sábado, 6 de abril de 2013

Um tempo que não se perde

 
 Proust passou os últimos anos de sua vida dedicado à revisão de 
“Em Busca do Tempo Perdido”. Na foto menor, 
o escritor (sentado) com o dramaturgo Robert de Flers (à esquerda) 
e o escritor Lucien Daudet, em imagem de 1894

No ano em que se completa um século da publicação de “No Caminho de Swann”, Proust ganha nova tradução no Brasil

Proust é pop. Proust é cult. Proust é o autor daqueles sete volumes que muita gente que leu só engrenou depois da segunda tentativa – e muito mais gente não terminou nem o primeiro volume. Proust é, tambem, o autor de uma das obras literárias mais desafiadoras que qualquer leitor poderá encarar, pela forma como plasmou no papel não apenas um retrato de seu tempo, de suas relações, dos costumes e da arte discutida em sua época. Proust conseguiu mais: criar o romance definitivo da memória, do “surgimento da realidade dentro da consciência rememorante, a qual abandonou há tempo as circunstâncias em que se achava em cada momento em que o real acontecia presentemente, vê e ordena o seu conteúdo de uma forma que é totalmente diferente do meramente individual ou subjetivo”, como escreveu Erich Auerbach em Mimesis, seu estudo sobre a representação literária da realidade.

O escritor começou a redigir o romance, uma longa evocação da sociedade que viu e viveu, da infância à idade adulta, em 1909. Publicou trechos de Combray, a primeira parte, no Le Figaro, em 1912, e o primeiro volume, No Caminho de Swann, saiu como livro em novembro de 1913. Tomado pelo frenesi da ideia de transformar o mundo que conhecia em uma obra que atravessasse o tempo, o autor passou seus últimos anos recluso à própria cama, emendando incessantemente seus manuscritos. De saúde frágil, temia não resistir às doenças a que se exporia se voltasse para o mundo mundano que descrevia na literatura. Morreu, ironicamente, após uma das poucas vezes em que decidiu contrariar o hábito e visitar uma exposição. Os três últimos tomos de Em Busca do Tempo Perdido foram publicados postumamente.

Ao transformar a sociedade de seu tempo em um monumento literário, Proust ampliou o caráter do romance como um retrato da burguesia. Como apontou Edward Said em O Estilo Tardio, Proust resgatou “uma forma popular como veículo para uma meditação insistente mas acessível sobre a passagem do tempo da perspectiva da boa sociedade – isto é, da mundanidade, do savoir faire, da graça aristocrática e de certa superfluidade”.

Proust se tornou também mote para livros que viajam além de sua literatura. Em Como Proust Pode Mudar sua Vida, Alain de Botton mescla a biografia do escritor com uma análise de sua obra para retirar ensinamentos que o leitor pode, em tese pôr em prática em sua vida cotidiana. Já Jonah Lerrer, em Proust Era um Neurocientista, afirma que o artifício central do romance proustiano – a reevocação da memória despertada por estímulos sensoriais – antecipou descobertas recentes da neurociência, como o fato de que sentidos como o olfato e o paladar “suportam um fardo de memória singular”.

Proust é pop, é cult, é um clássico moderno, é autoajuda, é física. É um universo. E parte desse universo, que já havia chegado ao Brasil em traduções anteriores de Mario Quintana (e Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e outros) e Fernando Py, terá agora nova versão, pelo jornalista Mario Sergio Conti. O primeiro volume deve ser publicado até o fim deste ano, pela Companhia das Letras.
Cultura – Quem traduz Proust tem de lidar com algo que Mario Quintana, que o traduziu, discutiu muito: a manutenção das frases extensas. Outros defendem que, em nome da legibilidade, é necessário fracionar as sentenças em mais de uma. Qual sua opção?

Mário Sérgio Conti – Mantenho a extensão das frases. Agora, a questão das frases tem de ser vista com um certo cuidado. Foi feito um estudo, em três volumes, nos anos 1980, um dos primeiros a usar computadores para isso, sobre a extensão das frases do Proust. Elas são longas, mas são poucas as que são realmente longas. Tem uma que, se você colocar em um plano horizontal, tem quatro metros. Mas só 5% das frases são tão longas. Acho que tem que manter, porque esse tipo de recurso faz parte do estilo do Proust escrever.

Cultura – Como o senhor tem trabalhado com as outras traduções da obra?

Conti – Tem a tradução que foi coordenada pelo Mario Quintana, que fez ele próprio os primeiros volumes e depois a tarefa ficou com uma equipe que incluía o Bandeira, o Drummond. É a tradução da Globo, só que essa versão tem mais de 50 anos. Ela começou a ser feita no final dos anos 1940, em um momento em que já havia estudos sobre a obra do Proust, mas não eram numerosos, nem havia uma edição crítica da Recherche. Foi um trabalho heroico do Quintana e do pessoal todo, mas ainda sem os instrumentos mais rigorosos sobre o que é a Recherche, que depois foram feitos em edições mais críticas. Nesse campo das edições de Proust há de tudo. A maioria é fetichista, caça-níquel, ou são demasiado específicas, mas há a edição da Pleiade, que começou a ser feita no final dos anos 1980 pelo Jean-Yves Tadié, e que realmente tem ali contexto, ligações, até o texto muda, porque com todas as descobertas que foram feitas depois em estudos dos manuscritos, mudou. A tradução do Mario Quintana, repito, foi heroica e feita por pessoas muito capazes, mas sem esse aparato que ajudasse. E o Mario Quintana não tinha formação universitária e nunca foi à França, então a tradução dele tem um problema em reproduzir a sonoridade do Proust, algo de que ele passa ao largo. E há regionalismos. Ele traduz À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs por À Sombra das Raparigas em Flor. “Rapariga” é um termo que não se usa, em São Paulo e talvez na maior parte do Brasil. Usa-se “moças” ou “jovens”. Então eu tento fazer uma tradução mais adaptada ao português de hoje, , sem fugir do vocabulário do Proust, que é do início do século 20, não é bem o francês de hoje.

Cultura – Millôr Fernandes escreveu um texto bastante conhecido em que apontava um problema na tradução do último volume, não assinado por Quintana, em um trecho no qual Marcel compara as pernas pouco firmes do envelhecido duque de Guermantes a as pernas de pau usadas por artistas de circo.

Conti – A tradução da Globo tem erros que não são responsabilidade única dos tradutores, e que procuro corrigir. Tem uma hora em que ele fala que, no quarto dele, em Combray, há uma lareira com mármore de Siena. Siena, a cidade na Itália. E passou “mármore de Viena”, e isso continuou apesar de todas as revisões feitas desde então. Tem vários desses deslizes. A morte do Bergotte, em A Prisioneira: no original, ele é definido como “artiste athée”, “artista ateu”. Na tradução, mesmo na edição nova, está “artista culto”. Aí não há ambiguidade nenhuma. “Athée” é ateu, e botaram “culto”. Sei lá se naquela época, em um país católico, não se podia pôr um personagem ateu ou se é erro mesmo. Então tento, na medida das minhas forças, reproduzir o que Proust escreveu.

Cultura – O senhor falou que essa primeira tradução, hoje na 15ª edição, foi feita sem acesso a uma profusão de bibliografia hoje disponível. Dada a montanha de papel já escrita sobre Proust, tal quantidade de informações não tem seu lado intimidador?

Conti – Olha, não, porque aí é preciso fazer uma seleção, ver o que é bom e ruim. O maior desafio mesmo é o livro, é um romance excelente e paradoxalmente de fácil compreensão, porque não tem nenhum torneio de retórica, é aquilo mesmo. O que é necessário é você esclarecer certos nomes, certas pessoas que ele cita e manter a fidelidade ao texto original. Você tem razão: a exegese é uma coisa enorme, e boa parte é o que os franceses chamam de “crítica genética”. Principalmente as universidades francesas, elas pegam tudo o que o Proust já escreveu e tentam fazer ligações. O argumento é que tudo é a obra, tudo está interligado, mesmo os livros que ele começou e abandonou, que são, principalmente, Contra Saint-Beuve e Jean Santeuil. É importante saber desses livros e lê-los, mas não necessariamente deixar que eles interfiram na Recherche... Então tem que se partir da obra tal como ela foi deixada e editada depois pelo irmão do Proust, Robert.

Cultura – No caso de Proust, um autor tão consciente do que fazia, não foi prejudicial que seus últimos livros tenham saído postumamente, sem que ele pudesse completar a revisão obsessiva a que vinha se dedicando?

Conti – O livro que ele começou a escrever é bem diferente do livro publicado. Ele queria fazer três volumes, aí vem a I Guerra, o papel escasseia e o editor dele foge para a Suíça para não ser convocado. Então ele aproveita esses anos para reformular o livro e fazer uma coisa completamente diferente. Os três volumes viram sete. É uma dúvida. E se ele vivesse mais cinco anos? Revisaria e publicaria tal como o conhecemos? Talvez sim, porque ele era um cara que ia sempre emendando e emendando. Todo o episódio da Albertine não estava planejado. Ele escreveu o livro inteiro ao mesmo tempo, chega a dizer isso em algumas cartas. Escrevia naqueles cadernos uma parte que vinha depois, aí uma que vinha antes, depois ia montando. O fato é que ele diz para Céleste Albaret, sua governanta: “Posso morrer tranquilo porque escrevi a palavra fim”. E realmente, nos manuscritos vê-se que ele conclui o Temps Retrouvé com a palavra “tempo” e coloca “fim”. É uma indicação de que era o que ele queria. Tendo mais tempo, talvez mudasse, mas concluir, concluiu.

Cultura – O senhor comentou que a tradução de Quintana negligencia a musicalidade da obra. Quais os desafios para mantê-la?

Conti – Tradução é um jogo de ganhar e perder, mas é possível manter a sonoridade. O Proust, na Recherche, escreveu rápido. Ele escreveu aquilo em um jato e passou anos depois fazendo adições. Nunca cortava, ou cortava pouquíssimo, então é possível manter essa música. E como português e francês são idiomas latinos, que têm uma construção semelhante, é possível fazer isso. O livro foi traduzido nos idiomas mais variados, então dá para fazer. Mas o que eu balizo mesmo é a fidelidade ao texto e, onde for necessário, coloco notas. Manter a fluência do texto, isso sim é difícil. Porque você não pode colocar muitas vírgulas, não pode colocar ponto nunca. A pontuação dele é um pouco esquisita, não respeita sempre as normas francesas... E não pode ser um trabalho técnico, tem que ter essa combinação de descrição, narração e raciocínio. Porque tem a questão do narrador. O narrador não é o Proust, é outra pessoa. O livro de certa forma é escrito contra o narrador, o narrador não tem certezas, ele está mergulhado em circunstâncias que lhe são alheias, não é senhor de si. Então há essa dicotomia que precisa ser preservada.

Cultura – Proust mostra a sociedade como um teatro em que cada um desempenha um papel que contradiz o tumulto interior. Mesmo que essa sociedade tenha mudado, esse embate entre a disposição interna do personagem e o teatro da vida social permanece?

Conti – E só aumenta. O livro do Proust fica e aumenta. Traduções para o japonês, para o chinês, e vai aumentando. Em Portugal tem umas quatro versões. Na Itália também. O que ele escreveu diz respeito ao hoje: o papel da pessoa, o que ela sabe, o que não sabe, a construção de uma sociedade a partir dos personagens, isso o Proust mostra, fora do ponto de vista dele, o de um burguês que vivia de rendas. Certos temas são tão universais, tão abstratos, que, para além do amor, dos salões, dessas coisas que mudam de país para país e de época para época, há ali um núcleo em que ele discute como essas questões podem influenciar ou construir as pessoas, e isso ainda vale. Ele fala do caso Dreyfus, e não há hoje um caso Dreyfus, mas existem questões de justiça ou de organização social ou de luta política que estão ainda presentes e nos dizem respeito.

Cultura – Essa é uma obra de extrema introspecção, na qual o narrador dedica um bom tempo a uma atividade ela própria em baixa nos dias de hoje: ouvir a si mesmo. Esse talvez seja um problema que o livro tenha de enfrentar daqui para diante?

Conti – Olha, eu acho que sim, mas com mais nuanças. É curioso o quanto esses livros fenômenos de público para adolescentes são grandes, não? Essas sagas de vampiro, essas coisas, são livros enormes, para não falar nos antigos, como Tolkien, C.S. Lewis. Então, apesar de toda a dispersão da vida contemporânea, as múltiplas sereias que existem para você não se concentrar, talvez haja ainda essa vontade de ler uma narrativa longa, que tente dar conta de um ambiente, de uma sociedade, do raciocínio e do sentimento de uma pessoa. Isso talvez explique toda a repercussão do Proust até hoje. Há autores que escreveram muito, Balzac, por exemplo, mas acredito que o Proust hoje tenha mais repercussão. Para não falar de um caso mais evidente, como Saint-Simon, que pouca gente hoje em dia lê. Proust não é uma coisa sagrada e mumificada, é algo vivo, diz respeito à sociedade de hoje, às pessoas de hoje. E se você começa a ler, a coisa vai. Há uma dificuldade inicial, porque a primeira parte, Combray, é talvez a mais difícil, aquele sujeito com insônia falando de uma coisa um tanto abstrata, os lugares por onde ele esteve... Mas quando começa o segundo capítulo, Um Amor de Swann, aí é um romance clássico, e a partir daí ele vai combinando as duas coisas. Se você passa essa dificuldade das páginas iniciais, você engata e vai.
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Reportagem por  CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Fonte: ZH on line, 06/04/2013

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