quinta-feira, 3 de junho de 2010

“O alimento é o combustível da história”

Entrevista - Tom Standage
Jornalista britânico lança livro no qual defende a tese de que a busca por comida determinou importantes eventos, como a Revolução Industrial e a descoberta da América

Trecho

“A influência dos alimentos sobre a história pode ser similarmente vista como um forcado invisível que, em vários momentos cruciais, incitou a humanidade e alterou seu destino, ainda que as pessoas geralmente não estivessem conscientes dessa influência. Muitas escolhas alimentares feitas no passado tiveram consequências de longo alcance, ajudando a moldar de maneiras inesperadas o mundo em que vivemos hoje. (…) Pode parecer estranho que elas tenham sido um ingrediente tão importante nas questões humanas, mas o contrário seria muito mais surpreendente: afinal de contas, em tudo que fizeram ao longo da história, as pessoas foram literalmente impulsionadas pela comida”.
Uma história comestível da humanidade, de Tom Standage



Se não fosse a vontade de buscar especiarias na distante Índia, os europeus não teriam descoberto a América, e depois o Brasil, no século 15. A praga das batatas, em 1845, na Irlanda, incentivou a Revolução Industrial na Inglaterra, mudando toda a trajetória da economia mundial. Esses e tantos outros episódios da história tiveram um protagonista oculto, nem sempre lembrado pelos pesquisadores: a comida. Para trazer os holofotes de volta para a alimentação, o jornalista Tom Standage, editor de tecnologia da revista The Economist, resolveu escrever o livro Uma história comestível da humanidade (Jorge Zahar). Foram meses de estudo e uma verdadeira viagem no tempo para mostrar o que muitos livros deixaram passar em branco.
Mesmo sendo um especialista na área de ciência e informática, Standage é um apaixonado por história e gastronomia. O interesse já dera origem à obra História do mundo em 6 copos, na qual Tom explica os maiores acontecimentos da humanidade a partir do mundo das bebidas. Depois veio o desejo de estudar a comida, resultando em sua mais recente obra.
Mesmo com uma agenda lotada de compromissos, o escritor britânico, que adora jogar videogames, tocar bateria e beber vinho, concedeu uma entrevista ao Correio. Por e-mail, contou como os sabores e o desenvolvimento da gastronomia influenciaram o mundo em que vivemos. “A comida mudou o curso da civilização. Afinal, tudo o que as pessoas fizeram na história foi abastecido por ela. É o que sustenta a humanidade”, defende.

O que fez o senhor explorar a história da humanidade pela ótica da alimentação?
Eu acredito que o significado da comida na história foi deixado de lado. É fácil não dar muito valor a ela, pelo menos no mundo desenvolvido, onde nós não temos de nos preocupar de onde vai surgir a nossa próxima refeição. Existem muitos livros que dizem como a história mudou a alimentação — “Os europeus chegaram nas Américas, então agora o pessoal de casa pode comer tomate e chocolate!”. Eu queria olhar para as coisas de outro modo: como a comida mudou a história. E realmente ela mudou o curso da civilização. Afinal, tudo o que as pessoas fizeram foi abastecido pela comida. É o que sustenta a história. É o que sustenta a humanidade.

Como a agricultura influenciou a nossa história e a forma como comemos?
A troca do estilo de vida nômade para a acomodação permanente foi a grande mudança na existência desde da evolução moderna. Fomos caçadores durante milhares de anos, milhões, se voltarmos à época dos primeiros primatas, e mudamos de comportamento para sermos fazendeiros. Isso há quase 10 mil anos. O resto, como eles costumam dizer, é história. Quando você permanece em um local por muito tempo, cria cidades, escrita, impérios, a civilização como conhecemos. Foi uma mudança massiva e foi causada pela mudança na nossa produção de alimentos.

A comida continua a movimentar a história?
Com certeza. Desde que a humanidade mudou para o papel de fazendeiro, nós ficamos dependentes da agricultura. O planeta suportaria apenas uma pequena população de caçadores. A agricultura é vital. Algumas pessoas reclamam das grandes indústrias alimentícias e sugerem que nós deveríamos plantar a nossa própria comida. Mas grandes fazendas geralmente são mais eficientes e uma agricultura eficiente significa que uma porção menor da população pode se dedicar à fazenda e os outros podem se dedicar a outras atividades. E veja o desenvolvimento da China e da Índia nos últimos anos. Neste século, nós estamos lidando com o problema da relação comida-clima-população. Eu estou otimista de que podemos lidar com isso, mas eu posso estar errado. Estamos em uma estrada que pode nos levar a dois rumos e a comida pode ser uma das coisas a determinar em que direção devemos ir. O alimento ainda é o combustível da história.

Um dos grandes exemplos de como a comida pode influenciar nossa história foi a busca de Cristóvão Colombo pelas especiarias(1), o que possibilitou a descoberta de um novo continente. A necessidade de alimentos moveu a sociedade humana para a frente?
Sim. Tanto Colombo quanto Vasco da Gama foram motivados, em parte, pelas especiarias. Os dois abriram novas rotas de mercado globais e isso levou ao estabelecimento dos impérios colonizadores. Os efeitos disso podemos perceber ainda hoje. Se isso foi positivo ou negativo, é uma questão de opinião, mas não há dúvidas de que a busca desses ingredientes exóticos mudou o mundo.

Que outros episódios podem ser considerados importantes?
A comida também teve um papel importante para desenvolver a Revolução Industrial e a sua escassez determinou o começo de muitas guerras(2). E, novamente, o aprimoramento nos campos de colheita determinou o avanço da China, da Índia e também do Brasil, nas últimas décadas. Então, a comida ainda tem a habilidade de determinar o curso da história.

Qual é o alimento mais importante na nossa história?
Não existe uma só resposta para essa pergunta. Os grandes são o trigo, o arroz e o milho, considerados os maiores produtos básicos, a “fundação comestível da civilização”. Também devemos citar as especiarias, que interconectaram as culturas do mundo e impulsionaram as viagens de exploração. O açúcar, que começou com o mercado de escravos. As batatas, que deram um gás para a população europeia e traçaram o caminho para a industrialização. Além da evolução verde do trigo e do arroz, que alavancou o desenvolvimento da Índia e da China. Mas se eu tivesse que escolher um, eu acho que seriam mesmo as especiarias.

Qual foi a coisa mais surpreendente que o senhor descobriu durante a sua pesquisa?
Eu acho que a mais interessante, sem dúvida, foi como o fracasso e o sucesso militar dependia da comida. A história militar foi um assunto novo para mim e eu a estava olhando de um ângulo diferente. Também foi particularmente intrigante ver como a propagação da agricultura ainda é visível entre os homens e a linguagem pelo mundo.

A ideia do livro A história do mundo em 6 copos é muito interessante. Como foi o processo de dividir a história dessa forma?
Seja com a comida ou com a bebida, eu gosto do fato de como elas proporcionam uma janela para o passado. Eu gosto da ideia de enxergar a comida e a bebida como relíquias de diferentes períodos do passado que nós podemos encontrar na nossa cozinha. Elas nos permitem ver o passado no presente e o presente no passado. É isso que estou tentando fazer em todos os meus livros.

1 - Especiais
A palavra especiaria vem do vocábulo em latim species, que também é raiz de especial e quer dizer “tipo” ou “variedade”. Ela era usada para determinar itens valiosos sobre as quais era preciso pagar imposto. A Tarifa de Alexandria, documento romano do século 5, lista 54 especiarias, que incluía canela, gengibre, pimenta-branca, cardamomo, agáloco e mirra.

2 - Luta por comida
Em seu livro, Tom Standage conta que a Guerra Fria entre Estados Unidos e a União Soviética foi iniciada de fato com uma luta por comida na disputa pela cidade de Berlim. Em 1948, os soviéticos queriam forçar os aliados ocidentais a deixarem a capital alemã e começaram a interferir na entrega de comida na cidade. A crise se instalou de vez e os americanos começaram a abastecer os 2 milhões de habitantes pelo ar.
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Reportagem: Tatiana Sabadini

Fonte: Correio Braziliense online, 03/06/2010

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