terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O judaísmo de Jesus



‘O amor aos inimigos
não é uma idéia original
de Jesus’.
Entrevista com Mario Saban
Nascido em Buenos Aires em 1966, descendente dos judeus espanhóis expulsos em 1492, Mario Saban é teólogo, advogado e secretário da Entesa Judeocristiana de Cataluña. Autor de numerosos livros, em sua última e talvez mais polêmica obra, "El judaísmo de Jesús", assegura que o Nazareno “não veio fundar religião alguma”, que era um “fariseu” e que não há nada em sua ética que seja original. Nem sequer o “amor aos inimigos”.
A reportagem é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 23-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Por que escolheu um tema e um título tão significativo para o seu livro?
Há muitos anos, comecei a estudar as origens judaicas do cristianismo, mas a verdade é que nunca me atrevi com a figura de Jesus. Tinha uma espécie de temor reverencial. Obviamente, lia profundamente o Novo Testamento, mas não me interessava ver o desenvolvimento do cristianismo posterior à desaparição de Jesus. Aí surge minha primeira obra de 1994, "Las raíces judías del cristianismo", em que faço uma análise a partir do desaparecimento de Jesus até o século II. Depois, fiz outra parte da investigação sobre o judaísmo de Paulo e finalmente outra obra sobre o sábado no cristianismo. Por que o cristianismo mudou o sabbat, o dia do descanso sabático, pelo domingo?

E restava o judaísmo de Jesus.
Exatamente. E há três ou quatro anos, tomei o atrevimento de abordar, por fim, Jesus. Sabia que seria difícil, pois é um personagem muito inclassificável do ponto de vista intelectual. Para conseguir, trabalhei o Novo Testamento de duas formas: literalmente, lendo de forma direta, e equilibrando as ideias por meio dos autores e das diversas teologias. Mas não quis entrar no terreno cristológico, com o problema do Messias, pois, sendo judeu, adverti que o que justamente divide os cristãos e os judeus é o problema de se Jesus é ou foi o Messias, se é ou não Deus. Pulei essa problemática para me centrar na ética, se a ética que Jesus postulou era uma originalidade ou se era a mesma que os judeus sustentavam antigamente.

Porque, o que fica claro desde o começo, é que Jesus foi um judeu. Essencialmente, essa era a sua tese, junto com a ética de Jesus? São essas as ideias fundamentais da sua obra?
Sim. Jesus nasceu e viveu como judeu, portanto, alguém poderia erroneamente pensar que ele reformou a religião judaica. Mas, justamente, o que eu defendo em minha obra é que Jesus não veio fundar nenhuma religião, nem pensou que ia originar o cristianismo. Independentemente se tinha ou não autoconsciência messiânica. O Antigo Testamento e a Torá, praticamente, coincidem com todos os ensinamentos de Jesus. A originalidade é que os ensinamentos de 400 rabinos juntos se encontram todos em Jesus. Tinha um conhecimento sensacional e uma memória prodigiosa de todas as escolas judaicas da época. E, de cada uma, tomava o melhor. Por isso, ele se torna inclassificável.

Muitas vezes, dizemos, a partir da vertente teológica católica, que, em Jesus, há especificidades, originalidades concretas. Por exemplo, o amor aos inimigos. Isso era algo habitual na ética comum daquela época?
Sim. O amor aos inimigos está em todos os textos da tradição judaica. Não é uma postura original. Em Jesus, podemos encontrar ensinamentos que chegam a radicalizar a ética da Torá. Sua ética é mais utópica, exige mais. O sinédrio permitia que qualquer rabino radicalizasse a Torá, não rebaixá-la, mesmo que alguns fizessem isso. Pelo qual, os rabinos puderam corrigir, para cima ou para baixo, os textos da Torá.

Jesus, sempre para cima?
Não, às vezes também flexibilizando. A maioria sim, para cima, radicalmente.

No sabbat, por exemplo, ele rebaixa, não é isso?
Sim, e isso permite ver com quais escolas farisaicas Jesus estava conectado. Por exemplo, a escola de Hillel pedia flexibilidade nas instituições, nas cerimônias, na ética... Quando Jesus diz “o homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem”, está repetindo as palavras de Hillel no Talmud. Jesus também utilizou um texto de um rabino que viveu 100 anos antes.
Ou seja, não há nada do que conhecemos de Jesus que não tenha sido dito antes pelos rabinos judeus?
Ou os rabinos judeus ou a tradição escrita, e, portanto, Jesus não só foi judeu de nascimento, mas também todas as suas fontes eram puramente judaicas.

Por exemplo?
Por exemplo, o tema do divórcio, Jesus aborda do ponto de vista de outra das escolas farisaicas, a de Shamai, muito dura. E admite, então, o divórcio, só em caso de adultério. Por que a Igreja proíbe, se Jesus permite pelo adultério? Em troca, o judaísmo não herdou a postura de Jesus e da Shamai, mas sim a de Hillel: flexibilidade total. E, de fato, no mundo judeu, o divórcio está instituído religiosamente, e uma pessoa divorciada pode voltar a se casar na sinagoga. Muita católicos não sabem disso, mas é assim desde a época de Moisés.

Mas Jesus diz “Moisés disse, a Torá disse, Eu lhes digo...”. Afirmações que, na teologia católica, são apresentadas como uma superação, como um passo além da ética...
Bom, eu demonstro em uma obra sobre a tradição oral hebraica que há muitos rabinos que dizem “Eu vos digo”. E ninguém mudou, ninguém criou uma nova religião por isso. Todas as desculpas de originalidade que o cristianismo necessitou para a independência da religião mãe, que era a judaica, são analisadas no século II, mas até então os seguidores de Cristo não eram conscientes de estar formando uma nova religião. Seguiam um rabino radical, excelente, que inclusive dá luz à interpretação da Torá dos judeus atuais... mas isso não quer dizer que se formasse uma “lei de Cristo”, independentemente na Lei de Moisés. Só no século II se propuseram: como fazemos para nos independizarmos de Jerusalém?

Quem “inventa” o cristianismo é Paulo?
Não o inventa totalmente, mas permite criar um movimento diferente do mundo judeu. Isto é, não é a sua própria teologia, mas sim as consequências da sua teologia as que dão lugar à desvinculação dos gentios seguidores de Jesus de Jerusalém.

Contrariamente ao que Pedro queria.
Sim, e também seguramente contra do que Jesus queria. Jesus criticou os fariseus que vão buscar um prosélito por mar e terra, e Paulo, que era fariseu, filho de fariseus, fez justamente isso que Jesus criticou: buscar prosélitos por mar e terra.

Que diferenças existem entre a ética de Jesus e a de Paulo?
Acredito que a ética de Jesus é a mesma que a de Paulo. Só que Paulo incorpora diferenças culturais do mundo helênico. Paulo falava grego, estudou, se poderia dizer que tinha ido à universidade... Seu auditório era a elite judaica do Império Romano, não os pobres galileus que andavam por aí. Jesus ia ao povo. Por isso, custa mais a Paulo convencer o auditório de Atenas sobre a ideia da ressurreição. Quando tenta, do Areópago, convencer os gregos disso, tomam-lhe por louco. Quem são, então, os primeiros que entendem? Os judeus que viviam na Grécia. Por isso, são os que dizem “Jesus ressuscitou!”. Porque já existia, no marco da teologia judaica, a ideia da ressurreição. Portanto, se esses judeus puderam convencer os pagãos, foi transladando essa ideia.

Em seu livro, você aborda o tema de Jesus como um simples rabino, não como o Filho de Deus e de Maria, a Virgem.
Eu só trato do tema ético, porque, em questões de fé, cada tem a sua verdade. Não existe uma verdade absoluta científica sobre se ele foi o Messias ou não. Os teólogos alemães estão discutindo se ele teve autoconsciência ou não... Mas meu livro, ao chegar a esse limite, para. Como judeu, eu posso aproximar-me só a que Jesus foi um rabino e um profeta. Também entro nas parábolas do Reino, que são quase messianologia obrigatória. Isto é, como um judeu do século I entendia o que é o Reino de Deus.
E o tema é tão complexo, que nenhum cristão comum, mais ainda, nem da hierarquia, nem tampouco do âmbito da teologia pode decifrar conceitualmente o que é o Reino. Diriam que é um reino espiritual, para se lavarem as mãos do problema sobre se os primeiros seguidores viram Jesus como um Messias nacional. Mas, nesse caso, se deveria formular o grupo de Jesus com tendência políticas. De fato, a única pergunta que fazem a Jesus depois de ressuscitado, nos Atos dos Apóstolos, é: “Quando restaurarás o reino de Israel?”. Isto é, seus primeiros seguidores não lhe dizem “Quando vais criar um mundo de paz e amor?”. E aos ouvidos de Roma, “Quando restaurarás o reino de Israel?” é uma rebelião político-militar contra o império.

Um Messias revolucionário.
Para o mundo judeu do século I, Messias é revolução. Daí se pode entender por que o matam na cruz. Em troca, para Paulo, ele se sacrifica pelos pecados do mundo. Mas isso é uma concepção pós-pascal, pós-Jesus. Por isso, ninguém define o Reino do ponto de vista material, só do espiritual. Temos um problema na teologia judaica como na cristã que é saber a que Jesus se referia ao falar do Reino.

Quem matou Jesus?
Os romanos, com a aliança da elite judaico-saducéia do templo de Jerusalém. Com os colaboradores de Roma. Judeus corruptos.

Sei que no seu livro você não entra em questões históricas, mas não resisto a lhe perguntar. Jesus realmente existiu? Há provas de sua existência real?
Eu te diria que sim. Estou convencido 100%, depois de ter estudado tanto Jesus. Porque, se sua ética já preexistia, é óbvio que Jesus conhecia as tradições anteriores. Se se chamava assim ou de outra maneira, é secundário. Mas o que sim é certo é que seus ensinamentos são claramente de um rabino do século I. E é por aí onde se pode ver sua historicidade, a partir de suas discussões, próprias de um rabino que conhecia a teologia da época. Dizer que Jesus não existiu é ridículo. Um rabino como ele teve que existir, chamasse-se como se chamasse. Porque todos os seus ensinamentos estão relacionados com a época.

Historiograficamente não existe nada?
Se pensamos a historicidade de Jesus, entramos em um problema maior: o da historicidade da Bíblia inteira. Que provas temos de que Moisés, Davi ou Paulo existiram? Nenhuma. Precisamos de fontes paralelas para saber que a Bíblia é real? Nesse caso, temos os rolos do Mar Morto, que nos dão uma perspectiva de uma historicidade manifesta de certos personagens.

Está provado que Jesus esteve conectado com o mundo essênio?
Estou convencido de que ele teve que ter contato. Por seus ensinamentos, que se conectam diretamente com os essênios. Por exemplo, no encontro com o jovem rico que quer ser perfeito, ao qual diz que entregue todos seus bens aos pobres. Isso era o que os essênios pediam. Os fariseus só exigiam o dízimo, que os judeus seguem exigindo hoje, que passou para a Igreja e também para o mundo protestante. Além disso, os essênios era apocalípticos iminentes, diziam “a redenção vem”. E Jesus disse que o Reino estava cada vez mais próximo. Os fariseus não tinham essa idéia de que o Reino estava tão presente.
E a terceira prova que o conecta com os essênios é João Batista, seu próprio primo. E ele, indubitavelmente, era essênio, pois existe um paralelismo entre os alimentos que o Novo Testamento diz que João Batista comia e os alimentos que os rolos do Mar Morto dizem que os essênios comiam.
Portanto, há conexão entre Jesus e os movimentos essênios. Ainda que ele não os siga, por exemplo, na postura de se colocar em uma caverna para rezar a Deus, mas, pelo contrário, ele sai ao campo político para pregar. E não no Mar Morto, mas a Galiléia. Por isso, a área de ação de João e dos essênios é diferente da de Jesus.

Como você definiria Jesus, então?
Se tivesse que defini-lo, diria que Jesus é um fariseu, pois o chamam de “rabi”, como chamavam os mestres fariseus, e além disso acredita na ressurreição.

E por que discute tanto com os fariseus?
Porque, em geral, se discute sempre com a família, com os mais próximos. Entre os fariseus, o grande debate era como interpretar melhor a Torá. Queriam chegar ao núcleo e que, quanto mais discutissem, mais se aproximariam. Em troca, a cristologia do século II desmonta toda a história para o debate do livre pensamento judeu do século I, e diz-se que os fariseus foram os inimigos de Jesus, que praticamente o levaram à morte. Mas isso não tem sentido, porque os fariseus não tinham podem em Roma nem no sinédrio. Está claro que Jesus estava fundando uma escola farisaica diferente das demais, mas muitos fariseus o apoiavam.

Como você vê, neste momento, a relação do Vaticano, Bento XVI, com o rabino Neusner? O que você opina sobre a eventual beatificação de Pio XII?
Em primeiro lugar, o eixo central é João XXIII. Com ele se produz na Igreja uma mudança radical com respeito ao tema judeu. Mesmo que o que ele tenha aprovado no Concílio Vaticano II ainda não tenha chegado à Espanha. Pelo contrário, em Roma há sim um espírito muito mais aberto ao diálogo, mais liberal. João Paulo II também deu, sem dúvida, muitíssima força ao diálogo.

Sua visita a Israel, sua oração no Muro...
E o reconhecimento do holocausto judeu na Europa. Sim, João Paulo II avançou muito nesse sentido, mesmo que eu entenda que, para muitos católicos, fosse um Papa conservador internamente. Mas, no diálogo inter-religioso, ele avançou muitíssimo. Como você diz, inclusive pediu perdão no Muro das Lamentações pelos erros da Igreja: Inquisição, Cruzadas... Isso foi uma aproximação muito grande.
Do lado judeu, a aproximação se complica, dado que não temos hierarquias. Mas há, sim, cada vez mais autores judeus, como eu, que se aproximam da figura de Jesus e do cristianismo primitivo. E essa aproximação intelectual é também abertura ao diálogo.

Como um sefardita [1] se sente na Espanha? A Espanha é antissemita?
Existem problemas, ressentimentos, muitos séculos de incompreensão. Isso não acaba de um dia para o outro. A imagem na Espanha do judeu usurário, do judeu que tem dois chifres e um rabo, que só continua na Espanha, por outro lado. E essa imagem, que não existe, por exemplo, na Itália, deve ser combatida. É uma especificidade antijudaica da Espanha, que, muitas vezes, é feita por inércia, sem intenção.

É um palavrão, um lugar comum?
Sim, por exemplo, muitas pessoas dizem “judiada” em seu vocabulário. E certamente não o fazem de propósito, porque há séculos por trás desse clichê. A isso se acrescenta a falta de existência física dos judeus na Espanha, pois, após a expulsão de 1492 e até o século XX, os judeus não voltaram a se mostrar livremente na Espanha. A França, a Alemanha, até a própria Roma, com seu papado, teve judeus durante toda a sua história. Não foi assim na Espanha.
A beatificação de Pio XII pode ser um obstáculo à aproximação?
Eu acho que sim, porque não fica clara qual foi a sua posição.

Você interpreta que, pelo menos, foi o Papa que guardou silêncio?
A problemática é se ele poderia ter feito mais ou não. Se os nazistas o tivessem matado. Se ele não falou para sobreviver como instituição, ou sim, como diz a Igreja, fez muito, mas por debaixo da mesa.

Em Roma, dizem que não fez mais porque podia ter represálias mais fortes por parte do Terceiro Reich contra os judeus.
Mais do que aconteceu já era praticamente imaginável. Além disso, não me é clara a posição que ele tinha dentro da Igreja. A Igreja é uma instituição e, muitas vezes, não se sabe muito bem até onde chega a autonomia do Papa. E, na Segunda Guerra Mundial, ainda há uma Igreja antissemita dentro da Europa. Deve-se ver Pio XII a partir da Igreja dos anos 30, onde permaneciam restos do antijudaísmo medieval, onde ainda não existia diálogo.

Após analisar em profundidade Jesus como um rabino, a sua figura lhe atrai?
Sim, Yoshua me atrai muito. Como judeu do século I, eu o teria seguido. A um cristianismo do século II, paganizado, eu não teria entrado, pois meu judaísmo o impediria, mas, como judeu do século I, fica claro que esse nível de oratória, de entrar na ética de forma direta, teria me seduzido. Claro que sim.
Notas:
1. Sefarditas (em hebraico, sefard; no plural, sefardim) é o termo usado para referir aos descendentes de judeus originários de Portugal, Espanha, etc. A palavra tem origem na denominação hebraica para designar a Península Ibérica (Sefarad). Os sefarditas fugiram das perseguições que lhes foram movidas na Península Ibérica na inquisição espanhola (1478 -1834), onde eram perseguidos pela Igreja Católica, dirigindo-se a vários outros territórios. Uma grande parte fugiu para o norte de África, onde viveram durante séculos. Milhares se refugiaram no Novo Mundo, principalmente Brasil e México. Já os judeus norte-africanos e dos países árabes são chamados mizrachim (de Mizrach, o Oriente), ou seja, orientais.
(Entrevista feita pelo site IHU/UNISINOS, 13/01/2009)

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