Christophe Dejours*
“O sujeito pode transferir esse reconhecimento do trabalho para
o registro da construção de sua identidade.
E o trabalho se inscreve
assim na dinâmica da autorrealização. A identidade constitui a armadura
da saúde mental.
Não há crise psicopatológica que não tenha em seu
núcleo uma crise de identidade. E isto confere à relação com o trabalho
sua dimensão propriamente dramática.
Ao não contar com os benefícios do
reconhecimento de seu trabalho nem poder aceder ao sentido da relação
que vive com esse trabalho, o sujeito se confronta com seu sofrimento e
só a ele. Sofrimento absurdo que só produz sofrimento, dentro de um
círculo vicioso, e que será desestruturante, capaz de desestabilizar a
identidade e a personalidade e causar doenças mentais.
Por isso, não há
neutralidade no trabalho
em relação à saúde mental.”
Um médico jovem, que não terminou sua formação, é responsável, no
entanto, por um serviço de reanimação: o diretor do hospital se nega a
contratar mais profissionais e a remuneração deste médico é muito
inferior à de um profissional mais experimentado. O jovem médico, sério e
trabalhador, realiza corretamente as tarefas. Tudo anda nos trilhos e
vai ganhando progressivamente a confiança da equipe médica, dos
pacientes e seus familiares. Mas ele está muito preocupado porque há
muitas baixas no serviço. Alguns de seus pacientes morrem apesar dos
prognósticos favoráveis, em especial quando ele prescreve assistência
com respirador artificial em doentes entubados: muitos se asfixiam e ele
não consegue entender por que. Começa a pensar que cometeu erros, mas
não consegue descobri-los. Sente-se cada vez mais perturbado, perde a
confiança em si mesmo e, finalmente, consulta um psiquiatra para que o
ajude a lutar contra uma depressão ansiosa. Cada vez mais fechado e
irritado, se isola, fica com raiva e pouco a pouco vai perdendo a
confiança da sua equipe. Apenas seis meses depois – mesmo com a sua
situação psíquica francamente deteriorada – tem uma ideia: coloca a
máscara de oxigênio em si mesmo e se afoga ao inalar algo que, pelo
cheiro, identifica de imediato como formol. Uma investigação lhe permite
descobrir que a empresa responsável pela manutenção dos equipamentos de
reanimação não respeita os procedimentos, para ganhar tempo e suprir a
falta de pessoal.
Nas situações comuns de trabalho, são frequentes os incidentes e
acidentes de origem incompreensível (nem sempre há vontade de engano,
como no caso relatado), que transtornam e desestabilizam os
trabalhadores mais experimentados. Acontece no manejo de aviões e em
todas as situações tecnicamente complexas, que implicam riscos para a
proteção das pessoas ou a segurança das instalações. Para os
trabalhadores, muitas vezes, é impossível determinar se seus fracassos
têm a ver com uma falta de competência ou com anomalias do sistema
técnico. E esta perplexidade é uma causa de angústia e sofrimento que
toma a forma do medo de ser incompetente, de não estar à altura ou ser
incapaz de enfrentar situações excepcionais ou inesperadas, nas quais
esteja envolvida a responsabilidade.
Outras vezes, embora quem trabalha saiba o que deve fazer, não pode
fazê-lo porque é impedido por restrições sociais do trabalho. Os colegas
travam, o clima social é desastroso, cada qual trabalha na solidão e
todo o mundo retém informações. Tomemos o exemplo de um técnico em
manutenção encarregado do controle técnico de obras realizadas em uma
central nuclear por uma subcontratada. São obras enormes, que exigem
muita segurança. Os trabalhos são feitos em turnos rotativos, dia e
noite. O técnico responsável pelo controle está sozinho, não pode vigiar
as obras 24 horas por dia. Mas tem que assinar as fichas e
responsabilizar-se pela qualidade do serviço realizado pelo
subcontratado e aceitar a palavra do chefe do turno da noite em relação à
qualidade do serviço. Não é uma situação psicológica facilmente
suportável por um técnico que, justamente por conhecer bem o ofício,
sabe bem quantos enganos ou armadilhas pode ocultar.
Com a reorganização do trabalho, em consequência das últimas reformas
estruturais, criaram-se condições extremamente dolorosas em relação aos
valores do trabalho bem feito, o sentido da responsabilidade e a ética
profissional. A obrigação de fazer mal o trabalho, de ter que dá-lo por
terminado ou mentir, é uma fonte importantíssima e extremamente
frequente de sofrimentos no trabalho: está presente na indústria, nos
serviços, na administração.
Vejamos outro exemplo. Trata-se de um engenheiro, recentemente destinado a um depósito da SNCF
(Empresa Nacional de Estradas de Ferro da França). Alguns dias depois
da sua chegada, toma conhecimento de que ocorreu um incidente no setor
das vias que está sob sua responsabilidade: a barreira em uma passagem
de nível não baixou ao passar um trem; os sistemas automáticos não
funcionaram; felizmente, não havia ninguém no cruzamento, nem pedestre
nem carro. O engenheiro reporta o incidente. Segundo parece, depois do
incidente e sem nenhum tipo de intervenção técnica nem reparação
particular, as barreiras continuaram funcionando normalmente. Mas o
acontecimento ocorreu. Qual é a causa? Onde está o defeito? Silêncio
generalizado entre os colegas. O engenheiro insiste, mas os demais
minimizam a importância do fato. O engenheiro, considerando que se trata
de um incidente grave, exige uma investigação técnica completa. É que,
com a diminuição de pessoal, o plantel gerencial está sobrecarregado de
trabalho e prefere evadir-se. Eles não podem admitir oficialmente esta
situação e se limitam a rechaçar a investigação proposta, que anuncia
dificuldades e vai consumir muito tempo e trabalho. Por isso, insistem
em que as barreiras continuarão funcionando bem. O tom da discussão sobe
entre os companheiros. O engenheiro se nega a abandonar a investigação e
defende sua opinião sobre a gravidade do incidente. Até que o chefe de
depósito coloca um ponto final na discussão: “Houve descarrilamento?”
“Não”, responde o engenheiro. “Houve algum veículo ou pedestre
atropelado?” “Não.” “Houve feridos ou mortos?” “Não.” “Então, não houve
incidente. O assunto está encerrado”.
Ao sair da reunião, o engenheiro não se sente bem. Perdeu o
equilíbrio, não entende a posição dos outros nem, sobretudo, sua
unanimidade. Tem dúvidas e já não sabe se está respeitando o espírito do
regulamento e uma ética do sentido comum (ao mesmo tempo que seus
colegas lhe opõem uma negação da realidade) ou se, pelo contrário, está
dando provas de um perfeccionismo e uma obstinação fora do comum, em
cujo caso toda a sua vida profissional deve ser reexaminada. Nos dias
seguintes, seus colegas evitam compartilhar os almoços com ele; não
falam com ele. O pobre coitado já não entende mais nada. A pressão
aumenta. Sente-se cada vez mais angustiado. Dois dias depois, em seu
local de trabalho, joga-se do alto das escadas, atravessando as
barreiras (em francês, o termo que designa a varanda da escada é o mesmo
que designa a barreira do trem). É hospitalizado com fraturas
múltiplas, depressão, estado de confusão, tendência suicida. Mas
trata-se de um caso de alienação social, que deve ser diferenciado da
alienação mental clássica.
Contrariamente ao que se poderia crer, as situações deste tipo não
são nada excepcionais no trabalho, embora tenham desenlaces menos
espetaculares. Às vezes, os obstáculos do real podem ser superados, como
no caso do médico reanimador. Outras, é preciso capitular diante dos
obstáculos que impedem a qualidade do trabalho, como o fez o técnico
mecânico. Em outros casos se torna possível trabalhar em boas condições
técnicas e sociais. Mas, qualquer que seja o resultado, em geral implica
uma série de esforços que comprometem toda a personalidade e a
inteligência de quem trabalha.
Reconhecimento
Há seguramente folgados e desonestos, mas, em sua grande maioria,
quem trabalha se esforça para fazer as coisas o melhor possível e coloca
nisso muita energia, paixão e compromisso pessoal. O justo é que esta
contribuição seja reconhecida. Quando não é, quando passa inadvertido em
meio à indiferença geral ou os outros o negam, o resultado é um
sofrimento muito perigoso para a saúde mental, como vimos no caso do
engenheiro da SNCF, e se produz uma desestabilização
das referências sobre as quais se apoia a identidade. O reconhecimento
não é um apelo marginal de quem trabalha. Muito pelo contrário, se
apresenta como um elemento decisivo na dinâmica de mobilização subjetiva
da inteligência e da personalidade no trabalho (o que se designava
tradicionalmente em psicologia com a expressão “motivação no trabalho”).
O reconhecimento esperado por quem mobiliza sua subjetividade no
trabalho passa por formas extremamente reguladas, que foram analisadas e
explicadas há alguns anos (“juízo de utilidade” e “juízo de beleza”) e
implica a participação de certos atores, também eles rigorosamente
situados em relação com a função e o trabalho de quem espera o
reconhecimento. Reconhecer a existência da “psicodinâmica do
reconhecimento” permite compreender o importante papel que joga no
destino do sofrimento no trabalho e a possibilidade de transformar o
sofrimento em prazer.
Porque, efetivamente, desse reconhecimento depende o sentido do
sofrimento. Quando a qualidade do meu trabalho é reconhecida, o que
adquire sentido são meus esforços, minhas angústias, minhas dúvidas,
minhas decepções e meus desalentos. Todo esse sofrimento não foi em vão e
não só contribuiu para a organização do trabalho, mas que, ao
contrário, fez de mim um sujeito diferente daquele que era antes do
reconhecimento. O sujeito pode transferir esse reconhecimento do
trabalho para o registro da construção de sua identidade. E o trabalho
se inscreve assim na dinâmica da autorrealização. A identidade constitui
a armadura da saúde mental. Não há crise psicopatológica que não tenha
em seu núcleo uma crise de identidade. E isto confere à relação com o
trabalho sua dimensão propriamente dramática. Ao não contar com os
benefícios do reconhecimento de seu trabalho nem poder aceder ao sentido
da relação que vive com esse trabalho, o sujeito se confronta com seu
sofrimento e só a ele. Sofrimento absurdo que só produz sofrimento,
dentro de um círculo vicioso, e que será desestruturante, capaz de
desestabilizar a identidade e a personalidade e causar doenças mentais.
Por isso, não há neutralidade no trabalho em relação à saúde mental.
Contudo, as análises sociológicas e políticas subestimam massivamente
esta dimensão do trabalho.
Mesmo que o reconhecimento esteja no horizonte de expectativas dos
trabalhadores, poucas vezes o recebem de maneira satisfatória. E o
esperável é que o trabalho gere uma multiplicidade de manifestações
psicopatológicas. Para fazer uma análise e um inventário destas
manifestações decidiu-se empreender uma série de investigações clínicas
sob o nome de “psicopatologia do trabalho”. Ao começar estas
investigações, na década de 1950, nos esforçávamos por constituir uma
clínica das “doenças mentais do trabalho”. Apesar de alguns resultados
espetaculares – em particular a neurose das telefonistas, descrita por Jean Bégoin
em 1957 –, não se chegou a descrever uma patologia mental do trabalho
comparável à patologia das afecções profissionais somáticas, cuja
variedade e especificidade é bem conhecida.
Se o sofrimento não vem acompanhado de uma descompensação
psicopatológica – por uma ruptura do equilíbrio psíquico que se
manifesta na eclosão de uma doença mental – é porque o sujeito aplica a
si certas defesas que lhe permitem controlá-lo. A investigação clínica
demonstrou que, no campo da clínica do trabalho, junto com os mecanismos
de defesa clássicos descritos pela psicanálise, estão as defesas
construídas e sustentadas coletivamente pelos trabalhadores. Trata-se
das “estratégias coletivas de defesa”, pista específica das restrições
reais do trabalho. Foram descritas as estratégias coletivas
características dos trabalhadores da construção civil e das obras
públicas, dos operadores do controle de produção na indústria química,
dos agentes de manutenção das centrais nucleares, dos solados do
exército, dos marinheiros, enfermeiras, médicos, cirurgiões, pilotos de
caças, etc. As investigações se desenvolveram a partir da inversão da
pergunta inicial: como fazem estes trabalhadores para não ficarem
loucos, apesar das demandas do trabalho a que se veem confrontados? O
enigmático é a “normalidade” em si mesma. Podemos defender um conceito
de “normalidade no sofrimento”, em que a normalidade aparece não como o
efeito passivo de um condicionamento social, de um conformismo ou de uma
interiorização da dominação social, mas como um resultado conquistado
na luta contra a desestabilização psíquica provocada pelas demandas do
trabalho.
As estratégias defensivas podem contribuir para tornar aceitável o
que não deveria sê-lo. Por isso, jogam um papel paradoxal, mas capital,
na ordem dos estímulos subjetivos da dominação. As estratégias
defensivas, necessárias para a proteção da saúde mental contra os
efeitos deletérios do sofrimento, podem funcionar também como uma
armadilha que desestabiliza diante daquilo que produz sofrimento. E, às
vezes, permitem que seja tolerável não apenas o sofrimento psíquico, mas
também o sofrimento ético; entendemos por tal o sofrimento que resulta,
não de um mal sofrido pelo sujeito, mas daquele que este pode causar ao
cometer, por seu trabalho, atos que normalmente reprova. Com outras
palavras, será que fazer o mal, isto é, infligir ao outro um sofrimento
indevido, não ocasiona também um sofrimento a quem o faz no marco de seu
trabalho e que, para salvaguardar seu equilíbrio psíquico, pode
construir defesas contra este sofrimento, não têm incidência sobre as
posturas morais singulares e sobre as condutas coletivas no campo
político? Até agora, esta pergunta não foi colocada, porque aqueles que
se dedicam à teoria sociológica e filosófica da ação são geralmente
reticentes a dar um espaço, em suas análises, ao sofrimento subjetivo.
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*A análise é de Christophe Dejours, doutor em medicina, especialista em medicina do trabalho e em psiquiatria e psicanalista, e foi publicada no jornal argentino Página/12, 02-05-2013. A tradução é do Cepat.
O texto é um extrato tirado do seu livro A banalização da injustiça social, editado pela Fundação Getúlio Vargas.
Fonte: IHU on line, 10/05/2013
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