domingo, 13 de junho de 2010

"Escrevo quando alguma coisa me espanta"

Próximo de completar seus 80 anos,
Ferreira Gullar conversou com o povo sobre vida, trabalho, família,
política e a homenagem do Prêmio Camões

Foi de seu apartamento, em Copacabana, que o escritor Ferreira Gullar atendeu a reportagem do O POVO para uma longa conversa por telefone. Se num primeiro momento a voz parece trêmula, falha, logo ela assume a postura firme de quem sempre manteve a opinião afiada diante das artes, da política, da literatura. Durante a conversa, ele falou ainda sobre sua passagem por movimentos artísticos, exílio, reforma gramatical e tratamento para esquizofrenia, mal que atingiu seus filhos mais velhos, Marcos (falecido) e Paulo.
Nada escapa ao olhar de Ferreira Gullar. Mas é mesmo na literatura que ele encontra seu terreno mais fértil. Desde a descoberta das letras (“Não conhecia literatura, a não ser pelos livros do colégio.”) até se firmar como um autor brasileiro (“Quando o Poema Sujo foi publicado, ele foi unanimemente aplaudido”), ele sempre soube que ali estava seu abrigo. E hoje, perto de completar seus 80 anos e homenageado com o Prêmio Camões, ele mantém inteiro no seu ofício. “Poesia não é uma coisa que se determina ‘agora eu vou escrever’. Nenhum poeta faz isso e se fizer sai porcaria. Você entra num estado que permite você escrever um poema”. (Marcos Sampaio)

O POVO - Seu nome de batismo é José Ribamar Ferreira. Como veio o Gullar?
Ferreira Gullar – Esse sobrenome é de minha mãe. Como no Maranhão todo mundo é Ribamar, até o Sarney, passei a usar o Goulart. Depois, eu adotei esse “Gullar” pra ficar mais diferente ainda. E tinha outro José Ribamar. Começaram a confundir os meus poemas com os escritos por outro cara. Mudei para não acharem um outro igual. Agora não vai aparecer mais poema ruim com o meu nome. Só os meus.

OP – No seu site oficial, há uma passagem curiosa que diz que, em 1943, que você, apaixonado por uma menina, decidiu largar seus dois grandes amigos, “Esmagado” e “Espírito da Garagem da Bosta”, pra ficar lendo e escrevendo poemas em casa. Foi por ela que você passou a se interessar por literatura?
Ferreira Gullar – Não foi assim. Comecei a me interessar por literatura no lugar de ir para rua vagabundar. Não foi uma menina que me fez. Eu até escrevi pra ela, mas não foi ela que me fez virar poeta. Seu nome era Terezinha. Gostei dela, mas não cheguei a namorar. Já o Espírito e o Esmagado eram meus companheiros.

OP – Qual era seu contato com a literatura até essa idade?
Ferreira Gullar – Ela começou nesse período. Sempre fui um bom aluno de português, mas não conhecia literatura, a não ser pelos livros do colégio. Meu interesse em escrever foi despertado por perceber que eu tinha uma facilidade com aquilo. Eu descobri, achei que podia ser poeta e passei a me dedicar.

OP – Aos 15 anos, uma nota nove que você recebeu por uma redação foi um incentivo para entrar de vez na literatura. Só não recebeu um 10 por conta de dois erros de português. O que essa redação tinha de especial que lhe deu a certeza de que era um caminho a seguir?
Ferreira Gullar – Isso foi quando estudava na Escola Técnica de São Luís. Eu fiz essa redação dizendo que no Dia do Trabalho ninguém trabalhava. Minha professora achou isso interessante e disse: “Só não dou um dez porque tem dois erros de português”. Foi nesse momento que eu pensei: “Se eu posso ser escritor, não posso errar no português”. E passei dois anos só estudando gramática pra não errar mais.

OP – Você acha o português uma língua difícil? O que mudou com a reforma gramatical?
Ferreira Gullar – Pra mim, não. Os estrangeiros dizem que é. As pessoas dizem que tem muitas variações, muitas dificuldades. Por exemplo, uma hora o som do “S” é com “Ç” outra é dois “SS”. Isso, realmente, deve fundir a cuca de muita gente. Mas, quanto à reforma gramatical, isso é perfeitamente dispensável. Não tem o menor sentido. Principalmente uma como essa que aconteceu aqui. Tirar o trema de “lingüiça”?! A grafia deve ser a expressão da linguagem falada. Não posso falar “lingüiça” como se fala “preguiça”. Como vou explicar isso para um garoto? Vejo como uma arrogância de meia dúzia de pessoas impondo uma língua. O que ela tem de exceções... Não sei pra que fazer isso. Só o prejuízo que deu pras editoras tendo que reeditar dicionários, o cara vai ter que reeditar os livros. Vão se preocupar com coisa mais importante!

OP – Além de escritor, você também é conhecido pela atuação política. De onde vem sua preocupação com os assuntos sociais? Em casa você teve incentivo para as letras e para a política?
Ferreira Gullar – A poesia que eu fazia no começo não tinha nada de social, nada de político. A luta corporal não tem nada de político. Mas, a preocupação, sim eu sempre tive. Minha casa não tinha ninguém envolvido nem com questões literárias, nem políticas. Foi mesmo de se envolver, do meu temperamento. A maioria das pessoas está se lixando pro que está acontecendo. Não tá ligando. Mas, cada um é como é.

OP – Você foi presidente do Centro Popular de Cultura, da UNE, filiou-se ao Partido Comunista e foi um dos fundadores do Grupo Opinião. Como você vê hoje sua participação política?
Ferreira Gullar – Sempre fui questionador. Chegou uma época em que já estava me afastando do partido. Cheguei até a conversar que queria me dar um tempo. Eu já tava revendo algumas coisas. O tempo me deixou ver uma série de coisas. Nunca fui de querer fazer parte de partido. Estou sempre questionando as coisas e, quando você entra pra um partido, se for questionador, você vai criar problemas. Preferi não participar. Eu não me arrependo de nada que eu fiz. Era aquilo mesmo. As pessoas tem o direito de questionar as ideias e atuações, se tava certo ou não. É saudável. Melhor do que ficar se submetendo a tudo sem ter atuação.

OP – Na época da Ditadura Militar, você passou um tempo clandestino e outro como exilado. Como foi esse período? Com o que trabalhava?
Ferreira Gullar – Eu tive oito meses de clandestino, trancado num quarto no Rio. Fiquei até se tornar insustentável. Saí e fiquei em outro apartamento mais alguns meses. Foi uma super crueldade. Como exilado, fui para Moscou, Chile, Lima e Buenos Aires. Foi em Buenos Aires onde escrevi o Poema Sujo. Fiquei assim até 1977. Uma das coisas que eu pude fazer foi dar aulas de português pra quem vinha pro Brasil trabalhar. Era pouco dinheiro, mas dava. Eu estava só lá. Eu não queria arrastar a família pra viver a confusão. Em Santiago (Chile), minha mulher queria ir pra voltar a viver junto comigo. Mas eu senti que o Allende não ia durar muito. Sabia que o governo ia cair. A situação era muito ruim.

OP – E o retorno ao Brasil?
Ferreira Gullar – Minha vinda foi uma decisão minha. Quiseram fazer um movimento pedindo pelo meu retorno, mas eu não autorizei. Eles (os militares) não eram donos do Brasil. Decidi voltar abertamente. No dia seguinte ao meu retorno, fui preso no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna). Passei por um interrogatório de 72 horas sem dormir. Mas eles não podiam fazer nada. Nem torturar fisicamente porque eu anunciei minha volta. Sabia do risco que eu tava correndo, mas eles tiveram que me soltar mesmo contra a vontade.

OP – Antes do exílio, você teve contato com a Poesia Concreta. Havia política na neste movimento? Você se considerava um Poeta Concreto?
Ferreira Gullar – Na verdade, eu era um poeta de vanguarda. Fui do movimento concretista e criei um movimento Neoconcreto, que não tinha nada de político. Quando abandonei o Concretismo, os poetas concretos e quem gostava dessa poesia de vanguarda dizia que tinha traído a vanguarda pra fazer poesia política. Não dei importância pra eles. Eu achava que era hora de lutar pelo país. Quando o Poema Sujo foi publicado, ele foi unanimemente aplaudido. Tava na lista do mais vendidos.

OP – Ainda hoje, você se mantém um observador da política nacional. O que você acha sobre o Brasil em 2010?
Ferreira Gullar – Nas crônicas que escrevo pra Folha eu falo disso. Próximo domingo (hoje, 13) é sobre a posição do Lula em relação ao Irã. Essa maluquice. O (Mahmoud) Ahmadinejad (presidente do Irã) disse que não houve um holocausto. Um cara que fala isso não pode ser levado a sério. Lula ainda não chegou a isso. Eu estou a par. Acompanho a vida política do Brasil. Eu estou preocupado com o pode acontecer. Espero que a Dilma não ganhe porque, cara, ela não nada tem a ver com isso. O Lula inventou que ela iria ser Presidente da República e nem o PT queria. Ela não pode abrir a boca que não sai nada. Ela não é burra, só não é uma pessoa com vocação para gerir o País. Isso pode ser um desastre. Não acho que ela não ganhe, assim como espero. Simplesmente acho que não é bom para o país.

OP – Em maio do ano passado, você falou à revista Época sobre os seus dois filhos esquizofrênicos e alertou para os problemas em relação à política brasileira de internação. Alguma coisa mudou de um ano para cá?
Ferreira Gullar – Eu acho que o governo foi e está sendo pressionado pelas famílias que não conseguem cuidar dos parentes. Ninguém defende que o doente deva viver internado. Quando o doente entra em surto psicótico, ele tem que ter apoio de internação. Nesse momento, ele tem que ser internado. O Governo acabou com a política de internação. Isso é uma decisão idiota, tola que, no fundo, parte do principio que quem adoece é a sociedade. Essa política é primária e tola. Eles chamam isso de Psiquiatria Democrática. Enquanto isso, quem tem dinheiro pega seu filho e interna numa clínica particular que é 10.000 reais por mês. E o trabalhador que ganha salário mínimo? Então o filho do trabalhador, graças ao PT, não tem onde internar seus parentes. Ele é uma pessoa desamparada que não sabe o que fazer.

OP – E no assunto literatura? O que tem lhe chamado a atenção?
Ferreira Gullar – Há bons poetas ficcionistas. Não vou mencionar pra não esquecer ninguém. Mas, a poesia brasileira vai bem. Temos bons poetas. Não só os novos. Tem uns de 50 anos que são bons poetas. A poesia não é um modo de expressão totalmente popular, mas temos uma qualidade muito boa. Dentro do quadro internacional, temos grandes poetas. Não tenho muita memória, posso omitir uma porção de gente. Mesmo essa geração do Drummond, Vinicius, nem todo mundo que começou a publicar era bom. Mas há bons poetas.

OP – O que representou pra você receber o Prêmio Camões?
Ferreira Gullar – Estou muito contente pelo reconhecimento em nível internacional. É um prêmio conferido em todos os países da língua portuguesa. Uma homenagem significativa.

OP – Hoje, perto dos 80 anos, você mora só em seu apartamento em Copacabana. Como é sua rotina? Como anda seu processo criativo?
Ferreira Gullar – Eu escrevo, trabalho, leio, pinto por hobby, dou entrevista e escrevo um artigo pra Folha de São Paulo todo domingo. Por acaso escrevo poesia, mas isso não sou eu que determino. Escrevo quando alguma coisa me espanta. Quando tenho vontade de expressar. Acontece raramente. Faz 11 anos que saiu o último livro. Esse novo (Romances de Cordel, Ed. José Olympio) é o relançamento de poemas da década de 60. Nunca escrevi muito. Poesia não é uma coisa que se determina: “agora eu vou escrever”. Nenhum poeta faz isso e se fizer sai porcaria. Você entra num estado que permite você escrever um poema.

OP – Você já reconhece seu estilo em algum poeta? Acha que influenciou muita gente?
Ferreira Gullar – Eu acredito que há poetas que aprenderam algumas coisas comigo. Alguns dizem isso abertamente. Isso é natural. Eu também fui influenciado por Mallarmé, Drummond, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa. Cada poeta procura ter um caminho próprio, mas até chegar lá...
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Fonte: O Povo online, 12/06/2010
http://opovo.uol.com.br/app/o-povo/vida-e-arte/2010/06/12/internaimpressavidaearte,2009433/escrevo-quando-alguma-coisa-me-espanta.shtml

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