Roberto Romano*
Quando terminou a ditadura (civil e militar), a Lei de Anistia foi publicada e aceita universalmente. Líderes da oposição e antigos integrantes da guerrilha, urbana ou rural, retornaram ao mundo político, aos partidos, aos governos e parlamentos. O trabalho iniciado por organismos como o de Justiça e Paz não tiveram sequência no âmbito das instituições. Com o advento do poder civil, não foram desmanteladas as formas de controle e vigilância definidas pela “segurança nacional”. Ainda nos anos oitenta, reuniões públicas eram seguidas por agentes estatais que anotavam nomes, discursos, conexões estabelecidas entre os “subversivos”. Quase uma década se passou, mas foram mantidos os instrumentos excepcionais de repressão. A tortura, marca do poder instituído em 1964 e piorado em 1968, foi abolida em relação aos suspeitos de crime político. Mas ela continua até hoje, sem maiores mudanças, no tratamento aplicado aos presos comuns, sobretudo aos pobres e negros jovens.
A Constituição de 1988 se enquadra na lógica da transição negociada entre os regimes (ditadura para o Estado de Direito): ela não resultou de uma Assembléia Nacional Constituinte, mas foi o produto de um Congresso que se apoderou das prerrogativas de instaurador constitucional. Boa parte dos antigos civis que apoiaram o mando ditatorial permaneceu no Legislativo, liderando o governo de José Sarney, ele mesmo líder inconteste da ditadura durante anos a fio. Deste modo, a Constituição foi tecida por vontades e inteligências que seguiam rumos opostos. Uma delas pregava o Estado democrático de Direito, a outra pendia para o Estado de direito. O “democrático” faz a diferença, porque em semelhante concepção os aspectos sociais recebem preeminência. Como nenhum dos lados possuía condições de impor seu modelo constitucional, resultou um texto que mescla elementos de ambos os paradigmas. O desastre foi previsto por um de seus maiores beneficiários, logo no instante em que a Carta era proclamada, o presidente Sarney: “com esta Constituição, o país será ingovernável”. (Consultor Jurídico, 14/9/2008). O mesmo político apelida a Carta como um “Frankenstein” jurídico. Assim que ela foi promulgada, começaram as emendas que tendem a conduzir o seu todo textual para um rumo ou outro, para as doutrinas sobre o Estado democrático de Direito ou para o Estado de Direito.
Sempre dirigidos pelo suposto realismo da Razão de Estado, os políticos e os partidos, de direita ou esquerda, pouco ou nada fizeram para garantir uma pauta de direitos humanos capaz de remediar os males ocorridos no regime de exceção. O Partido dos Trabalhadores não assinou o documento de 88, mas os seus motivos não se ligam de imediato à punição dos desmandos policiais da ordem ditatorial.
Entre os benefícios trazidos pela Carta, temos a autonomia do Ministério Público. Tal instituição tem sido um baluarte na defesa dos direitos humanos e, não por acaso, é vítima de todos os partidos e tendências políticas que lhe desejam impor amarras e mordaças. No STF se encontra, por exemplo, o caso Celso Daniel, cujo desfecho definirá a competência, ou não, dos promotores e procuradores da república para investigar crimes e atentados contra a cidadania. De qualquer modo, entre a Lei de Anistia, a edição da Carta e o pleno desenvolvimento do Ministério Público, quase duas décadas se passaram. E no intervalo ninguém assumiu a tarefa de, em nome do Estado, investigar e punir os crimes de tortura e conexos. Salvo movimentos civis com maior ou menor audiência popular, até mesmo a Igreja Católica, sob direção conservadora de João Paulo II, amainou as buscas e as iniciativas de punição.
Um problema que implica toda a sociedade e todo o Estado foi posto em surdina, com aval das forças que, teoricamente, deveriam liderar a sua resolução. No fim do governo Lula, o Executivo propõe rever a lei de anistia, mas foge da objetividade e confunde temas diferentes. É o que analisarei no próximo artigo.
*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp
Fonte: Correio Popular online,13/01/2010
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