THE NEW YORK TIMES - “Você esteve no Afeganistão”, disse um homem de meia idade quando o médico entrou na sala. O médico, que acabara de retornar da Guerra Anglo-Afegã, ficou impressionado com a perspicácia. Mas antes que pudesse perguntar como ele podia saber disso, o homem o pegou pela camisa e o levou para ver sua mais nova obsessão. O médico ouvia estupefato o novo conhecido falar do experimento químico que acabara de concluir. O amigo que os apresentou dissera ao médico que o homem era excêntrico e que conduzia experimentos estranhos e mórbidos. Também dissera que viu, certa vez, o homem bater em um cadáver para descobrir se uma mancha roxa poderia se formar depois da morte.
O excêntrico
Com certeza, Sherlock Holmes era excêntrico, pensou o doutor John Watson.
Foi dessa forma, em 1887, que Arthur Conan Doyle deu início a uma das parcerias mais estranhas e produtivas da literatura, no romance Um estudo em vermelho.
Tomei conhecimento desse estranho casal no ensino médio. Recentemente, reli as histórias, mas, dessa vez, não pude evitar olhar para Sherlock Holmes com os olhos de um médico. Vi o que qualquer médico veria: um paciente. A pergunta era: poderia o estranho comportamento de Sherlock Holmes ser diagnosticado?
Os sintomas são claros. Parece alheio aos ritmos e cortesias das relações sociais – quase não conversa. Seus interesses e conhecimentos são profundos, mas limitados. Possui um estranho sangue frio e talvez, em consequência disso, viva sozinho no mundo. Não tem amigos a não ser o extremamente tolerante Watson; um irmão, ainda mais estranho e mais isolado que ele, é sua única família.
Ao apresentá-lo, Conan Doyle mostra algum tipo de doença mental ou transtorno de personalidade transmitida geneticamente, ou Sherlock Holmes foi meramente um personagem interessante criado com a imaginação?
Conan Doyle era formado pela Universidade de Edimburgo, então uma das escolas médicas mais famosas do mundo. Tinha olho clínico para as manifestações sutis de doenças, e suas histórias são repletas de descrições médicas. O alcoolismo de um homem que já fora saudável é visto através de “um toque de vermelho no nariz e nas bochechas” e “o leve tremor de sua mão estendida”. Em outra história, as contorções de um corpo – os braços “giravam de maneira fantástica”, os músculos “rijos como uma tábua”– permitem que Watson (e os leitores-médicos) diagnostiquem um envenenamento por estricnina.
Dizem que Conan Doyle foi um dos primeiros a descrever uma doença hoje conhecida como Síndrome de Marfan. Apresentada pela primeira vez na literatura médica em 1896 pelo pediatra francês Antoine Marfan, tem como características um corpo alto e magro, problemas de visão e tendência a desenvolver aneurismas na aorta. A ruptura do vaso dilatado, que carrega sangue do coração para o resto do corpo, é a causa mais comum de morte entre os que têm o transtorno. Até recentemente, poucos com a doença passavam dos 40 anos.
Jefferson Hope, o vingativo assassino do primeiro romance de Conan Doyle, é descrito como um homem alto com quase 40 anos, que mata os responsáveis pelo desaparecimento da mulher que amou. Quando finalmente capturado, Hope pede a Watson para pôr a mão no peito dele. Watson diz que “notou extraordinárias palpitações. As paredes torácicas pareciam tremer como um frágil prédio tremeria caso algum motor poderoso estivesse em funcionamento. No silêncio da sala, eu conseguia ouvir um barulho que vinha do mesmo lugar”. Watson sabe instantaneamente o que isso quer dizer. “Você tem um aneurisma na aorta!”
É possível que, em seu retrato de Holmes, Conan Doyle tenha captado alguma síndrome psiquiátrica ainda não descrita? Muitos diagnósticos foram difundidos entre fãs e acadêmicos, segundo Leslie Klinger, editor da versão mais detalhada das histórias de Sherlock Holmes. Klinger defende um diagnóstico de transtorno bipolar, destacando as mudanças comportamentais do detetive, entre hiperatividade e preguiça. Transtorno bipolar é comum entre muitas famílias e é caracterizado por períodos de energia frenética – em geral marcada por comportamento extravagante – alternado com períodos de profunda depressão. Apesar de ser verdade que Holmes passava dias sem dormir quando envolvido num caso, suas mudanças de humor pareciam ter ligação com o trabalho. Quando trabalhava, ficava elétrico. Quando tinha mais tempo livre, tornava-se melancólico. O uso de drogas pode ser responsável pelas bruscas mudanças no humor: Holmes usava cocaína quando estava ocioso e deprimido, não quando estava ocupado e de bom humor.
Outros aficionados sugerem que Sherlock Holmes tenha uma forma moderada de autismo, conhecida como Síndrome de Asperger, transtorno relatado em 1944 pelo pediatra austríaco Hans Asperger. Ele descreveu quatro garotos perspicazes e articulados que tinham graves problemas de interação social e tendiam a se concentrar intensamente em determinados objetos ou assuntos.
Cegueira mental
Conan Doyle poderia ter descrito tal síndrome 70 anos antes? O que define a doença é uma “cegueira mental”: dificuldade de compreender o que os outros sentem ou pensam e, assim, relacionar-se com as pessoas. Além disso, os que sofrem de Asperger se comportam de maneira estranha e são capazes de descrever certos objetos com riqueza.
Nas relações pessoais, Holmes costuma ser grosseiro. Mesmo quando o detetive conversa com Watson, seu melhor amigo, os elogios parecem, com frequência, reprimendas. Em O cão dos Baskervilles, quando Watson, feliz com as próprias habilidades dedutivas, relata os resultados de sua investigação particular, Holmes diz que ele não é uma fonte de luz, mas um condutor de luz, mero auxílio na solução de mistérios que somente o próprio Holmes consegue desvendar.
Holmes teria escrito uma uma monografia sobre as diferenças entre 140 cinzas de charuto, cachimbo e cigarro, demonstrando o que Asperger chamou de “inteligência autista” – capacidade de ver o mundo de uma perspectiva muito diferente em relação à maioria das pessoas, em geral se concentrando nos detalhes negligenciados pelos outros. Na verdade, Sherlock Holmes diz que é capaz de ver a importância das futilidades. Chama isso de o seu método.
Reportagem de Lisa Sanders , Jornal do Brasil
(Tradução: Victor Barros)
Fonte: JB online - 15/01/2010
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