sábado, 12 de junho de 2010

Elisabeth Roudinesco - A questão judaica

“Deve-se combater o antissemitismo
de todas as maneiras”
Em “Retorno à Questão Judaica”,
 autora expõe os dilemas da condição judaica
na Europa moderna

A francesa Elisabeth Roudinesco ocupa uma posição peculiar na história das ideias na Europa. Antes dela, nenhum historiador havia sido capaz de fazer do intrincado percurso da doutrina freudiana a matéria-prima de best-sellers como História da Psicanálise na França (Jorge Zahar, 1989) e Jacques Lacan – Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento (Companhia das Letras, 1994). Roudinesco consegue ser clara com erudição e reflexiva com desprezo pela ortodoxia cega. Em seus livros, pode-se travar contato com os grandes debates que constituem o pano de fundo da implantação da psicanálise entre os franceses por meio de uma prosa leve como uma conversa ao redor da mesa de jantar.
Uma chave para o estilo límpido de Roudinesco pode ser encontrada nesta entrevista, concedida por telefone, de São Paulo, no dia 2: para ela, a psicanálise sempre foi um tema de debate em família. Filha do médico Alexandre Roudinesco e da psicanalista Jenny Aubry, ela conviveu com Jacques Lacan, Alain Corbin e Michel Foucault e abraçou a psicanálise. Hoje, é diretora de pesquisa em história na Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.
Foi na idade adulta, como professora de escola na Argélia, que Roudinesco se deu conta de sua condição judaica (ou, como ela prefere, sua “judeidade”). Em Retorno à Questão Judaica, recém-publicado no Brasil, aborda esses temas com a profundidade que já se tornou sua marca registrada. A seguir, trechos de entrevista concedida por Elisabeth Roudinesco no dia 2:

Zero Hora – Por que a senhora decidiu voltar à questão judaica?
Elisabeth Roudinesco – Queria escrever este livro há muito tempo. Estudei toda a história da psicanálise, na qual a questão do judaísmo é sempre presente. Evidentemente, a psicanálise se ocupou dos judeus e assistiu ao nascimento do antissemitismo moderno e à questão dos judeus de Viena no fim do século 19. Tudo isso me toca em nível pessoal. Trato também da questão do nascimento do judeu moderno, do judeu sem Deus, da “judeidade”, como a chamo, e da questão do sionismo, que, paralelamente à psicanálise, enfrenta o discurso antissemita em Viena no fim do século 19, que marca a transição do antijudaísmo medieval para o antijudaísmo “iluminista”. Isso tudo certamente tem uma relação particular com os acontecimentos de Israel hoje.

ZH – O ex-primeiro-ministro israelense Ariel Sharon disse em 2004 que os judeus franceses deveriam imigrar para Israel em razão do antissemitismo na França. O antissemitismo é um problema atual entre os franceses?
Roudinesco – O antissemitismo é um problema permanente no mundo inteiro, não somente na França. O antissemitismo nasceu na Europa e existe mesmo nos países em que não há judeus. Creio que o antissemitismo existirá sempre, e, se é assim, deve ser combatido de todas as maneiras possíveis. Mas há uma resposta no combate ao antissemitismo – a do sionismo, no final do século 19 – que criou uma ruptura entre os judeus. Não é uma solução sair de seu país para escapar do antissemitismo. Eu sou francesa e devo combater o antissemitismo em meu país sempre. Isso não significa apoiar a política da direita nacionalista israelense neste momento.

ZH – No seu livro, a senhora diz que não tinha refletido sobre sua condição de judia até sua experiência como professora na Argélia. Pode falar um pouco sobre isso?
Roudinesco – Sim. Fui à Argélia, como professora de classes muito jovens, em meio à Guerra dos Seis Dias (1967). Esses alunos fizeram uma inscrição com a suástica (símbolo nazista) contra Israel na minha sala de aula. Compreendi que era um gesto inconsciente, ou seja, que eles não sabiam o que haviam feito. Eles eram contra Israel, em razão da Guerra dos Seis Dias, mas ao mesmo tempo recorriam à suástica. Isso me fez perceber que havia uma confusão, porque poderiam ser contra Israel sem associar isso à suástica. Então, decidi lhes dar um curso com uma explicação sobre o que havia se passado na Europa com o extermínio dos judeus. Ao final do curso, eles apagaram a inscrição na parede. Foi uma experiência a partir da qual pude ver que a adesão deles ao discurso antissemita não era consciente. No fundo, eles eram contra os judeus e contra Israel sem saber o que havia se passado na Europa. No meu livro, trato da questão do discurso antissemita como um discurso inconsciente.

ZH – Como seus pais viram a criação do Estado de Israel?
Roudinesco – Foram favoráveis, certamente. O problema com minha família é que meus pais eram judeus totalmente assimilados, não praticantes, republicanos. Evidentemente, não podiam aceitar o regime de Vichy. Ao mesmo tempo, eram assimilacionistas. Fui batizada como católica por razões de assimilação. Em família, não tínhamos religião. Não tive educação religiosa judaica, e sim republicana. Como resultado, não tenho uma identidade específica. Não me sinto particularmente ligada a uma herança judaica, mas sim a uma herança iluminista. Não recebi a psicanálise a frio. Minha mãe foi uma das pioneiras da psicanálise na França e vinha de uma família, por parte de mãe, de judeus alemães, e de pai, de protestantes alsacianos. Meu pai era um judeu romeno distante do judaísmo.

ZH – Qual é sua opinião sobre o episódio do ataque das forças israelenses à flotilha de ajuda humanitária que se dirigia a Gaza?
Roudinesco – Condeno radicalmente essa intervenção contra um barco humanitário. Essa política é catastrófica para o Estado de Israel.

ZH – A senhora é favorável ao projeto de lei que proíbe o uso de burka por mulheres muçulmanas na França?
Roudinesco – Não. Sou favorável à proibição da burka, mas não sou favorável à existência de uma lei específica a esse respeito. Na França, é muito complicado proibir uma vestimenta na rua. Sou favorável a que se combata o uso da burka com a legislação existente. Ela já está proibida nas escolas, nos hospitais, em todos os lugares da República. A questão que se coloca hoje é a de se criar uma lei específica para proibir uma vestimenta na rua. Se proibimos uma vestimenta na rua, está aberta a via para proibir outras. Não sou favorável a uma lei específica que proibirá a burka a todas as mulheres que a quiserem usar na rua. Essa proposta é contra dispositivos constitucionais, contra a Convenção Europeia. Sou pelo reforço do dispositivo de proibição da burka e de todas as formas de opressão das mulheres. O uso da burka é um comportamento patológico.

ZH – A senhora crê que a lei já existente é suficiente para esse propósito?
Roudinesco – Não temos hoje o direito de andar mascarados nas ruas da França. Nas ruas, você é obrigado a mostrar seu rosto. Mas, na rua, é complicado proibir o uso da burka porque, se isso acontecer, se poderá proibir todo tipo de roupa extravagante. Haverá todo tipo de comunidade capaz de propor a proibição, por exemplo, de vestidos curtos. Por outro lado, sou a favor de reforçar o dispositivo que obriga a exibição do rosto nas ruas. Não é possível ter, nesse caso, uma resposta maniqueísta a favor ou contra. Mas haveria, de nossa parte, uma contradição se defendêssemos os direitos humanos, a liberdade máxima na Europa e no mundo se não nos colocássemos contra a opressão das mulheres ao nosso lado. Trata-se, por outro lado, de respeitar as liberdades individuais. Essa é, afinal de contas, uma questão de escolha individual.
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Por LUIZ ANTONIO ARAUJO
Colaborou Fernanda Grabauska
Fonte: ZH - CULTURA online, 12/06/2010

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