sábado, 21 de julho de 2012

Com um pé na poesia e o outro na filosofia

 

Em seu novo livro, Antonio Cicero defende a separação dos ofícios do poeta e do filósofo. No 7º Festival de Inverno, ele falará sobre as obras de Gilberto Gil e Caetano Veloso

Antonio Cicero é filósofo, poeta e compositor, mas dizer que ele une as três atividades em seu trabalho seria, de acordo com suas próprias palavras, impreciso. Mais certo seria comentar que ele vem alternando, há anos, trabalhos na área da reflexão intelectual (principalmente sobre rumos, personagens e complexidades da MPB) com uma produção ela própria pendente a um tom reflexivo sobre linguagem e memória. Cicero, contudo, reitera que não constrói seus versos com um pé no pensamento filosófico, nem cria ensaios de versos e imagens.

– Costumo dizer que, em mim, o poeta vai embora, quando o filósofo aparece; e que o poeta nem aparece, quando é o filósofo que está presente – comenta, em entrevista a Zero Hora concedida por e-mail.

Cicero virá a Porto Alegre no próximo dia 27, uma sexta-feira, para uma conferência como parte da programação do 7º Festival de Inverno, que se inicia na próxima segunda, dia 23.

Essa necessidade de separação entre os dois ofícios é a pedra de toque de seu livro mais recente, Poesia e Filosofia (Civilização Brasileira, 142 páginas, R$ 29,90). Na contramão de correntes teóricas que buscam promover a conjunção de ambas, Cicero defende que nada poderia ser melhor para a filosofia e para a poesia do que elas serem corretamente discriminadas uma da outra, cada qual com suas próprias e autônomas características e propósitos. Poesia não é expressão racional por meio de uma linguagem metafórica, argumenta, e sim algo completamente diverso em propósitos e forma.

Cicero tem sido um dos grandes defensores da poesia como uma especificidade fora do mundo acelerado da tecnologia. Já afirmou em artigos e entrevistas que a poesia é uma arte exigente, que demanda tempo e mergulho, duas coisas cada vez mais raras no mundo do capital tecnológico contemporâneo. Agravaria o quadro, para a maioria, o fato de a poesia exigir tanto sem uma finalidade específica. Cicero concorda com essa definição, mas a enxerga sob uma luz positiva: não ter uma finalidade ulterior e “não servir para nada” é o que torna a poesia um objeto artístico com um fim em si próprio. É na “inutilidade” da poesia que está sua principal qualidade e sua maior força.

Cicero preza, portanto, as definições e distinções claras. Vale o mesmo para a canção, a peça musical que, para ter status “artístico” ou “literário”, muitas vezes teve de ser submetida a uma controversa análise poética de sua letra – apartada da música que a deveria acompanhar e, portanto, mutilada.

– Não se pode dizer, como muitos diziam antigamente, que a letra boa é aquela que se sustenta sozinha, sem a música. Não: a letra boa é aquela que faz parte de uma boa canção – define.

Canção, letra e música são os temas da conferência que Cicero virá apresentar em Porto Alegre no dia 27, às 17h30min, na Sala Álvaro Moreyra, do Centro Municipal de Cultura (Erico Verissimo, 307). Ele próprio compositor e poeta que já teve obras musicadas, entre outros, pela irmã, a cantora Marina Lima, Cicero virá discorrer sobre dois frequentes interlocutores no cenário da MPB: Gilberto Gil e Caetano Veloso.

– Pretendo falar sobre esse tema a partir de considerações sobre a importância do Tropicalismo não só na música e na poesia, mas na cultura brasileira, de maneira geral – diz.

A 7ª edição do Festival de Inverno, de 23 a 29 de julho, vai reunir shows, apresentações teatrais, palestras, oficinas, cursos, exposições de artes plásticas e espetáculos de dança. Parte da programação tem entrada franca. Em paralelo às tradicionais apresentações musicais que formam a fatia mais pop do evento, palestras e conferências dirigem-se ao universo da literatura e das humanidades.

Cicero é uma das grandes atrações desse eixo do festival em 2012, mas não a única. Os professores locais Antonio Sanseverino, Luis Augusto Fischer e Voltaire Schilling vão ministrar cursos, respectivamente, sobre Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e sobre o mundo árabe. O autor pernambucano Lira Neto estará na cidade para uma palestra sobre sua biografia de Getúlio Vargas, e o argentino Martin Kohan, escritor e teórico da literatura, ministrará uma palestra sobre Cortázar – o mesmo Kohan, autor de romances como Ciências Morais e Segundos Fora, já esteve outras vezes em Porto Alegre para palestras sobre Borges.

A programação completa pode ser vista no portal oficial do evento na internet: www.portoalegre.rs.gov.br/festinverno.

Cultura – O senhor poderia antecipar as linhas gerais de sua conferência no Festival de Inverno? Que aspectos do tema “letra e música em Gil e Caetano” o senhor pretende abordar?

Antonio Cicero –
Pretendo falar sobre esse tema a partir de considerações sobre a importância do Tropicalismo não só na música e na poesia, mas na cultura brasileira de maneira geral.

Cultura – A obra de Caetano já foi algumas vezes analisada como um sopro de ímpeto anárquico ligado ao tempo presente, em contraposição a Chico Buarque, de trajetória mais ligada à tradição do samba e de trabalho de feição mais lírica e formalmente mais convencional. O senhor concorda com essa contraposição? E que espaço Gilberto Gil ocuparia nesse suposto eixo de força com Chico, em um extremo, e Caetano, no outro?

Cicero –
Junto com Caetano, Gil esteve no olho do furacão do Tropicalismo. Ouça-se, por exemplo, Domingo no Parque ou Volks-Volkswagen Blue. E o Gil que conheceu a contracultura (ouçam-se O Sonho Acabou e Expresso 2222) também se encontrava muito distante de Chico Buarque. Isso não quer dizer que eles fossem antagônicos. A parceria de ambos, Cálice, mostra o oposto. Mas a trajetória de Gil sempre esteve muito mais próxima da de Caetano do que da de Chico.

Cultura – Muito se tem falado recentemente sobre uma suposta crise da forma da canção na música brasileira e, no entanto, Caetano, um dos autores que o senhor vai analisar em sua vinda a Porto Alegre, lançou dois discos recentes que o recolocam como um dos grandes persecutores da novidade no cenário musical brasileiro. A canção está em crise de fato ou o diagnóstico é apressado?

Cicero –
Não creio que esteja em crise. O que ocorre é apenas que o surgimento de manifestações musicais que não podem ser classificadas de canções – como as que derivam do rap – relativizam a importância da canção. Antes disso, a música popular era praticamente composta de canções. Agora, ela divide esses recursos com outras formas musicais.

Cultura – No livro Banalogias (2007), Francisco Bosco reflete que a diferença entre um poema e uma letra de música é que esta última teria “uma finalidade compartilhada: o objetivo da letra de música é pôr de pé a canção, letra e música são os fios com que se tece o corpo final da canção”. O corolário da afirmação é que a análise de uma sem a outra será sempre fraturada ou limitada. Como alguém que já trabalhou no processo de musicar sua própria poesia, o senhor compartilha esse entendimento?

Cicero –
Basicamente, sim. Há muito tempo afirmo que a letra de música é heterotélica, isto é, não tem sua finalidade em si própria, mas na canção de que faz parte, enquanto que o poema livresco é autotélico, isto é, tem sua finalidade em si próprio. Assim, não se pode dizer, como muitos diziam antigamente, que a letra boa é aquela que se sustenta sozinha, sem a música. Não: a letra boa é aquela que faz parte de uma boa canção. Por outro lado, é claro que há letras que podem ser lidas como poemas; e há poemas que viram letras de músicas, de modo que não se pode generalizar. É preciso considerar caso por caso.

Cultura – O imbricamento entre letra e música nas canções de Gil é de algum modo diverso daquele percebido nas músicas de Caetano?

Cicero –
Penso que ambos fazem perfeitamente aquilo que se propõem. Nesse ponto, não há superioridade nenhuma de um sobre o outro.

Cultura - Em uma entrevista com Caetano Veloso, Ana de Oliveira postula a participação de ambos na Tropicália nos seguintes termos: “Gil, a antena. Caetano, a liderança”. No caso de artistas com uma colaboração tão prolífica quanto os dois, é possível separar seus papéis dessa forma?

Cicero –
Eu diria que os dois foram antenas. Na verdade, não creio que, na música brasileira, jamais tenha havido antenas – receptoras ou transmissoras – mais eficazes que a de Caetano. Quanto à liderança de Caetano, ela sempre foi reconhecida pelo próprio Gil.

Cultura – Caetano e Gil de algum modo influenciaram um jeito de fazer canção (e de escrever uma letra para ela) ainda em vigor? Ou a radical originalidade de seu trabalho não lançou bases para o que se poderia chamar uma “escola”?

Cicero –
Caetano fez de tudo, de modo que não há nenhum único jeito associado a ele. Já o estilo musical – em particular o violão – de Gil influenciou muita gente. Marina Lima, por exemplo, sempre reconheceu a importância musical do toque de Gil no seu trabalho.

Cultura – O senhor está lançando um livro no qual defende as especificidades de linguagem da poesia em relação à filosofia e vice-versa. Seria assim também com a canção, para retomar o verso irônico de Caetano “Se você tem uma ideia incrível/ É melhor fazer uma canção/ Está provado que só é possível/ Filosofar em alemão”?

Cicero –
Ao dizer que só é possível filosofar em alemão, o verso de Caetano está de fato citando, de modo irônico, como você mesmo diz, uma ideia de Heidegger. Mas veja: uma ideia incrível é, literalmente, uma ideia em que não se pode acreditar. E é uma ideia em que não se pode crer porque é uma ideia indemonstrável. Mas uma ideia incrível é também uma ideia maravilhosa. Pois bem, se você tem uma ideia que, apesar de indemonstrável, é maravilhosa, então é melhor fazer com ela uma canção do que uma filosofia. E quem diz isso concorda com minha tese de que poesia e filosofia não devem ser confundidas.

Cultura – Quem conhecesse seu trabalho como poeta e como um pensador com formação em filosofia pensaria que o senhor concilia as duas formas em seu trabalho, mas é exatamente o inverso o que o senhor dá a entrever em seu livro Poesia e Filosofia. O senhor vê em si duas instâncias de atividade, o poeta e o filósofo, que não se mesclam quando atuam?

Cicero –
Sim. Costumo dizer que, em mim, o poeta vai embora quando o filósofo aparece; e que o poeta nem aparece quando é o filósofo que está presente.

Cultura - Mais de um crítico tem apontado a atual produção poética de jovens autores brasileiros como caracterizada por uma variedade que, muitas vezes, aponta o individualismo como caminho criativo, em que pesem os contatos e diálogos entre jovens poetas por meio de revistas e colaborações. A poesia contemporânea não teria uma linha? Seria uma rede de expressões e formatos sem unidade possível?

Cicero –
Penso que há, de fato, uma saudável pluralidade de vozes na poesia brasileira. Isso é bom.
-----------------------------
Reportagem por: CARLOS ANDRÉ MOREIRA 
Fonte: ZH on line, 21/07/2012
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário