sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Um prato cheio... De cinzas

Eliana Cardoso*

No tribunal de Justiça de Nova York, Barbara Sheehan admitiu que matara o marido, delegado de polícia. Dentro de casa, com 11 tiros. Insistiu na falta de alternativa - era ele ou ela, e ela escolhera a própria vida.
De um lado, os filhos depuseram que o pai quebrara a cabeça da mãe, contra uma parede de cimento, durante as férias na praia. Na véspera do assassinato, despejara na mulher a panela com o molho fervendo para o macarrão do jantar.
De outro, a acusação caracterizou Barbara como mentirosa patológica, frustrada no casamento, assassina a sangue-frio, procurando escapar da Justiça com a alegação de repetidos abusos.
O júri, depois de se reconhecer confuso diante dos dois relatos diametralmente opostos, a declarou inocente do assassinato, mas culpada da posse da arma. No fim de novembro de 2011, ainda se aguardava a sentença do juiz.
Bem mais sutil é a história de "Thérèse Desqueyroux", que tentou matar o marido por envenenamento no romance de François Mauriac. A Cosac Naify - que, em 2002, reeeditou tanto a tradução magistral de Carlos Drummond de Andrade quanto seu prefácio para a edição de 1943 - manteve, no título, o nome francês da heroína, embora no texto os nomes dos personagens apareçam na sua versão brasileira.
Em 1925, Mauriac pediu ao irmão Pierre os documentos do processo de Blanche Canaby, absolvida pela corte de Bordeaux da tentativa de envenenamento do marido, mas condenada pela falsificação da receita médica com a qual comprara o veneno. Essa história serviria de base para o enredo de seu romance "Thérèse Desqueyroux". Os versos de Charles Baudelaire usados na epígrafe anunciam a postura do escritor católico frente ao crime de sua heroína:

"Senhor, tende piedade, piedade dos loucos e das loucas!
Ó criador! Poderão existir monstros perante aquele
Que é o único a saber por que eles existem, como foi que se formaram
E como teriam podido deixar de se formar...?"

A epígrafe também deixa adivinhar que Mauriac estava possuído por Teresa, posse expressa pelo narrador na primeira frase do livro: "Teresa, muita gente dirá que não existes. Mas eu sei que existes, eu que há anos te observo e muitas vezes te detenho de passagem e te desmascaro". Mauriac é Teresa, da mesma forma que Flaubert é Bovary na expressão famosa: "Madame Bovary, c'est moi".
Mas Teresa não é Bovary. Muito pelo contrário, Teresa é inteligente e fria, não se encanta pela leitura de romances nem tenta fugir da realidade. Embora se envolva com João Azevedo, por ele não experimenta desejo, mas profunda curiosidade e interesse, por ser ele o primeiro homem que ela conhece dedicado sobretudo à vida intelectual. Nele, ela percebe a inteligência e a avidez do animal jovem. João Azevedo é o duplo de Teresa. Quanto mais se aproxima de João, tanto mais ela se afasta do marido, Bernardo. Em João ela acaba por reconhecer a própria fome de verdade.
A história se passa em Landes, região do sudoeste da França, esparsamente povoada e coberta por florestas de pinheiros. Em longo monólogo interior, o narrador muda de perspectiva algumas vezes, revelando os pensamentos de diferentes personagens, mostrando o isolamento de cada um deles, mas se apropriando da realidade por meio da sensibilidade de Teresa.
Imagem da Internet
"Como o júri de Nova York que,
talvez por compaixão, absolveu Barbara Sheehan,
o leitor de Mauriac também se coloca
no lugar de Teresa e viaja para dentro do
seu corpo e
do seu coração."

O romance começa com o fim do julgamento da protagonista, que toma o trem de volta para casa, depois de ter sido absolvida da tentativa de envenenar o marido com overdoses da Solução de Fowler, medicamento contendo arsênico. Apesar da evidência contra ela, inclusive a falsificação da receita médica, a família se unira na defesa da acusada para evitar o escândalo, o próprio Bernardo servindo como testemunha de defesa, e a Justiça encerrara o caso.
Durante a viagem de retorno, no trem, Teresa medita sobre a própria vida e sobre o impulso que dela se apossara de continuar a envenenar o marido, depois de ter observado que ele tomara, por engano, uma overdose do remédio. Ela sugere que escorregara por um declive imperceptível, mas nem ela nem o narrador oferecem uma explicação explícita para o que se passou.
O caso encerrado, Teresa supõe que poderá separar-se do marido. Ao contrário, Bernardo lhe comunica que ela passará a viver na casa da família dele, isolada na floresta, confinada no quarto sob a alegação de doença de nervos, mas obrigada em algumas ocasiões a aparecer em público a seu lado, para evitar algum mexerico. O falatório poderia prejudicar o casamento de Ana, irmã de Bernardo.
Teresa, que tivera uma paixão por Ana nos tempos de colégio, conhece o amor dela por João Azevedo, de quem então se aproxima. Depois de muito sofrimento, Ana acaba por se submeter à vontade da família, renunciando a seu envolvimento com Azevedo e concordando com um casamento de conveniência.
Encarnação escarrada da vítima que sofre de solidão sexual, Teresa se sente asfixiada pela sociedade rural e católica de Landes. Considera a própria noite de núpcias degradante, finge prazer, mente ao marido que vê transformado em porco pelo gozo e sente inveja da paixão amorosa de Ana por João Azevedo, paixão amorosa da qual se sente incapaz.
Figura ambígua, o leitor poderia ver nela uma Electra calculista, endurecida pela frustração, por quem ainda assim se compadece. Os pensamentos de Teresa revelam uma delicadeza perceptiva que a afasta do marido, a torna estrangeira aos que a cercam e a empurra para o desconhecido. No fundo da longa descida para dentro de si mesma, Teresa enxerga com clareza apenas o abismo que a separa do marido insensível, embrutecido, obstinado.
Não sendo passional, o crime de Teresa parece ainda mais grave aos olhos de Bernardo. Perto do fim do romance, tendo deixado de acreditar que ela queria matá-lo para possuir sozinha as florestas de pinheiros unidas pelo casamento, ele quer saber por que Teresa o odiava. E ela diz a Bernardo: "Eu ia responder: 'Não sei por que fiz isso'; mas agora, talvez saiba, imagine você! É possível que tenha sido para ver nos seus olhos uma inquietação, uma curiosidade, uma perturbação, enfim: tudo o que, há um segundo, estou descobrindo neles".
Entendendo que o escândalo nunca ficaria de fato esquecido a menos que Teresa desaparecesse sem gerar controvérsias, Bernardo decide levá-la para Paris, onde aluga um apartamento e ali a deixa, tendo se tornado o único administrador dos bens do casal.
Bernardo "fez sinal a um táxi, e voltou-se para lembrar a Teresa que a despesa estava paga. [...] Ela almoçou (como tantas vezes nos seus sonhos) na rua Royale. [...] Teresa tinha bebido um pouco e fumado muito. Ria sozinha, como uma bem-aventurada. Retocou as faces e os lábios, minuciosamente; depois, ganhando a rua, caminhou ao acaso".
Mauriac mais tarde comentaria sobre sua personagem: "Sobre a calçada em que te abandono, tenho a esperança de que não estejas sozinha".
No prefácio, Carlos Drummond de Andrade diz que Mauriac é "romancista obcecado com o problema da culpa e do resgate". O ritmo da narrativa é aquele do mergulho instantâneo na superfície espessa da consciência. A galope, Mauriac nos conta a história de Teresa Desqueyroux, "fazendo luz não sobre objetos e fatos, mas sobre lembranças deles. Dir-se-ia que a história se desenvolve no escuro, apenas, de quando em quando, uma lanterna passeia nas trevas, e a essa claridade sem aviso as coisas se apresentam na sua humildade e ignóbil realidade. [...] E fechamos o livro com o angustioso problema de, por nossa vez, termos de julgar Teresa. Mas como julgá-la? Em nome de que princípios indiscutíveis, com que autoridade...?"
Como o júri de Nova York que, talvez por compaixão, absolveu Barbara Sheehan, o leitor de Mauriac também se coloca no lugar de Teresa e viaja para dentro do seu corpo e do seu coração.
Impossível não esquecer compromissos ou não deixar de lado a refeição e o sono até terminar a última página desse livro. Mas mesmo ali, mesmo na última linha, ainda persistem a emoção, a ambiguidade e o suspense.
----------------------------
* Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). www.elianacardoso.com
Fonte: Valor Econômico on line, 09/12/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário