domingo, 4 de outubro de 2009

Sobre os gatos

Rubem Alves*
Nunca tive intimidade com os gatos e sempre os olhei de longe, com desconfiança. Preconceito meu sustentado por uma estória que minha mãe contava de um gato que havia matado um padre. Imagino que tal padre deveria odiar o dito gato, o que explicaria o gesto assassino do felino, unhas na carótida sagrada. Sei que o gato não teria feito o que fez se para tal não houvesse razões.
Os bichos que amo são os cachorros e eles me amam. Meu amor pelos cachorros tornou-se literatura num artigo que escrevi sobre minha cadela Lola, a pedido da redação da Folha. Olhando para os seus olhos que estavam ternamente fixos nos meus eu me perguntei: “O que será que ela pensa de mim?” Sobre isso escrevi.
Cães, nem sei quantos tive: pastores, dobbermans, dálmatas, boxers, weimaraners, cockers... Os dobberman foram os mais obedientes; os boxers, os mais mansos e efusivos. A Nina, cadela dálmata, foi a mais desobediente e não gostava de crianças. Era preciso trancá-la quando havia crianças em casa.
Menino, eu sonhei ter um cãozinho. Mas nunca me foi permitido ter um. Realizei o meu sonho simbolicamente: comprei um caderno de desenho dos grandes no qual fui colando fotografias de cachorros que eu recortava de revistas. Meu amor pelos cachorros assim se realizou platonicamente.
Mas nunca tive simpatia pelos gatos. Também eles nada fizeram para que eu gostasse deles. Os cachorros são comunicativos, querem fazer amigos, são dotados de um humor italiano, fazem barulho, estão sempre sorrindo com o rabo, gostam de brincar e seu único desejo é agradar os seus donos. Uma amiga enviou-me um e-mail contando da sua cadela Labrador, adolescente, chamada Lua. Pois a Lua gosta de plantas, especialmente bromélias, que ela arranca do jardim e deposita na porta da cozinha com latidos de felicidade, latidos esses que, se traduzidos, querem dizer: “Eis o presente de flores que colhi no campo para você...”
Os cães se parecem tanto com os humanos! O que já havia sido constatado por um dos nossos antigos Ministros que, inquirido sobre as razões que lhe permitiam transportar o seu cão em carro oficial, explicou: “Os cachorros também são seres humanos...”
Se isso tivesse acontecido no Egito Antigo, e um ministro fosse inquirido pelo seu uso das carruagens oficiais para transportar o seu gato, a resposta seria mais surpreendente: “Não sabe o senhor que os gatos são seres divinos?” Sim, no Egito os gatos eram deuses. Talvez algo dessa teologia tenha escorrido até nós. Pois não dizemos de uma mulher bonita “Ela é uma deusa” e, para completar, “Ela é uma gata”?
Mas comecei a mudar de idéia sobre os gatos quando minha filha me deu um gato de presente. E logo ficamos amigos, eu e o gato.
Hoje fui informado sobre os poderes médicos dos gatos. Meu médico clínico me enviou um artigo que apareceu no The New England Journal of Medicine, July 26, 2007, um dos mais respeitados periódicos das ciências médicas. Sobre um gato chamado Oscar. Oscar vive numa instituição que acolhe pessoas num estado terminal. Diariamente ele segue uma rotina. Abre os olhos preguiçosamente e põe-se a fazer aquilo a que os médicos dão o nome de visita: vai de leito em leito, sobe na cama, cheira o ar e faz o seu diagnóstico. Se não é para acontecer naquele dia ele desce e vai para o leito seguinte onde repete o procedimento. Se, por acaso, sua misteriosa sensibilidade deteta o cheiro ou as vibrações ou a música da morte, ele se aloja junto ao moribundo e a enfermeira sabe que é preciso avisar os parentes.
Relatando esse poder místico do gato Oscar a uma amiga ela deu uma risadinha e disse: “Talvez a explicação seja mais simples...”
Não gostei do risinho dela porque ele destruía o encantamento dos gatos que me dominava, seres com ligações com o outro mundo.
“E qual seria a explicação?”, perguntei num tom de desafio.
Ela respondeu: “ Eu acho que o Oscar se deita ao lado dos moribundos porque eles são mais quentinhos, por causa da febre.”
Aí o meu gato perdeu o status de emissário do outro mundo. Eu havia me referido ao cheiro, às vibrações e à música da morte no corpo dos moribundos de que o Oscar se valia para dar o seu diagnóstico. Mas havia me esquecido do “calor”.
Aí meu gato voltou a ser simplesmente um gato... Posso dormir tranquilo sem imaginar que ele está me enviando profecias ao se encorujar ao meu lado...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/ 04/10/2009

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