sábado, 8 de junho de 2013

QUANDO O AMOR É UMA FRAUDE

J.J. CAMARGO*

 

O Eduardo tinha pouco mais dois anos quando entrou chorando de dor na emergência da pediatria, trazido por um casal angustiado, num misto de desespero e ansiedade. O pai, com um cuidado extremado, o colocou na maca, com uma delicadeza de quem temia que o filho fosse esboroar.

Quando lhe perguntei onde doía, ele fez uma longa curva com o braço direito para apontar de frente o local dolorido no meio do peito. Parecia que ele tinha pedido emprestado aquele bracinho roliço e aquela mãozinha gorducha para identificar com precisão o local da dor. Quando tentei pegar-lhe a mão, ele a recolheu, e respondida a pergunta, voltou a soluçar e a estender os braços para a mãe, que depois de um tempo saiu para o corredor resmungando com o marido.

A história de que ele caíra ao tentar subir numa estante não combinava com os vários pontos de contusão, e, quando a roupa foi retirada para o exame físico completo, houve uma troca de olhares compungidos, porque todos naquela sala perceberam, pelos hematomas de idades variadas, que aquele pobre menino vinha sofrendo maus-tratos há muito tempo.

E mesmo assim, no mais absoluto desamparo, ele ainda estendera os braços para a mãe impiedosa ou omissa. Nada é mais comovente do que a solidão de uma criança.

Cumprindo um protocolo de rotina nestes casos, procederam-se as radiografias de corpo inteiro, e só então as maiores agressões se tornaram evidentes: o pobre garoto tinha múltiplas fraturas em diferentes estágios de consolidação, nas costelas, no crânio, numa das pernas e até na mão, aquela que ele me negara.

Deprimente quando o atendimento médico de uma criança traumatizada, o que sempre solidariamente nos transporta ao moleque travesso que todos fomos um dia, transforma-se num caso de polícia.

No inquérito, um festival de desamores e transferências de culpa. O pai era um alcoólatra que, quando voltava bêbado para casa, batia em todo mundo, e nada o deixava mais ensandecido do que o choro da família agredida.

E claro que o Eduardo, sendo o mais moço, e sem condições de entender o quanto seus berros aumentavam o escore da punição, era o que mais apanhava.

Agora o choro do carrasco parecia convincente, mas não é assim que agem os psicopatas?

Fiquei um longo tempo olhando aquela mãe de seis filhos menores, precocemente envelhecida pela rudeza da vida, e não consegui definir meu sentimento em relação a ela. Revolta pela sua covardia, intolerância pela submissão, pena pela falta de alternativas de sobrevivência eram todas alternativas viáveis.

De repente senti pressa de fugir daquele mundo torto, voltar para casa e massagear a mão fofa do meu filho pequeno, que aquela era a maneira predileta dele dormir.

Não conseguia parar de pensar no Eduardo, e no nada que podia fazer.

Vontade de chorar.
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* Médico
Foto da Internet
Fonte: ZH on line, 08/06/2013

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