Frei Betto*
E
disse a madame: Imagina, agora minha empregada é administrada pelo
governo, com essas leis absurdas! Como se nós, patrões, não tratássemos
bem essas coitadas que nascem na favela, em meio à pobreza, e têm a
sorte de arranjarem um emprego em nossas famílias.
A Maria das Dores, por exemplo, não tinha onde cair morta. Pai bebum,
mãe lavadeira, uma penca de irmãos. A menina começou aqui em casa como
babá de meu filho caçula, o George. Ensinei a ela hábitos de higiene,
dei uniforme branco, deixo que leve para casa o que sobra dos jantares
que meu marido oferece aos clientes.
Pagava a ela meio salário mínimo e mais o transporte. No aniversário
dela e no Natal eu dou presentes. A pobre da menina se dobra em
agradecimentos, tão generosa sou com ela. Ela cuida bem do George: limpa
o cocô dele, dá banho, lava e passa as roupinhas dele, jamais esquece
hora das mamadeiras. Leva-o todas as manhãs para tomar sol na pracinha. E
nunca se queixou de, se preciso, ficar aqui em casa além da hora
combinada.
Às vezes eu e meu marido temos de jantar fora e a das Dores fica com a
criança, põe para dormir, e depois assiste à TV, até retornarmos. Nunca
reclamou de sair mais tarde um pouquinho. Agora vem o governo com essa
história de 44 horas semanais, carteira assinada, pagamento de horas
extras, Fundo de Garantia, multa de 40% para demissão sem causa justa
etc.
Ora isso é coisa para trabalhador, como faz meu marido lá na empresa
dele. A das Dores não é trabalhadora, é empregada. Como a Fátima, nossa
cozinheira. Trabalha há nove anos conosco. É separada do marido, os dois
filhos são adultos, ela dorme aqui no quartinho de empregada e só volta
para a família aos domingos.
Nunca reclamou dessa boa vida que damos a ela. Pelo contrário, fica
agradecida por dormir em um lugar seguro, confortável, com lençóis
limpos, banheiro próprio, nada daquela promiscuidade da casinha em que a
família dela habita na periferia, onde moram o irmão, a cunhada e
quatro filhos.
Pra que isso de direitos trabalhistas para quem está feliz da vida?
Negra retinta, se tivesse nascido há dois séculos, teria com certeza
sido escrava. Agora tem seu quartinho arrumado, TV, acesso livre à
geladeira da família. E come da mesma comida que prepara para nós.
Quando é que aí fora ela comeria camarões flambados, suflê de frutos do
mar, codornas recheadas?
Não sei por que o governo se mete tanto em nossas vidas! Pensa que
somos um bando de escravocratas que trata mal as empregadas? Chega de
burocracia. Agora vou ter que pagar, além dos salários, impostos para
manter aqui a das Dores e a Fátima. Como se na velhice elas não fossem
ter aposentadoria!
Ora, a mãe da Fátima, que trabalhou 20 anos na casa do meu sogro, ao
se aposentar foi morar lá na roça onde nasceu e obteve aposentadoria
rural. Precisa o governo criar ainda mais burocracia para nós, patrões,
que damos emprego a quem não tem instrução, casa própria, nem onde cair
morto?
Outro dia eu e meu marido entramos no avião e, no assento do
corredor, ao nosso lado, tinha um homem mal vestido, cara de peão de
fazenda, que na hora de servirem o lanchinho perguntou se era de graça…
Era.
Nas viagens de avião em rotas nacionais já não há mais aquele glamour
de outrora, os comissárias de bordo servindo uísque, vinhos, pratos
quentes. Hoje misturam alhos com bugalhos, e insistem em mesclar gente
de classes sociais diferentes, como se todos tivessem tido os mesmos
berços.
Meu Deus, aonde o Brasil vai parar desse jeito!?
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* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Maria Stella
Libanio Christo, de “Saborosa viagem pelo Brasil” (Mercuryo Jovem),
entre outros livros.http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
Fonte:http://mercadoetico.terra.com.br 07/05/2013
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