domingo, 10 de janeiro de 2010

Corruptos anônimos

Jaime Pinsky*
pinskyeditoracontexto.com.br


Cada um de nós já se deparou com um ex-alcoólico. O camarada sabe exatamente o número de dias que está sem beber, não se aproxima de uma taça de vinho ou de um copo de cerveja, evita situações em que possa ser tentado por um drinque. Sabe, por experiência própria e de seus colegas, que não é um abstêmio. Mesmo 20 anos depois de parar de beber. Foi e continua sendo um alcoólico e necessita fiscalizar-se todos os dias, 24 horas por dia, porque nunca conseguirá beber “socialmente”. Se tomar uma, tomará todas. É um autêntico alcoólico anônimo.

E os gordos, então? Quem já foi gordinho na adolescência vai se ver eternamente como um gordo. Conheço um fulano que era muito guloso na infância. Quando ia a festas de coleguinhas de escola, fazia a alegria das mães que se aventuravam a preparar sozinhas os salgadinhos sem recheio e os brigadeiros gosmentos e superaçucarados. Enquanto a turma disputava corrida de saco ou brincava de esconde-esconde, ele, feito uma draga, detonava a mesa de comida. Quando chegou aos 16 anos e viu não ter sucesso com as garotas, tomou a decisão de emagrecer. Fechou a boca, fez judô, natação, corrida, musculação, alongamento e tornou-se um gato, no parecer das meninas.

Namorou todas que pôde (e até algumas que não pôde, mas namorou assim mesmo), casou-se, teve filhos, tornou-se empresário de sucesso, magérrimo, com o rosto até um pouco chupado. Mesmo assim, até hoje conta calorias. Jantar com ele é um tormento, já que fiscaliza o número de azeitonas comidas pelos convivas, ou dispara um número sobre as prováveis gorduras que aquele filé traz consigo. É um verdadeiro gordo anônimo. Mais de duas décadas passadas após seu período de “robustez” não foram suficientes para fazê-lo acreditar no espelho. O fato é que se conhece. Sabe que continua amando comida, especialmente doces, e que qualquer pequeno abuso poderá levá-lo a reincidir e voltar a ser gordo. Por se conhecer, se cuida.

Nelson Rodrigues, com seu talento, descreveu em várias peças um tipo que poderíamos caracterizar como o devasso anônimo. Uma figura que destila moral o tempo todo, revolta-se contra o biquíni, o vestido curto, a calça comprida feminina (particularmente quando justa), a liberdade de costumes, o sexo prazeroso. Todos nós conhecemos certos pais de família que, quando solteiros, foram predadores sacanas que conquistavam e largavam garotas inocentes e nem sequer pagavam o aborto quando a coitada engravidava. Pois esse tipinho, agora, controla os horários das filhas, fiscaliza suas gavetas com chaves falsas que mandou fazer, pergunta ao farmacêutico da esquina se a menina compra pílula anticoncepcional. Sua relação com a mulher é fria e burocrática, prazer para ele é sinônimo de pecado. Numa festa não consegue olhar as demais mulheres nos olhos, resmunga contra os decotes excessivos, os vestidos de alcinha, o tecido marcando a calcinha. Continua um devasso, não praticante, mas pronto para cair na gandaia, que sabe, inevitável, se se deixar tentar. Não é um moralista, é um devasso anônimo. Ou melhor, o moralista é devasso anônimo...

Quando trabalhava numa universidade no interior paulista, tinha um colega que chegava diariamente às 8h da manhã, saía às 12h para almoçar, voltava às 13h e ficava trabalhando até as 18h horas, a não ser em dias de aula. Como a maioria dos colegas se permitia horários bem mais elásticos (alguns porque trabalhavam em casa ou em arquivos, outros porque não trabalhavam mesmo) perguntei-lhe o porquê de seu comportamento. Disse-me ser um cara preguiçoso e desorganizado. A vida toda sua escrivaninha foi uma bagunça e sua condescendência para consigo mesmo não tinha limites. A duras penas terminou a faculdade. Quando entrou no mestrado, transformou-se num legítimo CDF, mas, com medo de reincidir e voltar ao que tinha sido. Pronto, eu havia encontrado o preguiçoso anônimo.

Como vê, meu leitor, a lista é muito extensa. Dizem até que pode incluir um espécime bastante comum no Planalto (neste e em vários outros), o corrupto anônimo. O tipo já foi pilhado, há algum tempo, apropriando-se de bens públicos, arrependeu-se, pediu perdão e foi perdoado. Passou a criticar corruptos e corruptores e a apresentar-se como modelo de virtudes. Durante bom tempo ficou longe da tentação de aumentar fácil e rapidamente o seu patrimônio, utilizando-se de funções públicas. Tinha medo de não poder resistir. Mas, ao contrário de alcoólicos, gordos, devassos e preguiçosos, conta com um trunfo: se reincidir será novamente perdoado. Afinal, brasileiro tem memória curta mesmo.

*Historiador e editor, livre docente pela USP e professor titular da Unicamp
FONTE: Correio Braziliense online, 10/01/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário