domingo, 14 de agosto de 2011

Bolo é melhor que sexo?

Sob o lema cake is better than sex,
grupos de pessoas que se dizem assexuadas
se reúnem em fóruns na internet para discutir
 a polêmica opção. Alguns até namoram,
mas sem ter contato mais íntimo



 O desabafo aliviado de Pocky, como a japonesa se identifica, foi postado num fórum do site da Asexual Visibility and Education Network (algo como rede de educação e visibilidade assexual, em português), mais conhecida como AVEN. Pocky e os demais 30 mil participantes do fórum da AVEN se consideram assexuados ou têm parentes ou amigos que assim se identificam. Por isso, estão em busca de mais informações. Tópicos como o dela, em que as pessoas se apresentam e contam um pouco sobre sua experiência — ou falta dela — com o sexo são maioria no fórum. Somam mais de 10 mil, com cerca de 100 mil respostas de seus integrantes, quase todas dando as boas-vindas, dizendo que é bom ter a pessoa na comunidade e oferecendo um pedaço de bolo.
O bolo, ali, tem um significado que vai além de camadas açucaradas, recheio e calda de chocolate. Sob o slogan de “cake is better than sex” (ou, em português, bolo é melhor do que sexo), os assexuados têm se organizado na rede desde o início dos anos 2000, quando David Jay, na época com 19 anos, fundou a AVEN com o intuito de reunir informações sobre seus pares avessos a sexo e criar um ambiente, mesmo que virtual, em que todos pudessem falar abertamente sobre o assunto, identificarem-se uns com os outros e dividirem seus pedaços de bolo sem enfrentar olhares de reprovação da família ou de amigos. Antes disso, David, incomodado com a sua “adolescência tardia”, encontrava conforto nas discussões do que deve ter sido a primeira comunidade virtual de assexuados, a Heaven for Human Amoebas (o paraíso das amebas humanas), cujo nome vem justamente do tipo de reprodução das tais amebinhas.
Em tempos de pílulas que prometem libido infinita para homens e mulheres, um grupo que se une e levanta a bandeira da abstinência pode soar quase como uma piada. Mas, para eles, assexualismo nada tem a ver com comédia e, mais do que isso, não é uma questão de escolha, e sim uma orientação sexual, assim como gay, lésbica, bissexual. Baseados nisso e munidos de cartazes que dizem “LGBTA” e “it’s ok to be A” (algo como “tudo bem ser assexuado”), eles têm saído às ruas em passeatas e paradas gays gritando por atenção e pedindo reconhecimento por parte da comunidade gay. A ideia tem até boa aceitação, mas, como tudo o que é polêmico, não poderia passar ilesa pelos mais radicais, que argumentam que, se orientação sexual tem a ver com sexo, obviamente quem não está ligando muito para ele não pode se dizer exatamente orientado a nada.



O assunto só recentemente começou a chamar a atenção de acadêmicos. Aos poucos, estudos de psicólogos e sociólogos, em sua maioria, têm tentado entender qual é, afinal, a alavanca que desliga completamente em uma pessoa o desejo por sexo. Um dos nomes pioneiros no assunto é o psicólogo Anthony Bogaert, professor da Brock University, no Canadá, e especialista em sexualidade humana. Em 2004, Anthony publicou um estudo no qual definiu assexualidade como “uma falta de atração sexual por qualquer dos sexos, e não necessariamente falta de comportamento sexual”. Em outras palavras, não é porque uma pessoa não gosta de sexo, que não faça sexo. Mas ela pode fazer simplesmente para agradar o parceiro ou sozinha, na masturbação, como quem alivia uma necessidade fisiológica. Mais ou menos como fazer xixi, eles dizem.
Durante a pesquisa, Anthony entrevistou cerca de 18 mil participantes sobre seus hábitos sexuais, orientação, desejos e tudo o mais. Desses, 195 marcaram no questionário a opção que dizia que nunca nessa vida tinham sentido atração sexual por ninguém, o que deu aos chegados em estatísticas o primeiro número com algum embasamento científico sobre o assexualismo no mundo: uma em cada 100 pessoas vive bem sem sexo. Ou, pelo menos, sem sexo com um parceiro. “O corpo de um assexuado tem as mesmas respostas a estímulos que o de outras pessoas. Só que, quando essa resposta existe, ela é autodirecionada, e não está associada a nenhum parceiro”, tenta explicar a socióloga Elisabete Oliveira, doutoranda no assunto pela Universidade de São Paulo.
Além dessa primeira subdivisão entre quem curte masturbação e preliminares e quem não quer nem ouvir falar, assexuados têm outros tipos de classificações usadas nas apresentações que fazem de si mesmos nos fóruns: românticos e arromânticos, e homossexuais, heterossexuais ou bissexuais. Um assexuado romântico, por exemplo, está aberto a relacionamentos, desde que sexo não esteja no pacote. Beijar na boca, curtir um cinema, um vinho e deitar num gramado para admirar as estrelas, tudo bem. Já a segunda classificação serve para dizer com quem ele gostaria de compartilhar tudo isso. É quase simples. “Um assexuado pode ser também gay ou lésbica”, resume Elisabete. Portanto, para esse grupo, amor e sexo estão separados não por um fio, mas por um enorme muro de concreto. “Existe uma diferença clara entre atração romântica e sexual”, argumenta Anthony Bogaert, autor do tal estudo. “Você pode estar muito atraído por alguém no sentido romântico da coisa, sem sentir nenhuma atração sexual.”

Distúrbio ou opção

A discussão é ampla, as respostas são muitas e, por enquanto, parecem apontar para todas as direções ao mesmo tempo. Mas uma questão importante, segundo o psiquiatra Alexandre Saadeh, especialista em transtornos sexuais e membro do Projeto Sexualidade, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, é diferenciar a assexualidade natural da assexualidade como sintoma de um problema maior. Ou seja, saber quando ela é, na verdade, um sinal de que outras coisas não vão bem. “Muitas vezes, a assexualidade é um sintoma a mais dentro de um quadro psiquiátrico, como transtornos de personalidade, depressão ou esquizofrenia”, aponta. Nesses casos, tratando o problema principal, a vida sexual tende a voltar aos eixos.
Um caso típico de transtorno que vira e mexe é taxado de assexualidade é o Desejo Sexual Hipoativo, mais conhecido como DSH, que se caracteriza pela baixa ou ausência total de desejo erótico e que atinge principalmente mulheres. Para a psicologia, o comportamento sexual se divide basicamente em três fases: desejo, excitação e orgasmo. O DSH afeta a primeira fase e, por isso, acaba comprometendo todas as outras e pode ter origem hormonal, psicológica ou, por consequência, de uso de medicamentos. Isso, segundo o psicólogo Ralmer Rigoletto, poderia explicar, por exemplo, por que as estatísticas sobre assexualidade pendem mais para o lado das mulheres. “Na verdade, existem mais mulheres com DSH e que não sabem que sofrem da disfunção. A confusão é comum. Ainda assim, não se pode descartar as questões culturais, educacionais e religiosas que interferem no comportamento.”
Relativamente comum também, de acordo com os especialistas, é a falta de apetite sexual quando o sexo, para a pessoa, está ligado a algum medo específico. Pode vir de um trauma, como abuso sexual na infância ou estupro, ou de outros fatores, como uma gravidez indesejada ou o medo de contrair alguma doença sexualmente transmissível. Luciana, por exemplo, não esconde que esses receios pesam na sua sexualidade. O risco de a camisinha estourar e trazer de brinde uma criança faz a escritora arrepiar. “Minha vida já é bastante complicada sem sexo. Imagine então com ele. Acidentes acontecem.”
Japão já encara como problema

Seja lá qual for a origem, fato é que a falta de interesse sexual já tem causado dor de cabeça por aí. No Japão, terra de Pocky, a garota assexuada que foi apresentada no início da reportagem, o governo anda preocupado com a não renovação de sua população. Tudo porque, ao que parece, seus jovens resolveram ir na contramão do mundo e não andam lá muito interessados em sexo. Uma pesquisa divulgada no início deste ano pelo Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar japonês revelou que mais de um terço — 36%, precisamente — dos japoneses com menos de 20 anos se diz pouco interessado ou enojado pelas relações sexuais. O estudo foi feito com 3 mil jovens entre 16 e 19 anos que se descreveram como “indiferentes ao sexo”. Esses jovens casais com vida sexual pouco agitada são os chamados “herbívoros” por lá.
“A assexualidade parece ser vivenciada desde os primeiros anos de vida. Não é algo que possa mudar com o tempo”, argumenta o psicólogo Anthony Bogaert. Assim, em tese, nada de errado com a opção dos herbívoros da Terra do Sol Nascente em deixarem a vida sexual em segundo plano mesmo no período de sua vida em que a libido deveria estar saindo pelos poros — exceto pela questão populacional do país. No entanto, a quantidade de adolescentes e pré-adolescentes saindo do armário como assexuais nas redes sociais dedicadas ao tema tem deixado alguns especialistas um tanto reticentes. “Quando se fala de adolescência, toda afirmação categórica pode ser considerada precipitada, porque muito ainda vai acontecer em termos de experiência e descobertas”, salienta o psicólogo Ralmer Rigoletto, especialista em saúde sexual.
Além disso, esconder-se sob o assexualismo pode ser uma espécie de fuga de uma situação com a qual o jovem não sabe ainda como lidar. “Muitas vezes um rótulo pode servir como máscara para esconder dificuldades com o sexo, comuns nessa idade”, complementa Alexandre Saadeh, do Hospital das Clínicas. Como conseqüência, a maioria desses jovens não vai manter a etiqueta de assexual na testa até chegar à fase adulta, segundo acredita Rigoletto. “E é natural. Arrisco dizer que muitos deles nem vão precisar de ajuda profissional para isso”, conclui o especialista. Até lá, haja bolo.

A arte imita a vida

A assexualidade já foi abordada algumas vezes na ficção, ainda que de forma velada, em personagens que não demonstram lá muito interesse na coisa.





Assexualidade on-line
A internet é um grande e importante ponto de encontro de assexuados e curiosos do mundo inteiro em blogs e fóruns dedicados exclusivamente ao tema.

AVEN
O site da Asexual Visibility and Education Network tem espaço para tira-dúvidas de novatos e amigos ou parentes de assexuais, informações sobre pesquisas e um fórum, onde os recém-assumidos recebem as boas-vindas, participam de jogos, como o “melhor que sexo”, discutem a assexualidade e desabafam as dúvidas e dificuldades.

Refúgio Assexual
O site é quase uma versão brasileira da página da AVEN, com informações, dúvidas mais comuns aos assexuais e fórum com tópicos variados sobre o assunto.

Asexy Beast
Identificada como Ily, a autora é uma jovem moradora da Califórnia, nos Estados Unidos. No blog, Ily conta experiências, divulga fotos de encontros da AVEN e aborda temas não relacionados à sua assexualidade, como a escolha da carreira.

Assexualidades
O blog em português é assinado pela socióloga Elisabete Oliveira, doutoranda no tema pela Universidade de São Paulo. Discute a assexualidade de forma um pouco mais distante, a partir principalmente de pesquisas acadêmicas já publicadas.

Asexual Curiosities
Assinado por um garoto inglês de 20 anos, o blog funciona como uma espécie de diário com experiências pessoais e discussões sobre assexualidade.

Eu, assexuado
O que rola nas comunidades e fóruns na internet sobre assexualidade? Protegendo as identidades, coletamos algumas confissões e impressões deixadas no mundo virtual.
“Apenas não gosto de sexo. Não me imagino com um homem me penetrando! Não gosto das posições, do cheiro nem dos sentimentos que se têm quando se faz sexo.”
“Sexo para mim é um ato abaixo da condição humana, coisa animalesca, repugnante.”
“Sexo não me faz falta. Já namorei algumas vezes e tive relacionamentos longos, mas fazer sexo era uma coisa horrível. Não é nojo, nem nada. Mas, para mim, não quero.”
“Se eu pudesse tomar uma pílula e voltar a ser quem eu era, tomaria. Acho que me sentia muito mais vivo quando tinha libido. Não tenho problemas hormonais ou biológicos, então talvez a vida tenha apenas sugado toda a libido de mim.”
“Não entendo por que algumas mulheres enlouquecem se os maridos não transam com elas pelo menos uma vez por semana. Sempre quis envelhecer com alguém, só que não na cama.”
“Passei a maior parte da minha vida vendo, lendo e ouvindo sobre sexo, mas nunca tive muita vontade de experimentar. Não era um problema até a faculdade, quando comecei a namorar e percebi que sexo era algo esperado.”
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Fonte: Correio Braziliense on line, 14/08/2011

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