sábado, 7 de maio de 2011

Maior do que a vida

Literatura: Biografia de Virginia Woolf, p
revista para chegar ao Brasil neste ano,
 investiga a última década de uma
das grandes escritoras do século XX.
Getty Images
Virginia por volta de 1933:
 "Embora os anos 30 tenham sido cruciais para ela,
sua vida e obra naquele tempo receberam menos atenção
do que mereciam", diz biógrafo


O fecho que a escritora Virginia Wolf escolheu para a própria vida se deu em 28 de março de 1941. Ela encheu os bolsos de pedras e entrou mansamente no rio Ouse, em Lewes, a 71 quilômetros de Londres. O corpo só foi encontrado no dia 18 de abril. Foi a última entre outras tentativas. "Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer… Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível", ela escreveu no bilhete final ao marido, Leonard Woolf. A "doença terrível" era a depressão.Em 1941, a Inglaterra vivia sob bombardeio nazista, e não parecia haver remédio para o mundo, condenado à catástrofe totalitária. Isso era algo que Virginia e seus amigos do célebre grupo Bloomsbury, voltados a uma espécie de celebração libertária da vida, não poderiam suportar. Muitos deles, por sinal, haviam escolhido a mesma saída da escritora, caso fossem ameaçados de perto pelas botas lustrosas dos soldados de Hitler. Virginia, a mais fragilizada de todos eles, foi mais rápida.
Esse dado biográfico sempre exerceu grande fascínio sobre leitores e biógrafos. Nenhum deles, porém, havia se fixado nos últimos e tristonhos anos de vida da artista para deles extrair algum vigor que tivesse um peso importante no conjunto da obra. Herbert Marder, professor de literatura da Universidade de Illinois, que nasceu em Viena, mas cresceu em Nova York, concentrou-se na década final de Virginia Woolf para dela tirar um extrato valioso. É dele a biografia "Virginia Woolf: The Measure of Life", que a Cosac Naify deve lançar até o fim do ano.
"The Measure of Life", escrito há dez anos, buscou suprir uma lacuna. "Embora os anos 30 - incluindo aí o começo da Segunda Guerra Mundial - tenham sido cruciais para ela, a vida e a obra de Woolf naquele tempo receberam menos atenção do que mereciam", diz ele. "Durante aqueles anos, ela se tornou mais tolerante e politicamente iluminada em resposta aos eventos sombrios da Europa. Ela viu o que estava acontecendo e entendeu tudo melhor do que muitos líderes políticos. Os anos 30 foram uma excelente plataforma para ela enxergar em perspectiva a vida inteira e o próprio trabalho."
Segundo Marder, algumas obras-primas foram escritas por ela nesses anos finais. "Menos conhecidas que os trabalhos correspondentes dos anos 20, elas têm grande poder de imaginação", escreve. "'As Ondas' é seu livro mais pessoal", continua. "Um romance experimental, mais próximo da poesia pura do que qualquer outro de seus trabalhos. Quanto mais você o relê, mais difícil e fascinante ele fica."
"Esse medonho assunto da narrativa realista,
avançar do almoço para o jantar,
é falso, irreal, meramente convencional",
escreveu no seu diário."
Publicado em 1931, "As Ondas" é o livro mais radical de Virginia: nele, seis personagens desfilam suas inquietações em discursos diretos, fluidos como o mar. Jorge Luis Borges foi um dos perplexos leitores do romance: "Não há argumento, não há conversa, não há ação", notou. O livro seguiu a divisa que a própria escritora deixou cravada no seu diário: "Quero eliminar todo o desperdício, todas as coisas mortas, o supérfluo: dar o momento inteiro, com tudo o que faz parte dele. Digamos que o momento é um misto de pensamento, de sensação, a voz do mar... Esse medonho assunto da narrativa realista, avançar do almoço para o jantar, é falso, irreal, meramente convencional. Por que admitir algo na literatura que não seja poesia - até a saturação, mesmo? É isso que quero fazer em 'As Mariposas'". Sim, "As Ondas" se chamavam "As Mariposas". Felizmente, Virginia trocou o título, "porque as mariposas só voam de noite".
A propósito, Borges preferia "Orlando", que forma - ao lado de "Mrs. Dalloway" e "Rumo ao Farol", todos escritos antes dos anos 30 - a trindade mais conhecida dos romances da escritora.
"As imagens de mar e rio são importantes em quase todos os livros de Virginia", afirma o professor Marder. "Eu acho que a água, com suas associações religiosas e místicas, significava a fonte da vida para ela, o retorno do eu às energias primitivas do ser. É o que o mar representa em 'As Ondas'." E não se pode esquecer do rio em que ela entrou para morrer, os bolsos cheios de pedras.
O romance emblemático foi o primeiro da obra de Virginia a capturar a atenção do escritor Antonio Bivar, um dos cem primeiros membros de The Virginia Woolf Society of Great Britain, um aristocrático círculo de leitores voltado para a discussão da obra da artista. Bivar, que se correspondeu com Quentin Bell, sobrinho e biógrafo de Virginia, apaixonou-se pela obra da escritora depois de ter encontrado o romance por acaso, enquanto ensaiava um show de Rita Lee nos anos 60. Nocauteado pelo estilo, passou a ler tudo o que fosse relacionado com Virginia, deslocando-se, mais tarde, para os lugares onde ainda havia rastros da escritora. Até chegar à casa - e à amizade - de Quentin Bell. Hoje, Bivar é parte da história de Virginia Woolf, pois os papéis de seu biógrafo e sobrinho foram doados à Universidade de Sussex, incluindo aí as cartas que recebeu do amigo brasileiro.
E o selo de permanência de Virginia Woolf nos dias de hoje? Em 2002, o filme "As Horas", de Stephen Daudry, baseado no romance homônimo de Michael Cunningham, trouxe de volta a figura e o mito da escritora, encarnada pela atriz Nicole Kidman. Se você conseguisse desviar a atenção da prótese que Nicole usava no nariz, talvez pudesse entrar na atmosfera desse filme de alma feminina, bem ao gosto dos leitores mais acomodados de Virginia.
AP
Virginia: em 2002, o filme "As Horas", de Stephen Daudry,
 baseado em romance de Michael Cunningham,
trouxe de volta o mito da escritora, vivida por Nicole Kidman
Sim, porque Virginia Woolf era de vanguarda e encarou o talento de um contemporâneo que investiu pelos mesmos caminhos escolhidos por ela em seus momentos de literatura mais radicalizada. Notável pelo uso original do chamado "fluxo de consciência", que marcaria a literatura de nosso século, Virginia teve a glória dividida com o irlandês James Joyce, que levou o recurso às últimas consequências - inclusive cômicas - no romance "Ulisses", publicado em 1922.
O manuscrito de "Ulisses" chegou a ser oferecido à editora que Virginia havia fundado com o marido, a Hogarth Press, mas a publicação não vingou. "Era uma obra que Virginia não podia rejeitar nem aceitar. O poder e a sutileza da obra eram evidentes o bastante para despertar a admiração dela e, sem dúvida, inveja. Parecia-lhe ter uma espécie de beleza, mas também um brilho rude, arguto, de sala de fumantes. Joyce usava instrumentos parecidos com os dela, e isso era doloroso", escreveu o biógrafo Quentin Bell. De alguma forma, o aspecto rude do original pode tê-la feito se sentir como uma "dama pudica".
Já o biógrafo de Joyce, Richard Ellmann, escreveu o seguinte: "Os Woolfs disseram-lhe (à emissária de Joyce) que não poderiam imprimir ("Ulisses") porque levaria dois anos na sua impressora manual, embora dissessem que estavam muito interessados nos quatro primeiros episódios que leram". O erro histórico de não ter publicado "Ulisses" foi compensado pela Hogarth Press ao lançar o mais célebre poema modernista do século XX: "A Terra Devastada", de T.S. Elliot.
"Como invejo Virginia: não admira que ela consiga escrever. Há sempre no que ela escreve uma liberdade, uma tranquilidade, como se estivesse em paz - um teto sobre a cabeça, suas coisas em volta, seu homem ao alcance da voz", escreveu sobre ela Katherine Mansfield, publicada também pela Hogarth Press.
"Apenas alguns dias antes de receber o seu e-mail, usei uma citação de 'As Ondas' num trabalho que estava escrevendo", disse Herbert Marder, o biógrafo de "The Measure of Life", numa das respostas enviadas ao entrevistador. "A obra dela influenciou profundamente meu jeito de pensar. Nestes tempos em que estamos envolvidos em novas guerras e conflitos de toda espécie, a insistência de Virginia na responsabilidade pessoal e na recusa a aceitar apelos chauvinistas ao patriotismo é tão relevante como sempre foi", observou. "No curso dessas respostas que dei a você, encontrei novas formas de pensar sobre Virginia Woolf."
O fascínio da grande escritora continua vivo, a despeito do rio em que ela mergulhou há 70 anos. Um fascínio que nasce na literatura, na profissão de fé e na disciplina que mantinham sua sanidade mental. Algo que ela deixou escrito num dos ensaios mais famosos, "Um Teto todo Seu": "Escrever uma obra de gênio é quase sempre um feito de prodigiosa dificuldade. Tudo se opõe à probabilidade de que ela aflore íntegra e completa à mente do escritor. Em geral, as circunstâncias materiais opõem-se a isso. Os cachorros latem; as pessoas interrompem; o dinheiro tem que ser ganho; a saúde entra em colapso".
Virginia completa: "Além disso, para acentuar todas essas dificuldades e torná-las mais difíceis de suportar, entra a notória indiferença do mundo. Ele não pede que as pessoas escrevam poemas e romances e contos; não precisa deles. Pouco lhe importa se Flaubert encontra a palavra certa ou Carlyle verifica escrupulosamente este ou aquele fato. Naturalmente, não irá pagar pelo que não quer. E assim, o escritor - Keats, Flaubert, Carlyle - sofre, especialmente nos anos criativos da juventude, toda sorte de perturbações e desestímulos. Uma imprecação, um grito de angústia eleva-se desses livros de análise e confissões. 'Poderosos poetas em sua miséria mortos', esse é o fardo de seu canto. Se algo sobrevive a despeito disso tudo, é um milagre, e provavelmente nenhum livro nasce íntegro e sem mutilações tal como foi concebido".
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Reportagem por: Cadão Volpato Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico/Eu & Fim de Semana -  online, 06/05/2011

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