E.M.CIORAN
O encarniçamento em apagar da paisagem humana o irregular, o imprevisto,
o disforme, beira a indecência. É sem dúvida deplorável que em certas
tribos ainda se devore os anciãos moribundos; no entanto, não podemos
esquecer que o canibalismo representa tanto um modelo de economia
fechada como um costume que, algum dia, seduzirá o abarrotado planeta. E
mesmo que se persiga impiedosamente os antropófagos, não me comove que
vivam no terror e que terminem por desaparecer, minoritários como já
são, desprovidos de confiança em si mesmos, incapazes de advogar em
causa própria. Extremamente distinta me parece a situação dos
analfabetos, massa considerável apegada a suas tradições e privações e a
que se castiga com uma injustificável virulência. Pois, afinal de
contas, é um mal não saber ler nem escrever? Francamente, não me parece.
E penso inclusive que deveremos vestir luto pelo homem quando
desaparecer o último iletrado.
O interesse dos homens civilizados pelos povos ditos atrasados é muito
suspeito. Incapaz de suportar-se mais a si mesmo, o homem civilizado
descarrega sobre esses povos o excedente de males que o afligem,
incita-os a compartilhar suas misérias, conjura-os para que afrontem um
destino que ele já não pode encarar sozinho. Forçado a considerar a
sorte que tiveram de não “evoluir”, experimenta diante deles os
ressentimentos de um audacioso desconcertado e desequilibrado. Com que
direito permanecem a parte, fora do processo de degradação ao qual
encontra-se submetido há tanto tempo sem poder se libertar? A
civilização, sua obra, sua loucura, parece-lhe um castigo que pretende
infligir àqueles que permanecem fora dela. “Venham compartilhar minhas
calamidades; solidarizem-se com meu inferno”, eis o sentido de sua
solicitude, o fundo de sua indiscrição e de seu zelo. Superado por suas
taras e, mais ainda, por suas “luzes”, só descansa quando consegue
impô-las aos que estão felizmente isentos delas. O homem civilizado já
procedia assim inclusive na época em que nem era tão “ilustrado” e nem
estava tão cansado, mas entregue à avareza e a sua sede de aventuras e
de infâmias. Os espanhóis, por exemplo, no ápice de sua carreira, devem
ter se sentido tão oprimidos pelas exigências de sua fé e os rigores da
Igreja, que se vingaram disso mediante a Conquista.
"Ninguém está disposto a suportar sozinho a disciplina que
assumiu e nem o jugo que aceitou. A vingança esconde-se sob a alegria do
missionário e do apóstolo. Sua dedicação em converter não é para
libertar, mas para converter."
Alguém trata de converter a outrem? Nunca é para salvá-lo, mas para
obriga-lo a padecer, para expô-lo às mesmas provações que atravessou o
impaciente conversor: vigília, oração, tormento? Pois que o mesmo recaia
sobre o outro, que suspire, que uive, que se debata em meio de
semelhantes torturas. A intolerância é própria de espíritos devastados
cuja fé se reduz a um suplício mais ou menos buscado e que desejariam
ver generalizado, instituído. A felicidade do próximo nunca foi um móvel
nem um princípio de ação, e só se a invoca para alimentar a boa
consciência e cobrir-se de nobres pretextos: o impulso que nos move e
que precipita a execução de qualquer um dos nossos atos, é quase sempre
inconfessável. Ninguém salva ninguém; não se salva mais que a si mesmo,
muito embora se disfarce com convicções a desgraça que se quer outorgar.
Por mais prestígio que tenham as aparências, o proselitismo deriva de
uma generosidade duvidosa, pior em seus efeitos que uma agressividade
declarada. Ninguém está disposto a suportar sozinho a disciplina que
assumiu e nem o jugo que aceitou. A vingança esconde-se sob a alegria do
missionário e do apóstolo. Sua dedicação em converter não é para
libertar, mas para converter.
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CIORAN, E. M. “Portrait de l’homme civilisé”, in: La Chute dans le Temps
Tradução do francês: Rodrigo Menezes
Tradução do francês: Rodrigo Menezes
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