DANILO VENTICINQUE*
As razões de um tradutor francês para acumular quarenta mil volumes em sua coleção, e o que podemos aprender com ele
Poucas compulsões de consumo são tão bem vistas socialmente quanto o desejo de acumular livros.
Ao contrário dos admiradores de sapatos, perucas, miniaturas ou outros
bens de consumo supostamente fúteis, que são forçados a dedicar-se a
suas paixões de forma quase clandestina para escapar do julgamento
alheio, fãs de livros podem disfarçar seu descontrole consumista como
uma implacável sede de conhecimento. O advento dos livros digitais
tornou a vida do aspirante a bibliófilo ainda mais fácil. Se antes era
necessário enfrentar as barreiras do espaço, hoje uma biblioteca de
dezenas de milhares de exemplares cabe no bolso de qualquer paletó, ou
mesmo num celular.
Um cartão de memória do tamanho da unha de um dedão pode armazenar mais
de trinta mil livros – um acervo equivalente feito de papel exigiria um
apartamento inteiro para abrigá-lo. O custo também deixou de ser um
empecilho. É possível encontrar uma infinidade de obras disponíveis
gratuitamente na internet, em domínio público, e o preço dos exemplares
novos, sobretudo os importados, é um convite à compra por impulso.
A escolha entre os livros físicos e os digitais é uma questão de gosto,
e um detalhe irrelevante diante da meta de formar a biblioteca ideal.
Na busca por esse objetivo, tanto os fanáticos por tecnologia quanto os
fetichistas do papel têm de se render aos ensinamentos dos grandes
colecionadores do passado. O tradutor e editor francês Jacques Bonnet,
dono de um acervo de mais de quarenta mil volumes, é uma das maiores
autoridades no assunto. Sua coletânea de ensaios Fantasmas na biblioteca
(Civilização Brasileira, 160 páginas, R$ 29,90), recém-lançada no
Brasil, reúne nove textos sobre seu amor pelos livros. Qualquer
comprador compulsivo de literatura deveria fazer o enorme sacrifício de
acrescentá-la a sua coleção. Com base nos ensaios de Bonnet, elaborei
uma lista com suas sete principais razões para viver entre livros. Elas
valem tanto para quem já se dedica à formação da biblioteca perfeita
quanto para apenas gosta de livros, e estava à procura de uma desculpa
para transformar seu apreço em loucura.
1) O prazer da posse
Aprendemos a ler na infância e, se conseguirmos escapar das inúmeras
outras tentações que roubam a atenção das crianças, é possível
desenvolver desde cedo uma paixão pela literatura. A compulsão por
livros, porém, só chega mais tarde. Nossa velocidade de leitura se
mantém constante, o tempo dedicado a ela se torna escasso e passamos a
comprar mais livros do que somos capazes de ler. É uma decisão
questionável, ao menos do ponto de vista econômico. "Livros são caros na
compra; não valem nada na revenda; são caríssimos quando queremos
encontrá-los e estão esgotados˜, escreve Bonnet. O custo é compensado
pelo prazer da sensação de posse. Mesmo o exemplar não lido é, de certa
forma, conquistado por seu dono. Ou, como diria Bonnet, "também foram
‘lidos’ de um certo modo, estão classificados em algum lugar do meu
espírito como na minha biblioteca.” Apesar de prazeroso, o acúmulo de
livros não lidos é uma atividade que requer cuidado. Fantasmas na biblioteca
reproduz o aviso de Sêneca: "Que me importam esses inumeráveis livros e
essas bibliotecas, cujos proprietários, durante toda a vida, mal leram
as etiquetas?” Por mais que a compra compulsiva de livros seja
bem-vista, a meta final deve ser sempre a leitura, ainda que num futuro
distante.
2) O flerte e a culpa
A falta de espaço ou de dinheiro podem frear a expansão de uma
biblioteca pessoal, mas o maior inimigo do acúmulo de livros é a culpa.
Quando a pilha de exemplares comprados e não lidos cresce, até o
bibliômano mais perdulário começa a se sentir culpado por seus flertes.
Felizmente, os ímpetos de racionalidade não costumam resistir a uma
visita à livraria, ou mesmo a alguns minutos diante do computador. Faço
uma confissão, certo de que meu caso não é o único. Num dia 31 de
dezembro, ao perceber que a quantidade de livros não lidos em meu leitor
digital e em minha estante seria suficiente para algumas décadas de
leitura, prometi não comprar livros durante o ano seguinte. A promessa
foi quebrada antes do fim de janeiro, quando o site de uma livraria
anunciou uma promoção imperdível – a primeira de muitas naquele ano.
Descobri que a resistência a comprar novos livros só aumenta o prazer de
ceder à tentação. Os motivos que fazem um leitor se deixar vencer pelo
flerte são os mais variados. Bonnet revela que, em sua juventude,
comprou um exemplar de Lolita, de Nabokov, só porque gostou da capa, e se rendeu a O lobo da estepe,
de Herman Hesse, por causa do título misterioso, mesmo sem conhecer o
autor. Embora alguns livros sejam comprados depois de longos namoros, a
maioria chega às estantes graças a essas paixões à primeira vista que,
após a compra, se transformam em relacionamentos duradouros.
3) O apego inexplicável
Se compramos livros seguindo critérios quase irracionais, cedo ou tarde
nos tornamos vítimas de nossos instintos e maculamos nossas coleções,
grandes ou pequenas, com obras de baixa qualidade. Isso nos força a
escolher entre o prazer de possuir um livro, mesmo ruim, e a vontade
racional de passá-lo adiante e abrir espaço para outro volume, mais
adequado às nossas expectativas. Nessas batalhas contra a razão, o
desejo de preservação do acervo raramente é derrotado. “A escolha do que
se deve guardar ou rejeitar requer uma energia que eu sempre
economizei”, diz Bonnet. "Quem sabe se, no futuro, não terei necessidade
de uma obra que, na hora, achei medíocre?"
4) O bibliotecário em cada um de nós
Os entusiastas do livro digital têm, aqui, um trabalho (e um
passatempo) a menos do que os admiradores dos livros de papel. Em
leitores digitais como o Kindle ou o Kobo, bastam alguns cliques para
organizar toda sua coleção por título, data de leitura ou nome do autor.
Os átomos são muito mais indóceis que os bits. Domar uma estante de
pequeno ou médio porte exige no mínimo uma tarde de trabalho. Organizar
uma coleção de milhares de volumes é uma tarefa para a vida inteira.
Além do esforço braçal necessário para remover os livros das prateleiras
e reorganizá-los, há o esforço intelectual de escolher entre vários
critérios de organização. Ao contrário dos arquivos digitais, os livros
de papel aceitam uma infinidade de classificações. Bonnet reproduz uma
lista elaborada pelo romancista francês Georges Perec. Segundo ele, é
possível organizar os livros por ordem alfabética (de título ou nome do
autor), por continentes ou países, por cores, por data de aquisição, por
data de publicação, por formatos, por gêneros, por grandes períodos
literários, por línguas, por prioridades de leitura, por encadernações e
por séries. Em seguida, Bonnet expõe as falhas de cada um desses
critérios e volta a citar Perec: "Nenhuma dessas classificações é
satisfatória em si mesma. Toda biblioteca se ordena a partir de uma
combinação dessas classificações."
5) A força dos hábitos
Os acumuladores de livros podem ser divididos em dois grupos. Alguns
tratam seus exemplares com reverência. Outros encaram os livros como
meros objetos de estudo e trabalho. Os membros do primeiro grupo tentam
manter ao máximo o estado de conservação das obras. Ao abrir um volume
da coleção de um deles (com a devida autorização do dono, acompanhada de
instruções de manuseio), é difícil notar traços de contato com mãos
humanas. Os elementos do segundo grupo são facilmente reconhecidos por
suas estantes cheias de exemplares castigados pelo uso e repletos de
anotações. Bonnet se enquadra no segundo grupo. "Escrevo em meus livros,
a lápis, com caneta hidrográfica ou esferográfica. Aliás, não consigo
ler sem alguma coisa à mão." Os conservacionistas podem se gabar do fato
de que suas coleções sobreviverão por mais tempo. Os anotadores
compulsivos têm o privilégio de reler suas anotações anos depois de
feitas, como recados ao leitor futuro numa máquina do tempo.
6) Memórias e fantasias
Embora a presença opressora dos livros comprados e não lidos iniba esse
comportamento, é inevitável reler alguns exemplares que insistem em
sair da estante para a cabeceira. Ao abrir um livro já lido, revisitamos
não apenas as palavras do autor, mas também nosso próprio passado. O
estado de espírito que tínhamos na primeira leitura ressurge na leitura
seguinte, mesmo depois de muitos anos. Reler é discutir consigo mesmo, e
muitas vezes discordar de julgamentos do passado. Bonnet cita o exemplo
do escritor modernista Paul Morand, cujo estilo o encantara aos 20
anos, mas tornou-se insuportável numa releitura depois dos 60. Quem
acumula enormes pilhas de livros não lidos depara com outro prazer da
memória, mais melancólico: o de se emocionar pela primeira vez com um
exemplar comprado há muitos anos e imaginar o que teria sido diferente
em sua vida se o tivesse lido na primeira oportunidade. Quanto maior a
lista de obras a ler, mais numerosas são as vidas paralelas. Se suas
leituras não têm qualquer influência sobre suas decisões e seu modo de
viver, você está lendo os livros errados.
7) O dom de esquecer
Por maiores que sejam as estantes, ou o espaço nos discos rígidos, a
tarefa de processar o conteúdo (ou ao menos as capas e títulos) de uma
coleção de livros cabe, em última instância, à mente do leitor – um
instrumento fascinante, mas pouquíssimo confiável. Com o passar dos anos
e o acúmulo dos livros nas prateleiras e na memória, obras que lemos
com atenção podem ser quase totalmente esquecidas. Bonnet cita Pierre
Bayard, autor de Como falar dos livros que não lemos, para
explicar essa fraqueza. “É, antes de tudo, difícil saber com precisão se
lemos ou não um livro, pois a leitura é o lugar do evanescente", diz
Bayard. Ao conversar com outro leitor sobre um livro que já lemos, não é
raro perceber que deixamos de notar aspectos cruciais da obra, ou que
apagamos trechos inteiros da memória. Se escolhermos o texto certo e
esperarmos tempo o bastante para que a memória comece a nos trair, cada
releitura da mesma obra pode ser uma experiência totalmente nova. Mesmo
quem vive entre quarenta mil livros é capaz de perder-se num só.
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