sábado, 12 de junho de 2010

Saúde e indústria: a imprecisa fronteira

MOACYR SCLIAR*
É coisa muito antiga: epidemias costumam mobilizar a paranoia das pessoas, que não raro veem na doença o resultado de uma conspiração maligna. Quando a sífilis apareceu na Europa, no começo da modernidade, os franceses falavam em “doença italiana”, mas para os italianos tratava-se do “mal gaulês”. Os portugueses temiam a “doença castelhana”, mas para os poloneses o terror era a “doença alemã”, e, para os russos, a “doença polonesa”.

Os mesmos temores se estendem às vacinas, várias vezes recusadas. No caso da gripe, e da vacina antigripal, surgiram os mais desencontrados boatos, que a internet ajudou a disseminar pelo mundo inteiro.

* * *

Mas nem toda suspeição é paranoica, como mostra um editorial publicado no respeitável British Medical Journal (BMJ) no início deste mês, acerca da gripe suína. A devastadora epidemia que muitos anunciavam felizmente não ocorreu; e as compras de enormes quantidades de medicamentos antivirais, como o oseltamivir, resultaram desnecessárias.

Claro, sempre podemos dizer que, nessas situações, é melhor sobrar do que faltar; o problema é que o dinheiro aí empregado poderia ser melhor usado em outras áreas. Por causa disso, o BMJ e o Bureau of Investigative Journalism promoveram uma investigação privada e mostraram, entre outras coisas, que:

1) Alguns dos técnicos e cientistas que assessoraram a Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca da possível pandemia tinham ligações financeiras com companhias farmacêuticas fabricantes de produtos usados no combate à gripe;

2) A OMS constituiu um comitê de emergência para assessorar a diretora-geral, Margaret Chan, acerca dos critérios que proclamariam a existência da epidemia, um evento que inevitavelmente elevaria o preço dos produtos antivirais. Os nomes de pessoas componentes desse comitê foram mantidos em segredo.

Conclui o relatório da investigação: “Faltou transparência ao processo decisório no caso da gripe A H1N1”.

 
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Vamos deixar clara uma coisa: ninguém foi prejudicado diretamente por tal processo decisório. Mas isto remete à questão do relacionamento da área técnica com a indústria. E lembra que há 30 anos, em 1980, Arnold Relman, que era então editor do influente New England Medical Journal, publicou naquele periódico um trabalho que fez história e que se intitulava O Novo Complexo Médico-Industrial, uma analogia à expressão antes usada pelo presidente Dwight Eisenwoher, “complexo industrial-militar”. Dizia Relman: “Este novo ‘complexo médico-industrial’ cria problemas de uso excessivo de serviços, demasiada ênfase na tecnologia, e pode exercer influência indevida na formulação da política de saúde”.

Um alerta que, convenhamos, pode se ter revelado profético.
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*Médico. Escritro. Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 12/06/2010

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