a diferentes grupos, também permite estabelecer amplas redes de contatos e colaborações pelo mundo afora, que permitirão maior criatividade e avanço do conhecimento quando esses cientistas estabelecerem suas próprias linhas de pesquisa. 

Por esses motivos, e pela importância que trabalhar fora do Brasil teve em minha formação pessoal, sempre incentivei os jovens cientistas no meu grupo a realizarem estágios internacionais, além de ter experiência com diversos supervisores. Sair do ninho faz com que jovens cientistas amadureçam, juntamente com a ciência produzida por eles. E até recentemente não havia perda de cientistas com isso. Os números indicavam claramente que a grande maioria dos cientistas brasileiros voltava ao país para estabelecer grupos de pesquisa permanentes. Observei isso com meus estudantes: a maioria formada nos anos iniciais do meu laboratório estabeleceu carreiras em diferentes estados brasileiros. Essa situação mudou bastante nos últimos anos, em que vi crescer formandos que decidiram ficar no exterior. Ocorre em todo país uma diáspora científica, com a saída de cientistas brasileiros para o exterior. 

Deixo claro que tenho muito orgulho das conquistas e carreiras dos ex-estudantes do meu grupo, tanto daqueles que estão no Brasil quanto daqueles que, por circunstância ou oportunidade, se estabeleceram no exterior. Também tenho clara consciência de que cientistas brasileiros atuando internacionalmente possuem importância para a ciência internacional e nacional, frequentemente estabelecendo vínculos colaborativos fortes com grupos locais. Mas um país que perde mais cientistas do que ganha através de mobilidade internacional, ou que perde mais do que o planejado para seu investimento em formação de pensadores, precisa se preocupar com a atratividade da carreira científica local. Sem isso, corre o risco de não ter soberania e desenvolvimento nacionais, apoiados pela pesquisa científica própria. 

Para atrairmos verdadeiros talentos com permanência, precisamos, antes de mais nada, respeitar e nutrir o trabalho dos cientistas de excelência que já temos

Foi com esse intuito que foi lançado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) o programa Conhecimento Brasil, visando atração e fixação de talentos no território nacional, em instituições de pesquisa tanto públicas quanto privadas. Infelizmente, ao examinar a portaria que estabelece o programa, tenho grandes preocupações sobre sua sustentação e implementação. Programas visando fixação de talentos em ciência precisam ter como alvo cientistas de alto mérito, assegurar que estes tenham condições institucionais para realizar atividades científicas de fronteira e dar segurança para que haja perspectivas a longo prazo para esses indivíduos, sem as quais certamente não vislumbrarão retornar ao país. Não vejo nenhum dos pontos desse tripé fundamental corretamente abordado no programa apresentado.

Não há como cientistas de qualidade vislumbrarem um futuro em pesquisa no Brasil no momento, considerando que a última Chamada Universal para projetos de pesquisa do CNPq se deu com orçamento muito baixo, e em moldes esdrúxulos que requeriam forçosamente a realização de pedidos em grupos, o que dificulta o uso das verbas já enormemente limitantes para a realização de qualquer atividade científica (cerca de R$ 18 mil por ano por pesquisador, no máximo). Também não há como vislumbrar um futuro como cientista num país que tornou a atividade acadêmica tão burocrática que um pesquisador mal tem tempo de pensar. Essa bur(r)ocracia já se faz notável no primeiro passo da carreira, com os rituais absurdos envolvidos nos concursos públicos para contratação de docentes, coibindo a atração de talentos internacionalmente. 

A infraestrutura é também uma preocupação enorme para a continuidade de nossas carreiras. Embora eu trabalhe na maior e provavelmente melhor financiada universidade nacional, lidamos diariamente com condições altamente degeneradas nos nossos laboratórios, com infiltrações, infestações, problemas elétricos, hidráulicos, etc, o que limita nossa capacidade experimental. A situação dos nossos laboratórios piorou notadamente nos últimos anos, ao mesmo tempo que a burocracia para reverter a precariedade do ambiente físico aumentou, levando muitos de nós a nos questionar se seremos sequer capazes de continuar atuando no futuro próximo. O problema de infraestrutura não é abordado na portaria que estabelece o Conhecimento Brasil, em que as aplicações serão feitas por candidatos bolsistas, sem aparente avaliação da habilidade institucional de recebê-los. Esse ponto é preocupante não somente pela precariedade atual de muitas instituições de pesquisa, mas também porque o projeto envolve pesquisadores bolsistas atuando em empresas. Como se garantirá que elas permitirão a realização da pesquisa de fato, e não apenas usarão os jovens bolsistas do programa como força de trabalho?

O programa peca mais ainda na qualificação de candidatos às bolsas e auxílios. Há proibição explícita para pesquisadores que tenham vínculo empregatício no país, portanto, não serão investidos recursos nos corajosos jovens cientistas contratados aqui, mesmo que tenham sido treinados com ampla internacionalização. Em vez disso, se qualificam apenas pessoas brasileiras, com doutorado ou mestrado, que estejam atualmente no exterior. A inclusão de mestres é surpreendente, pois dissertações de mestrado não necessitam de avanço nas fronteiras do conhecimento e, portanto, não qualificam um jovem como cientista. Nem o doutoramento, o primeiro momento da carreira em que é necessário demonstrar avanço do conhecimento mundial, é por si suficiente qualificação para posições de pesquisa de mérito hoje. Jovens cientistas contratados como pesquisadores independentes em nossas excelentes instituições de pesquisa tipicamente precisam ter experiência pós-doutoral, completando assim o extenso treinamento necessário para serem pensadores francamente independentes. 

O fato de o programa Conhecimento Brasil exigir menos qualificação que de pesquisadores nacionais em concursos docentes, ao mesmo tempo que envolve recursos cerca de dez vezes maiores que os investidos na Chamada Universal, para pesquisadores emergentes no país, é um tapa na cara dos jovens cientistas nacionais que possuem a coragem de tentar realizar pesquisa, a despeito dos anos turbulentos e falta de previsibilidade que atravessamos. Os recursos preciosos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) alocados no programa seriam muito melhor investidos se voltados para um programa também inclusivo de jovens cientistas nacionais ou estrangeiros, com destacado mérito, em instituições brasileiras que demonstrem poder abrigar projetos ousados. 

Para atrairmos verdadeiros talentos com permanência, precisamos, antes de mais nada, respeitar e nutrir o trabalho dos cientistas de excelência que já temos. Chega de chamadas populistas e mal planejadas; basta construirmos uma realidade científica atraente que pesquisadores de mérito virão! 

*Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2024/04/30/para-repatriar-cerebros-respeite-os-cientistas-nacionais?utm_medium=email&utm_campaign=30042024_a_nexo&utm_content=30042024_a_nexo+CID_e1696bf0cac32dbe61feb130db71c41a&utm_source=Email%20CM&utm_term=nexo

Fascínio e horror em “Bebê Rena”

 Por Cauana Mestre

De uma marca traumática a outra, o protagonista da nossa tragicomédia contemporânea vai nos ensinando que fascínio e horror são duas faces da mesma moeda, que muitas vezes somos capturados por objetos que não sabemos conjugar com nossos desejos e que para perpetuar nossa relação fantasmática com eles podemos ir muito longe, até que o último grão seja destruído.

Publicado em 02/05/2024 // 1 c


SEM SPOILERS

Uma criança vai ao teatro pela primeira vez. Pede uma pipoca colorida, suco de uva, senta-se confortavelmente na primeira fila e olha para a mãe, entusiasmada pelo movimento, sem conter a energia. Mas de repente as luzes se apagam, as cortinas se abrem e chega ao palco um pirata de voz grave e passos pesados. A plateia fica em silêncio e a potência do teatro atinge a menina, que começa a chorar copiosamente até que a mãe a leve embora. Assisti a essa cena tempos atrás e assim que terminei de ver Bebê Rena me lembrei dela. O impacto da surpresa que se desdobra para o espectador em uma experiência de angústia é o fundamento da série, que nos pede o tempo todo um pouco mais de coragem – até destruir camadas e camadas de expectativas. Ao longo dos primeiros episódios eu esperei que o hilário se consolidasse e que o sofrimento do protagonista fosse exorcizado pela via do humor, mas não é isso que acontece e, como a menina da minha anedota, eu só queria que a força da peça terminasse.

Richard Gadd (na série como Donny Dunn) produz e encena a própria história – do encontro com uma stalker que persegue sua vida a outras situações de abuso. Seu projeto começou em Edimburgo, com um monólogo que depois conquistou plateias ao longo da Europa. Na peça, Martha – a stalker – era representada por um banco vazio no meio do palco. O que dava corpo à violência eram as mensagens que ela lhe enviou no período da perseguição, reproduzidas por multimídias ao longo da peça. Na adaptação para Netflix, Martha é interpretada por Jessica Gunning, que consegue provocar uma mistura tão grande de afetos que é impossível reduzi-la a qualquer determinação.

O diálogo da produção com o teatro precisa ser considerado. Não apenas porque Richard Gadd é um homem do palco e a série se serve disso o tempo todo, mas principalmente porque a direção vai assumindo cada vez mais um tom teatral, pedindo de nós um exercício parecido àquele que o teatro convoca, um esforço corporal às vezes difícil de sustentar. Na história do teatro grego, tragédia e comédia se separam de acordo com suas intenções diante da plateia; enquanto a primeira apresenta, ato por ato, o palco das paixões divinas que terminam em desfortúnios, a segunda se propõe a provocar o riso, trazendo à luz os traços mais ordinários dos homens comuns. No inconsciente, no entanto, tragédia e comédia se entrelaçam e uma não existe sem a outra. Bebê Rena aposta nessa verdade e constrói uma narrativa não apenas reflexiva, mas profundamente conectada com a subjetividade humana.

Martha é uma mulher de meia idade que coleciona passagens pela polícia por perseguir pessoas virtual e fisicamente. Ela conhece Dunny no pub onde ele trabalha; um dia aparece chorando e ele lhe oferece uma bebida, capturando assim a atenção da stalker, que passa a visitá-lo todos os dias e a mandar e-mails incessantemente até que esse contato se torne bastante ameaçador. A partir da história com Martha, Donny Dunn mergulha nas coordenadas de um gozo destrutivo, mortífero, que repetidamente o faz habitar posições objetificadas muito perigosas e ele vai longe para investigá-las. Por que afinal resistia em denunciar aquela mulher? O que havia de seu ali, naquele movimento em direção ao abismo?

Nós nos tornamos efeitos da cultura no instante em que alguém nos insere no mundo discursivo. O percurso de Donny contorna a margem sempre desbotada entre as próprias decisões e os impasses contemporâneos do laço social: o imperativo do sucesso a qualquer custo, a falta de lugar para o luto e a tristeza, a solidão impactante das grandes cidades e da vida capitalista. Sobre tudo isso fica exposta também uma das camadas do machismo que, como estrutura, enrola a todos nós pelos fios da impotência. Quais são as coordenadas da masculinidade que ainda perpetuamos e a partir das quais submetemos meninos e homens ao silêncio?

Donny começa a examinar experiências anteriores, em um movimento equivalente à associação livre de uma análise, quando nos esforçamos para formular nossas próprias perguntas; sua exploração nos conduz a questões sempre vivas sobre a subjetividade. Como é possível que uma situação tão aterrorizante seja ao mesmo tempo sedutora? Por que repetimos destinos sofridos e às vezes insuportáveis?

A psicanálise está às voltas com essa pergunta desde seu nascimento. Freud encontrou pistas nos sonhos dos soldados que voltavam da guerra e que, repetidamente, sonhavam com as atrocidades que haviam testemunhado. Se o sonho realizava um desejo, como ele havia proposto em 1900, como era possível repetir o pesadelo e a angústia de forma tão determinada? Sua resposta é complexa, mas muito lógica: somos habitados pela compulsão à repetição, uma força anterior à possibilidade de desejar, e que nos faz voltar a marcas muito traumáticas mesmo – ou até principalmente – quando temos a possibilidade de avançar para encontrar algo novo. Freud descobre aí um circuito pulsional complicado, que não pode ser esgotado por métodos terapêuticos comuns e nem mesmo pela superação do conteúdo recalcado, seria preciso inventar algo mais. Lacan vai além das proposições freudianas para formular o conceito de gozo, que perpassa toda sua obra e tem muitas apreensões, mas que talvez possamos aqui resumir em uma lógica muito simples: é possível que uma coisa absolutamente desprazerosa no nível da consciência seja vivida com intensa satisfação no inconsciente, o que instala em nosso mundo particular um paradoxo indelével. Essa é a trama desarranjada que fundamenta nossa relação nunca totalmente resolvida com o corpo e com o sexo.

A narrativa de Donny escancara o que há de estranho, de estrangeiro, na relação com o próprio corpo e com os próprios atos. Ela nos lembra da nossa realidade fragmentada, cheia de furos por onde a violência pode passar à revelia das nossas escolhas. De uma marca traumática a outra, o protagonista da nossa tragicomédia contemporânea vai nos ensinando que fascínio e horror são duas faces da mesma moeda, que muitas vezes somos capturados por objetos que não sabemos conjugar com nossos desejos e que para perpetuar nossa relação fantasmática com eles podemos ir muito longe, até que o último grão seja destruído.

Mas, diante dessa amálgama de terror e violência, alguma coisa acontece quando pai e filho podem finalmente dar corpo linguístico ao trauma que compartilham – cada um com sua história. Então Donny pode atravessar o rio onde se afogava para chegar a outra margem, na terra firme e fértil da invenção e do testemunho. Aprender a fazer alguma coisa com as marcas de dor que nos constituem é um dos grandes exercícios da vida. A cena final me diz que Richard Gadd soube como fazer isso ao trocar de lugar: daquele que está sempre a serviço do outro para alguém que pode, finalmente, receber – o drink e o amor.  A fala, precursora da criação, é ainda uma das forças mais curativas à qual temos acesso. É pela via da palavra e da invenção que nos salvamos; como a criança de uma passagem narrada por Freud: com medo do escuro ela pede à tia que converse com ela, pois quando alguém fala, fica mais claro.

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2024/05/02/fascinio-e-horror-em-bebe-rena/