Um dos sociólogos mais originais e controversos da França, Michel Maffesoli viu nas manifestações contra o preço da passagem de ônibus em Porto Alegre
o retorno da mobilização juvenil de uma forma particular: "Não há mais
uma grande causa, a 'sociedade perfeita do amanhã que vamos construir
pela política', mas, ao contrário, a preocupação cotidiana".
Da mesma forma, os protestos contra as posições supostamente homofóbicas e racistas do deputado Marco Feliciano,
para o pensador, se inserem no contexto de um elemento chave da
pós-modernidade: o deslocamento das causas racionais para as emocionais.
Tudo isso tendo como pano de fundo um retorno ao coletivismo, ainda que
de uma forma bastante específica. Iconoclasta, Maffesoli
costuma entrar com conflito com o senso comum intelectual ao afirmar
que o individualismo acabou. Vivemos o tempo das tribos, afirma ele, de
formas de sociabilidade muito sutis e diferentes das modernas. Mas que
se manifestam no desejo de “de estar-junto à toa” – um dos conceitos de
uma lista de definições originais da obra do sociólogo, como
“enraizamento dinâmico”, “socialidade” e “razão sensível”.
A reportagem e a entrevista é de Gabriel Brust, jornalista e mestre em Sociologia pela Université Paris V - Sorbonne, e publicada pelo jornal Zero Hora, 13-04-2013.
Eis a entrevista.
Se estamos impressionados com as manifestações em Porto Alegre, é porque estávamos desacostumados com elas. Houve um momento em que elas desapareceram?
Sim, minha hipótese é de que um pouco por toda parte houve grandes mobilizações políticas nos anos 1960 e 1970, pelo menos na Europa e nos EUA. Mas havia mobilização em função de um projeto, que podia ser a revolução, a reforma ou mesmo a social-democracia. A partir dos anos 80, houve um progressivo e constante enfraquecimento dessas mobilizações. Até o desaparecimento. A palavra usada na França na época foi “indiferentismo”: uma lenta degradação da ação política. Eu explico esse fenômeno no meu livro A Transfiguração do Político (Sulina, 1997). Essa grande figura do político que fazia com que pudéssemos pensar a sociedade do amanhã, o mais tarde, estava acabando.
Por quê?
Minha hipótese é de que nos anos 80 começa o grande ciclo da pós-modernidade. Não é mais o futuro que importa, e sim o presente. Na França, houve uma espécie de lenta e constante degradação do sindicalismo juvenil e dos partidos políticos. É o sinal técnico quantitativo de que não havia mais o sentimento de projeção para o futuro. Em duas ou três décadas vimos [desaparecer] a palavra da moda, de Sartre, “engaje-se!”, que era quase uma obrigação moral, a necessidade de agir por um mundo melhor, perfeito, etc. Esse é o diagnóstico. Agora, o prognóstico: me interessa muito isso que houve em Porto Alegre porque estamos vendo a volta de um processo de mobilização juvenil, mas pelo cotidiano. Não é mais uma grande causa, a “sociedade perfeita do amanhã que vamos construir pela política”, mas, ao contrário, a preocupação cotidiana. Na França, por exemplo, é o movimento contra os aluguéis caros. O que vemos entre os “indignados” não é mais engajamento, porque engajamento é racional. Aqui a indignação é emocional. E o emocional vai ser forte, pontual e processado rapidamente até outro pretexto surgir.
As causas das grandes manifestações no Brasil hoje são, por exemplo, transporte público e a suposta homofobia de um deputado. Manifestações contra a corrupção não são expressivas, mesmo que haja condenados do mensalão presidindo comissões do Congresso.
Isso não me surpreende. As palavras-chave são: racional e emocional. A corrupção é racional. É lutar contra algo que racionalmente não vai bem. No entanto, a homofobia e o casamento homossexual batem no estômago. A pós-modernidade é histérica. Não no sentido pejorativo, mas no sentido do útero, histerus. O que retorna agora é o que está ligado à vida cotidiana. Não o télos, mas a proxémia. Tudo vai ser ocasião, pretexto, para essas grandes indignações coletivas, porque o ar do tempo é emocional. O imaginário está mudando.
Tais movimentos comprovam que o individualismo acabou, como o senhor defende há tempos?
Para mim o individualismo terminou na sociedade “oficiosa”, não na “oficial”. Eu faço a distinção. A sociedade oficial, das instituições, é onde há ainda individualismo, ou seja, é racional. É a famosa ideia cartesiana: eu penso. É a frase mágica para compreender a modernidade e é racional: eu, o indivíduo. E está na base do contrato social, que foi o grande momento da modernidade. Agora, ao contrário, é próprio das emoções esse deslocamento do jogo para o nós. Quando vejo manifestações aqui da minha janela, vejo o “nós”. É o deslocamento do racional para o emocional. É um pretexto para o “estar junto”. Eu chamo de “socialidade sem finalidade ou utilidade”. Há essa espécie de desejo de tocar o outro.
Associar individualismo e internet faz sentido?
É um erro grosseiro. A internet é o “nós”. No Facebook, há o lado da agregação, do estar-junto, de compartilhar fotos. Há o discurso, mas também a foto, o lado emocional. É sempre o desejo de estar em contato com o outro. E não há vida privada. Heidegger foi o primeiro a refletir sobre a técnica e, no fim de sua vida, por pura intuição, sem conhecer a internet (risos), disse que estávamos passando da era do eu para a era do nós. Vejamos o famoso flashmob: ele faz com que, por razões lúdicas, políticas ou festivas, nos encontremos. É um erro ver um retorno ao individualismo graças à internet. É o exato contrário. Há uma grande desconfiança de parte da intelligentsia contra a internet porque percebem que não é mais a razão do indivíduo que predomina, mas as emoções coletivas.
Os partidos políticos pouco têm participado das manifestações no Brasil. Eles estão em vias de extinção?
Na Europa, vemos que a nova geração não se engaja mais. Posso lhe dar um número: quando há eleições de estudantes nas universidades, a taxa de participação é de 1,3%. Em outras eleições, há uma taxa de abstenção muito grande e é particularmente alta na população entre 18 e 24 anos. Meu prognóstico é que isso que chamamos em Sociologia de Forma Política é uma forma do século XIX: mobilização de energias individuais por um projeto futuro. Vemos o colapso dos partidos políticos. O ponto onde essa erosão é maior na França está nas alas jovens dos partidos políticos. No entanto, é porque não há mais essa projeção para o futuro que há, por exemplo, os flashmobs ou o protesto contra o transporte público.
Essa geração de jovens é compreendida?
Não. Eles são o que eu chamo “a sociedade oficiosa”: a sociedade au noir, na sombra, escondida, que não se sente mais representada. Mas que não vai afrontar a sociedade oficial. E vai criar os seus próprios espaços, que eu chamo utopias intersticiais: um lugar para se encontrar, cantar, eventualmente protestar, tirar proveito das reuniões para estar junto. O tripé dos valores modernos da sociedade oficial é: razão, trabalho e progresso. A nova geração acentua não o trabalho, mas a criação. Não o progresso, mas o presente. Não a razão, mas a imaginação. Há um fosso, pelo menos por enquanto, entre o oficial e o oficioso.
Se estamos impressionados com as manifestações em Porto Alegre, é porque estávamos desacostumados com elas. Houve um momento em que elas desapareceram?
Sim, minha hipótese é de que um pouco por toda parte houve grandes mobilizações políticas nos anos 1960 e 1970, pelo menos na Europa e nos EUA. Mas havia mobilização em função de um projeto, que podia ser a revolução, a reforma ou mesmo a social-democracia. A partir dos anos 80, houve um progressivo e constante enfraquecimento dessas mobilizações. Até o desaparecimento. A palavra usada na França na época foi “indiferentismo”: uma lenta degradação da ação política. Eu explico esse fenômeno no meu livro A Transfiguração do Político (Sulina, 1997). Essa grande figura do político que fazia com que pudéssemos pensar a sociedade do amanhã, o mais tarde, estava acabando.
Por quê?
Minha hipótese é de que nos anos 80 começa o grande ciclo da pós-modernidade. Não é mais o futuro que importa, e sim o presente. Na França, houve uma espécie de lenta e constante degradação do sindicalismo juvenil e dos partidos políticos. É o sinal técnico quantitativo de que não havia mais o sentimento de projeção para o futuro. Em duas ou três décadas vimos [desaparecer] a palavra da moda, de Sartre, “engaje-se!”, que era quase uma obrigação moral, a necessidade de agir por um mundo melhor, perfeito, etc. Esse é o diagnóstico. Agora, o prognóstico: me interessa muito isso que houve em Porto Alegre porque estamos vendo a volta de um processo de mobilização juvenil, mas pelo cotidiano. Não é mais uma grande causa, a “sociedade perfeita do amanhã que vamos construir pela política”, mas, ao contrário, a preocupação cotidiana. Na França, por exemplo, é o movimento contra os aluguéis caros. O que vemos entre os “indignados” não é mais engajamento, porque engajamento é racional. Aqui a indignação é emocional. E o emocional vai ser forte, pontual e processado rapidamente até outro pretexto surgir.
As causas das grandes manifestações no Brasil hoje são, por exemplo, transporte público e a suposta homofobia de um deputado. Manifestações contra a corrupção não são expressivas, mesmo que haja condenados do mensalão presidindo comissões do Congresso.
Isso não me surpreende. As palavras-chave são: racional e emocional. A corrupção é racional. É lutar contra algo que racionalmente não vai bem. No entanto, a homofobia e o casamento homossexual batem no estômago. A pós-modernidade é histérica. Não no sentido pejorativo, mas no sentido do útero, histerus. O que retorna agora é o que está ligado à vida cotidiana. Não o télos, mas a proxémia. Tudo vai ser ocasião, pretexto, para essas grandes indignações coletivas, porque o ar do tempo é emocional. O imaginário está mudando.
Tais movimentos comprovam que o individualismo acabou, como o senhor defende há tempos?
Para mim o individualismo terminou na sociedade “oficiosa”, não na “oficial”. Eu faço a distinção. A sociedade oficial, das instituições, é onde há ainda individualismo, ou seja, é racional. É a famosa ideia cartesiana: eu penso. É a frase mágica para compreender a modernidade e é racional: eu, o indivíduo. E está na base do contrato social, que foi o grande momento da modernidade. Agora, ao contrário, é próprio das emoções esse deslocamento do jogo para o nós. Quando vejo manifestações aqui da minha janela, vejo o “nós”. É o deslocamento do racional para o emocional. É um pretexto para o “estar junto”. Eu chamo de “socialidade sem finalidade ou utilidade”. Há essa espécie de desejo de tocar o outro.
Associar individualismo e internet faz sentido?
É um erro grosseiro. A internet é o “nós”. No Facebook, há o lado da agregação, do estar-junto, de compartilhar fotos. Há o discurso, mas também a foto, o lado emocional. É sempre o desejo de estar em contato com o outro. E não há vida privada. Heidegger foi o primeiro a refletir sobre a técnica e, no fim de sua vida, por pura intuição, sem conhecer a internet (risos), disse que estávamos passando da era do eu para a era do nós. Vejamos o famoso flashmob: ele faz com que, por razões lúdicas, políticas ou festivas, nos encontremos. É um erro ver um retorno ao individualismo graças à internet. É o exato contrário. Há uma grande desconfiança de parte da intelligentsia contra a internet porque percebem que não é mais a razão do indivíduo que predomina, mas as emoções coletivas.
Os partidos políticos pouco têm participado das manifestações no Brasil. Eles estão em vias de extinção?
Na Europa, vemos que a nova geração não se engaja mais. Posso lhe dar um número: quando há eleições de estudantes nas universidades, a taxa de participação é de 1,3%. Em outras eleições, há uma taxa de abstenção muito grande e é particularmente alta na população entre 18 e 24 anos. Meu prognóstico é que isso que chamamos em Sociologia de Forma Política é uma forma do século XIX: mobilização de energias individuais por um projeto futuro. Vemos o colapso dos partidos políticos. O ponto onde essa erosão é maior na França está nas alas jovens dos partidos políticos. No entanto, é porque não há mais essa projeção para o futuro que há, por exemplo, os flashmobs ou o protesto contra o transporte público.
Essa geração de jovens é compreendida?
Não. Eles são o que eu chamo “a sociedade oficiosa”: a sociedade au noir, na sombra, escondida, que não se sente mais representada. Mas que não vai afrontar a sociedade oficial. E vai criar os seus próprios espaços, que eu chamo utopias intersticiais: um lugar para se encontrar, cantar, eventualmente protestar, tirar proveito das reuniões para estar junto. O tripé dos valores modernos da sociedade oficial é: razão, trabalho e progresso. A nova geração acentua não o trabalho, mas a criação. Não o progresso, mas o presente. Não a razão, mas a imaginação. Há um fosso, pelo menos por enquanto, entre o oficial e o oficioso.
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Fonte: IHU on line, 15/04/2013
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