Juremir Machado da Silva*
GILLES LIPOVETSKY, O apocalipse não acontecerá
Criativo,
irreverente e politicamente incorreto até a medula, o filósofo Gilles
Lipovetsky, 55 anos, autor de best-sellers polêmicos como O Império do efêmero — a moda e seu destino nas sociedades modernas (Companhia das Letras), A era do vazio — ensaios sobre o individualismo contemporâneo e O Crepúsculo do dever — a ética indolor dos novos tempos democráticos, chega ao Brasil para uma
série de conferências. Na contramão de todos os credos negativos das
perspectivas críticas, Lipovetsky prevê um século 21 duro, de exclusão,
mas também marcado por um individualismo cada vez mais emancipador, pela
passagem da paixão à amizade e pelo advento da “terceira mulher”.
A Terceira mulher
é o título do seu mais recente livro, cujos direitos de publicação já
foram adquiridos pela Companhia das Letras, e o espaço adequado para
mais um choque perceptivo. Em oposição às análises mais atuais de gente
como Pierre Bourdieu, Gilles Lipovetsky descreve a condição da mulher
nesta virada de século com traços capazes de desarvorar feministas de
carteirinha e machistas contumazes. Depois da mulher objeto, segundo
ele, chegou o tempo da mulher sujeito.
Não
bastasse isso, Lipovetsky vê no individualismo contemporâneo o emblema
da autonomia e da emancipação dos homens, predominando um pós-moralismo
que não rejeita valores, mas rechaça a ética do sacrifício. Onde todos
veem manipulação, controle, nefastas perdas de referência e desagregação
social, o pensador do fugaz enxerga um novo sopro da democracia. Sem
constrangimento, defende a sociedade de consumo e denuncia o
ressentimento de intelectuais que, em busca de legitimação, anunciam o
apocalipse ao vivo.
Nesta
entrevista, exclusiva para a Folha de S. Paulo, Gilles Lipovetsky
aborda os seus temas prediletos: mídia, publicidade e moda; a condição
feminina e o individualismo contemporâneo; a revolução comportamental
subterrânea e o fenômeno que não hesita em continuar chamando de
pós-modernidade, embora não demonstre apego especial a essa expressão.
Discípulo de Tocqueville, enquanto clama pela direito à frivolidade,
Lipovetsky recupera o sentido do termo livre-pensador.
Moda, publicidade e mídia
JMS — Os títulos dos seus livros são, em geral, muito pessimistas — O Império do efêmero, O Crepúsculo do dever, A Era do vazio, etc. -, mas as suas análises da sociedade contemporânea não o são. Como explicar esse paradoxo?
Gilles Lipovetsky — De
fato. Há uma contradição, pois todos esses livros foram escritos em
reação a leituras maniqueístas dos fenômenos sociais contemporâneos e,
mais especificamente, da pós-modernidade. Fazem eco a um problema visto,
em geral, negativamente. Era preciso partir dos diagnósticos
apresentados como inatacáveis para virá-los do avesso. Assim, a
pós-modernidade é enfocada do ângulo do paradoxo. De resto, a
contemporaneidade é isso mesmo, uma síntese paradoxal: efêmero e
estabilidade geram mais democracia; moda, consumo e direitos humanos
sinalizam uma sociedade de escolha e de ênfase no individualismo. Retomo
os paradoxos da democracia já assinalados por Tocqueville. Vivemos no
paradoxo.
— Em O Império do efêmero,
por exemplo, na contramão do pensamento politicamente correto, o senhor
sustenta que a moda, fenômeno ocidental e moderno por excelência, é
libertária, emancipadora e marca de uma sociedade democrática. Essa
posição não legitima tranquilamente a sociedade de consumo?
Lipovetsky — Não
me incomoda nenhum pouco legitimar a sociedade de consumo. Sou
favorável a ela. Critico, em contrapartida, o fato de a sociedade de
consumo não conseguir incluir todos os indivíduos na sua esteira. O
problema é a exclusão, não o consumo. Dito de outra forma, criticável
não é a extensão da sociedade de consumo, mas o seu déficit. De resto,
por sociedade de consumo não se deve entender simplesmente um
individualismo egoísta e o reino dos shopping-centers. Há também, na
atualidade, um retorno da religião, uma preocupação com a identidade,
com o reconhecimento e a valorização de si, com a aceitação do outro. De
maneira geral, as afirmações negativas sobre a sociedade de consumo
revelam os estereótipos, transformados em discursos politicamente
corretos, dos anos 60.
— A exclusão, portanto, não resulta da sociedade de consumo, mas convive com ela?
Lipovetsky — Sejamos
claros: a sociedade de consumo mais libera do que oprime. A obsessão
pelo “ter”, obviamente, domina mais os pobres do que os ricos, pois vem
da necessidade. Existe, entre teóricos apocalípticos, um discurso
segundo o qual o desejo de consumir derivaria da manipulação
publicitária. É falso. A publicidade não consegue fazer com que se
deseje o indesejável. Nos países europeus ricos, a obsessão pelo “ter”
passou. Hoje, as grandes preocupações são com o desemprego, com a
insegurança, com o futuro, com a educação das crianças, com uma nova qualidade de vida e com novas formas de espiritualidade.
— A moda, no seu entender, encarna esse ideal de emancipação?
Lipovetsky — Hoje,
a moda é realmente emancipadora. Ela era tirânica, por exemplo, na
época de Luís XIV, quando a corte estabelecia o padrão e aquele que não
pudesse segui-lo era ridicularizado, excluído, banido. Não havia margem
para a escolha individual. Agora, cada um se veste como bem entende. Há
uma enorme diversificação de modelos e, em consequência, a relativização
de toda e qualquer forma com pretensão à hegemonia. A democratização da
moda implica a indiferença pela moda. Mesmo em festas em certos
palácios, a liberdade predomina. O individualismo contemporâneo não
aceita a imposição de um cânone.
Folha — Moda e publicidade não devem então ser vistas como faces da mesma moeda da exclusão?
Lipovetsky —
Claro que a moda também pode provocar exclusão. Mas não é o essencial.
Os jovens, por exemplo, adotam modas excludentes. Há, entre eles, uma
verdadeira tirania de modelos. Quem não se encaixa, é rejeitado. Antes, a
juventude seguia o modelo dos pais. Isso acabou. Também o critério de
classe social cedeu lugar à predominância dos grupos de filiação. Os
adolescentes têm obsessão por marcas e agem por mimetismo, em função do
grupo que integram, gerando, sob pretensa forma de diferenciação, um
intenso conformismo. Mas isso se dilui com a idade. A intolerância
comportamental dos adolescentes, em relação à música, às roupas, aos
gostos, dissolve-se com a entrada no mundo adulto.
Folha
— O senhor afirma que o desejo do novo coincide com a aspiração à
autonomia individual. Mas a moda não seria, ao contrário, antes de tudo o
resultado da sedução imposta pela publicidade, ao evidenciar desejos
latentes dos consumidores, logo da falsa escolha e da simulação de
autonomia?
Lipovetsky — O
novo, enquanto fenômeno da modernidade, segue a mesma lógica da moda:
produz maior autonomia em relação aos modelos. A moda, claro, cria
modelos, mas eles não são imperativos. Pode-se negociar com eles,
ressignificá-los ou simplesmente ignorá-los. Vivemos uma busca de
estilos que devem exprimir, não a posição social, mas o gosto pessoal e a
idade de cada um. Esta tornou-se mais importante do que a expressão de
uma identidade socioeconômica. Em tudo isso, reaparece sempre o mesmo
elemento: a suposição de uma influência nefasta da mídia sobre os
indivíduos. Ora, os grupos de filiação são mais importantes e filtram
todas as mensagens.
—
Como os funcionalistas, o senhor acredita na força de grupos de
pertença. Esses grupos são, também para o senhor, o que Michel Maffesoli
chama de tribalismo?
Lipovetsky — Não
concordo com Maffesoli quanto ao tribalismo, pois para mim o que
constitui o fenômeno grupal contemporâneo é a abertura, a flexibilidade,
o transitório, enquanto que a palavra tribo remete ao fechado, podendo
ser válida para grupos marginais, mas jamais quanto ao conjunto da
sociedade. O tribalismo nunca poderia explicar situações de massa, nem a
liberdade de movimento. Os grupos indicam uma autonomia que, sem ser
absoluta, permite a adoção do conveniente a cada um, sem obrigação
mimética e com maleabilidade.
—
No seu elogio da publicidade, o senhor diz que esta colocou a
comunicação no lugar da coerção; a sedução no da rigidez normativa; o
lúdico no do adestramento. A publicidade, no seu entendimento, não é
totalitária e sempre deixa a possibilidade de escapar à sua ação e
influência. Como justificar, então, o seu alto grau de eficácia?
Lipovetsky — As
técnicas publicitárias permitem a eficácia, mas não são totalitárias. O
totalitarismo tem por lógica a reconstrução da condição humana. Já a
publicidade amplia a aspiração ao bem-estar. Amplia, insisto, não cria. A
publicidade faz vender, sem impor mecanicamente comportamentos ou
produtos. Crucial para as empresas, funciona como a sedução: só se pode
seduzir alguém que já esteja predisposto a ser seduzido. Logo, pressupõe
um limite para a persuasão. Além disso, atua sobre aspectos secundários
da existência, não sobre o fundamental como o amor, a educação dos
filhos, a política, a morte. Os apocalípticos dão um poder exorbitante à
publicidade e à mídia, poder que estes não possuem, mesmo que sejam
eficazes. A maioria da população, enfim, é perfeitamente indiferente ao
jogo da publicidade.
—
Ao contrário de Pierre Bourdieu, o senhor não crê que o consumo,
estimulado pela publicidade, baseie-se na busca de distinção social?
Lipovetsky — Comprar
uma BMW ou uma Ferrari produz distinção. Mas no consumo de massa,
pautado pela aquisição de produtos ao alcance de quase todos, a
distinção tem pouca importância. No caso, funciona, mais uma vez, o
crescimento da autonomia individual e, em função disso, a satisfação de
demandas pessoais.
—
Inúmeros pensadores referem-se a uma era da mídia e da informação. As
novas tecnologias da comunicação ajudam a criar espaços diferenciados de
interação ou isso não passa de um discurso excessivo sobre o papel da
técnica nas sociedades ocidentais de hoje?
Lipovetsky — Há
muito de mitologia nisso tudo. A mídia não atomiza nem isola. A técnica
depende do uso. A comunicação e o consumo acentuam o individualismo.
Mas o relacional não está ausente de nossas sociedades. O telefone não
matou o contato pessoal. Ao contrário, quem tem menos acesso à
tecnologia permanece mais isolado. O face a face não morreu nem perdeu
importância. Desapareceram, em contrapartida, formas tradicionais de
socialização, típicas da vida rural ou das sociedades arcaicas. Nas
grandes cidades, um em cada três habitantes vive só. Mas isso não quer
dizer, necessariamente, na solidão, não significa ausência de contato. A
sensação de solidão, em todo caso, não resulta da mídia nem da
tecnologia. Tem mais, certamente, a ver com a própria dimensão das
cidades.
A revolução individualista subterrânea
— Em seu belo livro, O Crepúsculo do dever, o senhor fala de neomoralismo no que seria a nova etapa do individualismo contemporâneo. Em que consiste o neomoralismo?
Lipovetsky — Prefiro
falar, realmente, em pós-moralismo. Com o hedonismo, as sociedades
contemporâneas entram numa civilização em que a moral heroica ou
sacrificial não tem mais legitimidade. Não se quer mais expor a vida por
uma causa, ideológica, política ou religiosa. A vida tem mais valor do
que as causas. Assim, os valores mudam, passam do sacrifício ao
respeito, à tolerância, ao bem-estar. O sonho do paraíso futuro cede
lugar à busca da satisfação imediata. Não se trata de cinismo, mas de um
certo pragmatismo. A indignação moral continua a existir, assim como a
ajuda ao próximo e o humanitarismo, porém sem rígida disciplina moral ou
valorização do risco físico.
— Em vez de cinismo, niilismo?
Lipovetsky — Não
convém “demonizar” o niilismo, que é diferente do individualismo. Para
mim, o individualismo equivale ao desenvolvimento da emancipação.
Implica tolerância, liberdade de escolha e comprometimento sem
imposição. Não é verdade que estejamos desinteressados de tudo. A luta
pelos direitos humanos está aí para demonstrar o contrário. Em
contraposição, experimentamos uma época de menor regulamentação moral.
—
Neste novo mundo pragmático e liberal, critica-se muito a crise de
valores e a perda de referências, ao mesmo tempo elogia-se ou
denuncia-se, conforme o paradigma adotado, o avanço do hedonismo e do
narcisismo. O século 21 começará sob o signo de uma nova ética?
Lipovetsky — Não,
não se trata de uma nova ética. Nossas sociedades ampliam os valores
judaico-cristãos. Há uma nova regulação dos valores morais, com o
aprofundamento dos ideais do Iluminismo, como o respeito ao outro, a
tolerância, a liberdade, a recusa da escravidão. Nessa nova regulação, a
tradição e a Igreja perderam o lugar privilegiado que possuíam.
Passamos da ilusão de transcendência à verdadeira imanência. Temos uma
axiomática de base: o humanismo.
— Pode-se falar em humanismo quando se denuncia o fim de todas as utopias?
Lipovetsky — Quanto
a isso, não tenho dúvidas: não existem mais utopias coletivas. O
neo-individualismo não exclui, porém, utopias pessoais e projetos
grupais. Trata-se de uma vitória da democracia liberal. Na crítica à
democracia, abriga-se o ressentimento dos intelectuais marxistas. Em
outras palavras, essa crítica identifica o fracasso dos intelectuais,
obrigados a exagerar, a explorar o espetacular, para tentarem
legitimar-se enquanto intérpretes do social. O intelectual crítico só
faz sentido se tudo estiver mal. Este fim de século assinala uma
extraordinária crise de identidade dos intelectuais.
— Em A Era do vazio,
lê-se o diagnóstico de um fim de século marcado pela indiferença, pela
sedução e pelo desengajamento. O senhor denomina esse avanço do
individualismo pós-modernidade. O termo, objeto de todas as polêmicas
durante pelo menos 15 anos, ainda tem validade para tentar compreender o
imaginário contemporâneo?
Lipovetsky — Não
cultuo as etiquetas nem as essências. Nem me agarro às palavras.
Tampouco tenho medo delas. Pós-modernidade para mim significa ressaltar
um novo sopro das sociedades democráticas. Representa um corte em
relação a dois séculos de modernismo. Pós-modernidade significa também a
conciliação da economia de mercado com direitos humanos. Logo, a
pós-modernidade é a reconciliação da modernidade consigo mesma. A
modernidade sempre esteve dividida, estraçalhada, gerando fenômenos como
o fascismo e o comunismo. A pós-modernidade evacua os inimigos
absolutos da modernidade, em nome da democracia. Este ciclo, começado há
40 ou 50 anos, apresenta continuidade e descontinuidade em relação ao
passado. Alguns falam em tardo-modernidade, em sobremodernidade, em
hipermodernidade. Seja qual for o termo, pressupõe um fenômeno novo a
ser designado.
—
Como o senhor vê todas as denúncias, entre as quais as de Pierre
Bourdieu, a respeito de um certo retorno da barbárie nas sociedades
contemporâneas?
Lipovetsky — Discordo
radicalmente. A pós-modernidade equivale, certo, à sociedade de
consumo. Mas não é sinônimo de neoliberalismo. Como interpretá-la:
inferno climatizado? Homem unidimensional, retomando Marcuse? Sociedade
do espetáculo, recuperando Débord? Ou consolidação da democracia e
aumento do nível de emancipação? Existem duas hipóteses centrais para o
exame das sociedades ocidentais contemporâneas. Na primeira, sobressai o
consumo, a uniformização dos modos de vida, a globalização econômica, a
hegemonia de certas marcas e a massificação. Na segunda, observa-se a
liberação em relação à tradição, às instituições, à Igreja, ao sagrado,
etc., com o consequente aumento da autonomia individual. Abordar somente
a manipulação é uma forma de manipular as pessoas. Estamos vivendo uma
revolução individualista subterrânea. Através dela, a condição de
existência está sendo mudada. Estamos longe da barbárie, apesar da
desigualdade, da exclusão, da miséria, da solidão de muitos, da
depressão e da incerteza.
— Não lhe parece que onde todos colocam sinais negativos, o senhor põe uma marca positiva?`
Lipovetsky — A
análise de tais questões produz esse efeito, sem que a validade dos
conteúdos se perca. Nos anos 60, via-se a sociedade de consumo como uma
forma de totalitarismo. Na verdade, o mundo estaria vivendo dois modos
totalitários concomitantes: no Leste europeu, o totalitarismo vermelho,
dos gulags e do stalinismo. No Oeste, a falsa democracia, liberal,
burguesa e representativa. Os cidadãos, convertidos em consumidores, não
conseguiriam perceber tais armadilhas. Tudo isso se tornou
insustentável.
— A democracia superou os adjetivos a ela aplicados por seus críticos?
Lipovetsky — A
crítica na democracia, pluralista, é muito forte. Pode-se atacar tudo,
mas há uma ideia, hoje, incontestável: o valor da própria democracia.
Tudo se discute, do direito dos homossexuais a adotarem crianças,
passando pelo sistema de proteção social e a defesa do meio ambiente,
até a clonagem de seres humanos. No entanto, a democracia e o mercado
predominarão, certamente, por muitos anos como incontornáveis. Resta
saber como organizá-los melhor, como tirar deles mais justiça e
igualdade, etc. A crítica social revolucionária morreu, não o poder
crítico e de pressão no interior da democracia. Bourdieu representa o
intelectual apocalíptico que “demoniza” a mídia sem ver que ela também
possui capacidades emancipadoras. Sua análise é unidimensional.
— Por que então tanto interesse pelas ideias de Bourdieu?
Lipovetsky — Talvez
por que ele encarna o intelectual “promotor”, acusador, ressentido. Há
má-fé nessas análises sobre a mídia, por exemplo, por parte de gente que
não deixa de colher os benefícios da exposição na própria mídia. Por
outro lado, existe uma dramatização excessiva de certos temas. A
crítica, quando apocalíptica, equivale à estupidez.
O século 21 será da terceira mulher
— Seu mais recente livro [que será lançado no Brasil, pela Companhia das Letras, no início do ano 2000] chama-se A Terceira mulher.
Bourdieu também abordou recentemente a temática da condição feminina.
Para um mesmo objeto, dois olhares masculinos divergentes?
Lipovetsky — No livro A Dominação masculina,
Pierre Bourdieu sugere que, apesar de todas as transformações no
imaginário ocidental do século 20, a condição da mulher permaneceu a
mesma. Ele é cego. Não percebe o quanto o lugar da mulher na sociedade
mudou. Houve a democratização da vida sexual, a diminuição da distância
entre os papéis masculino e feminino, a entrada em massa da mulher no
universo do trabalho e tantas outras coisas que revolucionaram a
situação tradicional homem/mulher. Como então sustentar que todas as
mudanças não passaram de meras aparências? A sociologia de certos
intelectuais peca pela obsessão da crítica total. Trata-se, em
realidade, insisto, de autolegitimação pelo excesso.
— Por que “terceira mulher”? Quais foram as outras duas?
Lipovetsky — O
século 21 não verá a extinção das diferenças sexuais como pensam
alguns. Depois de séculos de dominação cultural masculina, a mulher vai
assumir, cada vez mais, lugar de destaque. A terceira mulher tem hoje
uns 40 anos. A primeira foi a da imagem mais tradicional, a dos mitos de
Eva e de Pandora, demonizada e desprezada pelos homens, tida,
constitutivamente, como inferior. A segunda mulher, a partir da Idade
Média, começou a ser idealizada. Deixou de ser o mal para ser a musa, a
mãe, o objeto de adoração. Valorizada, sai do inferno para o pedestal. A
terceira mulher, no século 21, será ainda mais emancipada do que já é,
atuando na política, na arte, na direção de empresas, em tudo, mais do
que nunca. Entraremos no século da mulher sujeito.
— Em A Terceira mulher,
o senhor retoma a ideia de progresso da emancipação individual, no
caso, feminina. A liberação da mulher, tão defendida nos anos 60,
produziu todos os seus frutos?
Lipovetsky — Todos
os frutos, ainda não. Mas, depois de séculos de submissão, a mulher
objeto finalmente passou a ter um futuro aberto, a ser determinado por
suas práticas, escolhas, acertos e erros, e não mais pelas decisões dos
homens ou pela tradição. Há uma nova aliança, de resto, entre tradição e
individualismo. Na primeira fase do feminismo, postulava-se uma ruptura
total com o imaginário anterior. Assim como se sonhava com uma
sociedade sem classes, projetava-se um mundo sem distinções sexuais, ao
menos funcionais. Hoje, entretanto, as mulheres não rejeitam mais uma
certa ascendência sobre coisas como a educação das crianças, uma postura
existencial mais amorosa, a ênfase na relação entre amor e sexualidade.
Elas recusam o que impede a autonomia. Por exemplo, casar virgem.
— Também no campo feminino passou-se da revolução à reforma?
Lipovetsky — Certo
é que inexiste inércia. Deixou-se de lado o ideal da ruptura total e
adotou-se a pragmática da reciclagem. Neste nível de transformação,
tem-se uma mulher livre, indeterminada, aberta para o devir. Pode-se
continuar a valorizar a beleza feminina, mas isso não constitui mais um
símbolo da condição de mulher objeto. Tudo isso fará do século 21 um
tempo de nova sensibilidade.
— Quais serão as principais características dessa nova sensibilidade?
Lipovetsky — Haverá
uma efervescência, uma intensa sociabilidade entre as mulheres, o que
afetará também o comportamento masculino. Depois do culto da paixão,
voltaremos a sentimentos mais tranquilos, que eram importantes para os
epicuristas e em Aristóteles, como a amizade. Já estamos experimentando o
retorno das festas. Na Europa, a música eletrônica tem servido para
mostrar um corpo social reunido. Haverá, enfim, o direito à
superficialidade. Nietzsche dizia que devemos ser superficiais, por
profundidade.
— A superficialidade não é o que caracteriza a época atual?
Lipovetsky — Desde
Platão há uma desvalorização do frívolo, do jogo, do lúdico, de tudo o
que faz a leveza fundamental do cotidiano contra o drama existencial.
Olho novelas de televisão e nem por isso deixo de ler livros. Há quem
deseje ver na superficialidade da mídia a explicação para todas as
nossas misérias, inclusive a da arte contemporânea. Ora, esta é pobre e
não por culpa dos outros. A pós-modernidade encarna, aparentemente,
apenas o superficial. Mas, ao mesmo tempo, representa o contrário:
obrigação de rentabilidade, competição, performance, ser operacional,
ter sucesso. Significa também inquietude com o futuro, com a saúde,
angústia provocada pela insegurança e desamparo. A existência cotidiana é
mais complexa do que indicam os anúncios publicitários. E sabe-se
disso.
— O século 21 será, portanto, feminino e light?
Lipovetsky — Não.
A divisão de papéis sexuais, como disse, não desaparecerá. As
sociedades do século 21 serão duras. Os desafios do futuro já estão
diante de nós: vencer a crise social, diminuir a exclusão, superar a
dualidade da democracia, na qual convivem miséria e desenvolvimento,
consolidar certos avanços. Ninguém quer voltar atrás no individualismo
em se tratando de contracepção, divórcio, liberdade de escolha. Quem
gostaria de retornar à rigidez da disciplina partidária, aos casamentos
arranjados, à sociedade industrial da exploração? Resta-nos avançar em
relação à sociedade pós-moderna da exclusão. O apocalipse, porém, não
acontecerá.
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* Sociólogo.Escritor.Tradutor. Prof.Universitário. Colunista do Correio do Povo.
Fonte: Correio do Povo on line, 07/05/2013
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