sábado, 6 de abril de 2013

Proust e o mundo fragmentado

DONALDO SCHÜLER*


Jeremy Irons e Ornella Mutti como Swann e Odette na adaptação cinematográfica de 1984, dirigida por Volker Schlöndorff

Obra do autor francês põe em questão dissonâncias da subjetividade moderna, recriadas pela arte

Proust nos leva a pensar no século 20 agora que nos distanciamos dele. O estilhaçamento agravou-se em duas guerras mundiais. No início de Em Busca do Tempo Perdido, o narrador fala de uma experiência de infância, o esperado beijo da mãe sem o qual o sono não vinha. A vida do menino dependia do beijo materno. O beijo falava-lhe de outra coisa, de distâncias, da união impossível. Ocupada com outros, a mãe estava perdida. Ruídos vindos da sala aguçavam-lhe o abandono.

O que vemos em Les Demoiselles d´Avignon, em que Picasso revoluciona a pintura do século 20? Discordâncias. Paradoxos. A moldura cerca cinco mulheres ou cinco aspectos da mesma mulher? Em protesto contra o que os olhos veem, Picasso costuma desmontar o percebido, a recomposição toma posição crítica. A cortina aberta não remove véus. À direita do espectador ameaçam máscaras horripilantes. Megeras? Demônios africanos? O feminino destruidor segregado? Se devemos ver sedução nos dois rostos do centro, somos confrontados com a sedução e a repulsão justapostos. Os olhos que deveriam seduzir são olhos de espanto. Atração e recusa concentram-se no mesmo olhar. A mulher da esquerda não ameaça nem seduz. Recusando compromissos, dirige os olhos, num gesto decidido, a um lugar só dela. Picasso quis apresentar uma cena de bordel: confusão de raças, culturas, desejos, paixões, aversões. O bordel nega segurança, abisma no caos. Dioniso e Apolo cindidos, Picasso aventura-se a um cubismo nascente, em luta contra irracionalidades que não consegue dominar.

Em Nu Descendo a Escada, nº.2 (1912), Duchamp opera transformações, somem as formas da natureza. As vinte ou mais posições sucessivas curvam imagens do corpo em movimento, perceptível só na sequência de pontos fixos. A fita cinematográfica, a que Duchamp está atento, desmonta os movimentos da natureza e os remonta justapostos, descontínuos na tela. Duchamp desmembra e remembra em lugar de lembrar. O tempo prende-se à sequência de unidades fixas. Como a flecha de Zenão, parada em um dos pontos inumeráveis, não alcançamos o alvo. Alvo não há.

Contradições conflituam a mente de Bloom, personagem do Ulisses. A cidade de Dublin fragmenta-se em episódios desconectados. De hora em hora a cidade muda de aspecto, dilacerada por interesses peculiares. Imagens voam pela cabeça das personagens. Unidades se fazem e se desfazem como nuvens, não subordinadas ao fim. Para o Ulisses do século 20, Ítaca, lugar de repouso, não existe mais.

No princípio de Em Busca do Tempo Perdido, a vida se organiza em torno do beijo. O narrador não consegue dormir antes. Rola inquieto na cama. Recordações adultas misturam-se com recordações infantis. Pedaços de lembranças, de conversas com ênfase em Swann, amigo da família. O episódio termina com a ousadia do menino de esperar a mãe no corredor. Surpreendido pelo pai, de quem pretendia ocultar o segredo do apego à mãe, descobre um outro pai, pai generoso. Este lhe concede muito mais do que desejava. O pai, antes temido, recomenda à mãe que permaneça com o menino aflito até serenar. O menino sabe que esse momento é único, nunca se repetirá. A mãe passa a noite com ele. Às sete horas da tarde, Combray resumia-se a dois andares: o do leito de dormir e o da reunião familiar.

O narrador passa em seguida ao amor de Swann por Odette. Como poderia relatá-lo se o conflito tinha acontecido antes do seu nascimento? Falando do amor de outros, o narrador continua a exprimir sentimentos seus. Para o narrador o passado está morto: o seu próprio, o dos outros. Diga o que disser, os espíritos a que dá vida vêm do abismo, vêm da morte. A carícia do beijo da mãe tem o efeito do sabor da bolacha, produção de um mundo verbal mais sonoro que o perdido. A madeleine desperta a paisagem exterior, o beijo da mãe enriquece de imagens a fantasia do narrador. A relação de Swann com Odette atrai com o vigor de conflitos inventados. Swann descobre-se enamorado numa noite em que Odette não está. Ela nunca está onde ele gostaria que estivesse. Ressoa o Cântico dos Cânticos nos amores de Swann. Swann procura Odette pelas ruas de Paris como Salomão busca a Sulamita nas ruas de Jerusalém. A pessoa amada valoriza-se depois de perdida. Há sempre a esperança de encontrá-la. O enamorado sofre e se alimenta da esperança. É na esperança que a amada habita. A noite em que Odette não compareceu à casa dos Verdurin perdura ao longo da aventura. Swann alimenta a possibilidade da posse. Nas horas de aconchego, a possibilidade da perda se anuncia, vem o ciúme.

Lembranças do amor provençal? A dama, deixando as alturas de outrora, desce ao ambiente em que vive o enamorado. Odette, esquiva e distante, humilha Swann, na humilhação o narrador se reconhece. Diante de Odette, Swann está em queda como o narrador quando, em menino, aguardava a presença a mãe. Quem é Odette? Objetivamente, uma aventureira seduzida pela riqueza de Swann. O amor apaga essa imagem. As esquivanças de Odette provocam desatinos. A vertigem das idealizações faz com que Swann perca o controle de si mesmo. O amor não é destino, é maldição produzida por quem ama. Swann cultiva o sofrimento. Da infância à maturidade, mudam as circunstâncias, o abismo persiste. Findo o encanto, os olhos se abrem. Na distância, o observador conquista-se a si mesmo, readquire posse sobre si mesmo, readquire a capacidade de raciocinar. Odette fazia tanta falta a Swann quanto a mãe ao narrador, no espelho do episódio evocado, o narrador compreende conflitos seus. Damos com o fluir: a infância desemboca na vida adulta, do amado navegamos para a amada, do exterior ao interior, a continuidade da vida.

O tempo delimita o espaço e o tempo vividos. As lembranças reduzem-se a isso: fragmentos. O narrador acha plausível a lenda celta segundo a qual as almas dos entes que nos deixaram vivem aprisionadas em algum ser inferior (um animal, um vegetal, uma pedra), até o dia em que nos aproximamos do captor. Quando as reconhecemos, quebra-se o encanto. Sensações físicas libertam lembranças aprisionadas. Poderíamos recordar pela memória voluntária, a da inteligência, seria uma realidade morta, que da experiência passada não conserva nada O esforço voluntário de recordar o passado é inútil. A inteligência quebra o que vemos, apalpamos, lembramos, a unidade contínua borbulha em abismos interiores.

O sabor tem o efeito do amor, desperta o significado da vida. O chá desencadeia o poder de criar. O narrador para de sentir-se medíocre, passageiro, mortal. Donde lhe vem essa alegria poderosa? A verdade procurada vive nele. Procurar (chercher) é criar, entrar na luz. A felicidade não se apoia em prova lógica, a felicidade floresce. A essência do passado não está no narrador, a essência é ele. O narrador dá existência a algo que ainda não existe. Cidade, jardins, vivência procedem da xícara de chá.

O narrador, já adulto, recorda a perda. Se a mãe tivesse satisfeito seu desejo, não teria o que contar. Os longos períodos de Proust giram em torno de buracos negros. Há vários. Devoram o mundo fragmentado e o devolvem novo, poeticamente recriado. Todos os abismos dissolvem-se na morte, fluir universal, destino e origem de tudo. A narrativa se avoluma no esforço de conectar o que ela própria estilhaça. A unidade mergulha no indizível.
-----------------
* Escritor e tradutor
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/06/04/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário