sábado, 4 de dezembro de 2010

Política internacional pós-moderna

PAULO FAGUNDES VISENTINI*
Imagem da Internet
NERDGUERRILHA E SEGURANÇA

O escândalo internacional envolvendo a divulgação de documentos secretos da diplomacia norte-americana atual pelo site WikiLeaks, apesar de representar um terremoto político, constitui um evento difícil de analisar com alguma originalidade. Por um lado, parece que os fatos (ou as palavras) falam por si mesmos, fazendo os comentários se tornarem redundantes. Por outro lado, por serem óbvios demais, geram perplexidade e incredulidade.
As opiniões se dividem, com alguns acreditando que “o Império está nu”. Mas parte deles, otimistas, acha que nada grave deve ocorrer, enquanto outros, catastróficos, creem que haverá crises internacionais, de caráter diplomático e militar, em decorrência dos vazamentos. Há ainda quem interprete o evento como a afirmação do “poder libertador da internet”, que estaria gerando uma realidade política radicalmente nova. Mas todo semestre digo aos estudantes, que preferem os meios eletrônicos às bibliotecas na elaboração de trabalhos acadêmicos: “Nem tudo que existe está na internet e nem tudo que está na internet existe (e algumas informações até desaparecem)”.
Há três redes utilizadas pela área de segurança americana, e as informações vazadas são oriundas da menos relevante. Na verdade, não há nada de novo, a não ser o nome de alguns informantes (que ficaram em má situação), o ridículo de certos estereótipos e o embaraço dos diplomatas, que são treinados para agir como se tudo sempre estivesse normal. Como disse a embaixadora americana na ONU, Susan Rice: “Somos todos adultos aqui. Em alguns casos, diplomatas são mais do que apenas diplomatas”. O que é verdade, até certo ponto. Eles têm, universalmente, a tarefa de informar seu país sobre o que ocorre no seu posto. Mas a ingerência em assuntos internos, não; e pior ainda para funcionários de outros países que fornecem informações a uma potência estrangeira.
Quem não sabe que a China tem sempre um plano alternativo para alguma política que não dê certo? Ou que os Estados Unidos tentam compreender e monitorar permanentemente os regimes de esquerda da América Latina, que consideram imprevisíveis? Ou, ainda, que Washington busca uma saída negociada para duas guerras que não podem ser ganhas (Afeganistão e Iraque)? Enfim, que uma superpotência age como superpotência? Nada de novo sob o sol, exceto que a legitimidade do discurso vigente terá de ser refundada, o que levará tempo.
A hipótese de que um simples soldado ou funcionário de baixo escalão poderia colocar em xeque a política externa norte-americana é preocupante. Ou a superpotência, que investe somas astronômicas em segurança, na verdade encontra-se em situação caótica, ou há algo mais sutil em jogo. Nos anos 1990, por exemplo, quando o governo sul-coreano iniciou diálogo e cooperação com a Coreia do Norte, os falcões em Washington e em Seul reagiram com vigor. Curiosamente, contudo, foram disponibilizados documentos reservados, inclusive fotos e filmes chocantes, sobre massacres perpetrados por tropas americanas e sul-coreanas contra camponeses nas duas Coreias. Então, a linha dura se calou e as negociações avançaram, tendo sido sugerido que o vazamento seria obra da administração Clinton.
Hoje, o que se observa é um quadro de reconfiguração da ordem mundial, com algumas potências em processo de enfraquecimento e outras em ascensão. Trata-se apenas de uma tendência, mas que tem se afirmado. Esse processo está associado à crise econômico-financeira, especialmente forte nos países da OCDE (os ricos), que muitos acreditam ser “sistêmica”. Já a situação política internacional tem sido enfrentada de maneira assistemática e sem sucesso, pois a globalização está criando uma realidade nova, ainda não plenamente decifrada, seja pelos conservadores, seja pela esquerda. E quanto à crise econômica, falhados os remédios neoliberais de ontem, recorre-se a uma versão perversa do keynesianismo de anteontem. Ou seja, o quadro é o de uma estagnação programática e estratégica.
Historicamente, esse tipo de situação abre espaço para forças novas (ou não visíveis), que tendem a irromper inesperadamente, com efeitos imprevisíveis. Para garantir a governabilidade no interior das nações, cada vez mais há coalizões multipartidárias que desapontam o eleitorado e são incapazes de formular novas políticas. Poderosos mitos estruturantes, como a União Europeia, o euro e o dólar, debilitam-se e geram uma perplexidade silenciosa (já há europeus buscando emprego no Brasil e na África). O governo Obama, do qual se esperava uma correção de rumos externa e interna, encontra uma resistência interna que gera uma paralisia preocupante.
Enfim, esse é o mundo onde ocorre o fenômeno WikiLeaks. No que diz respeito à dimensão da continuidade, os vazamentos têm certa racionalidade e poderiam auxiliar a desbloquear certos impasses políticos atuais. Há nisto tudo uma mensagem sutil que, nos termos da maçonaria, só é compreendida pelo círculo concêntrico interno, dos iniciados, e que para os externos é confuso ou inapreensível. O problema é que não se visualizam as forças que poderiam aproveitar a oportunidade criada para instrumentalizá-la positivamente.
Aí ganha relevância uma dimensão de ruptura, gerada pelo advento da concepção pós-moderna. Segundo ela, tudo no mundo se apresenta virtual, caótico, inexplicável. Os supostos terroristas “orientais” são vigiados por satélites, mas o golpe vem de dentro, desferido por brancos ocidentais vinculados ao sistema (um soldado) e ao que ele gerou de mais moderno (a revolução informática). Em lugar das negociações racionais da diplomacia e dos conflitos militares, mergulha-se numa guerra cibernética, virtual, onde amigo, inimigo ou simples observador, onde verdade, mentira e fantasia, se confundem num universo único.
Essa parece ser a maneira como a população apreende o fenômeno. Contudo, para explicá-lo “cientificamente”, ou se aceitam as teorias conspirativas, dotadas de certa racionalidade, ou se reconhece que o caos e o descontrole se tornaram fenômenos dominantes. Muito provavelmente a política internacional pós-moderna constitui uma forma aparentemente abstrata e fluida através da qual interesses concretos se enfrentam numa época de transição e anomia.
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* POR PAULO FAGUNDES VISENTINI HISTORIADOR, PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NA FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS DA UFRGS
Fonte: Zero Hora online, 04/12/2010

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