Pasquale Cipro Neto*
A espádua alada do nadador
de Cecília é a bela imagem com que a poetisa
transforma
o nadador
em voador
NA PROVA DE 2009, a Unesp abordou dois poemas. O primeiro deles é "Nadador", da professora, tradutora e poetisa fluminense Cecília Meireles (1901-1964):
"O que me encanta é a linha alada /
das tuas espáduas, e a curva /
que descreves, pássaro da água! /
É a tua fina, ágil cintura, e esse adeus da tua garganta /
para cemitérios de espuma! /
É a despedida, que me encanta, /
quando te desprendes ao vento, /
fiel à queda, rápida e branda. /
E apenas por estar prevendo, /
longe, na eternidade da água, /
sobreviver teu movimento...".
A segunda obra é "O salto tripartido", do engenheiro calculista (participou da construção de Brasília), crítico de arte, dramaturgo, professor e poeta pernambucano Joaquim Cardozo:
"Havia um arco projetado no solo /
Para ser recomposto em três curvas aéreas, /
Havia um voo abandonado no chão /
À espera das asas de um pássaro; /
Havia três pontos incertos na pista /
Que seriam contatos de pés instantâneos. /
Três jatos de fonte, contudo, ainda secos, /
Três impulsos plantados querendo nascer. /
Era tudo assim expectativo e plano /
Tudo além somente perspectivo e inerte; /
Quando Ademar Ferreira, com perfeição olímpica, /
Executou, em relevo, o mais alto, /
-Em notas de arpejo /
- Em ritmo iâmbico /
O tripartido salto".
O adjetivo "iâmbico" (de "ritmo iâmbico") diz respeito a "iambo", que, entre outros, tem este significado ("Aurélio"): "Na poesia grega e na latina, pé de verso constituído de uma sílaba breve e outra longa". Se pensarmos que o Ademar Ferreira do poema de Cardozo é ninguém menos do que o monumental Adhemar (com "h") Ferreira da Silva, bicampeão olímpico (no salto triplo), compreenderemos o que o poeta quis dizer com "ritmo iâmbico".
Pois bem. O enunciado da primeira questão é este: "Embora a natação seja um esporte da água e o salto tríplice um esporte do solo, envolvem também manobras no plano do ar (o salto de partida, na natação, e os três saltos seguidos, no salto tríplice), o que permite entender, nos poemas apresentados, a utilização de imagens que podem ser consideradas "aéreas". Aponte duas palavras ou expressões da primeira estrofe (primeiros três versos) do poema de Cecília e duas palavras ou expressões da primeira estrofe (primeiros quatro versos) do poema de Cardozo que exprimem noções relacionadas com o plano do ar".
Chama a atenção o extremo didatismo da banca ao deixar claro o que é estrofe. Será que a garotada não sabe o que é isso? Elaiá! Minudências (do enunciado) à parte, tenho a ligeira impressão de que a banca elaborou essa questão com um escopo único: saber se os meninos sabem o que significam "alada" e, por extensão, "espáduas" (de "a linha alada das tuas espáduas"). Digo isso porque as demais respostas ("pássaro da água", "três curvas aéreas", "voo abandonado" e "asas de um pássaro") são evidentíssimas.
Pois a espádua ("a omoplata e as partes moles que a revestem") alada ("que tem asas") do nadador é a bela imagem com que a poetisa transforma o nadador em voador ("pássaro da água"). Se juntarmos a essa imagem as que Cardozo cria para falar do salto de Adhemar ("três pontos incertos", que se refere aos pontos da pista que seriam/foram tocados pelo atleta; "três jatos de fonte ainda secos", que estabelece semelhança entre cada um dos saltos e os jatos d'água de uma fonte; "três impulsos plantados querendo nascer", que se refere ao instante e ao movimento que antecedem a explosão de cada um dos três saltos), teremos uma belíssima mostra de como a poesia pode ser a pura expressão do real e do imaginário de todos nós. É isso.
Fonte: Folha online - 05/11/2009
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