Pré-publicação
Introdução
Carlos Nuno Vaz
Não tínhamos em português, até hoje, a
possibilidade de aceder ao texto da liturgia siríaca que trata da cena,
conhecida como a do bom ladrão, referida em São Lucas e que, em tal
versão, coloca como guardião do paraíso, não São Pedro, como acontece
no imaginário da figuração ocidental, mas o querubim, apoiando-se na
passagem do final do segundo relato da criação: «O Senhor Deus
expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora
tirado. Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim
do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho
da árvore da Vida»
O professor Joaquim Félix de Carvalho teve acesso ao texto “O ladrão e o querubim – Drama litúrgico cristão oriental em siríaco e neoaramaico” que Fabrizio A. Pennacchietti apresentou no original (siríaco e neo-aramaico) e verteu para italiano5. Aqui é apresentada, com apoio na tradução italiana, que se configura até ao momento presente como edição mais fornecida em versões, a tradução portuguesa de cada uma das quatro: da siríaca e das três neo-aramaicas. Assim, todos poderemos aceder a este importante texto da dramaturgia caldaica ou siro-oriental.
O professor Joaquim Félix de Carvalho teve acesso ao texto “O ladrão e o querubim – Drama litúrgico cristão oriental em siríaco e neoaramaico” que Fabrizio A. Pennacchietti apresentou no original (siríaco e neo-aramaico) e verteu para italiano5. Aqui é apresentada, com apoio na tradução italiana, que se configura até ao momento presente como edição mais fornecida em versões, a tradução portuguesa de cada uma das quatro: da siríaca e das três neo-aramaicas. Assim, todos poderemos aceder a este importante texto da dramaturgia caldaica ou siro-oriental.
Este diálogo de contraste e disputa entre o
querubim e o ladrão, que as Igrejas de tradição siro-oriental
conservamainda hoje e que é posto em cena no Domingo de Páscoa ou na
manhã de Segunda de Páscoa, também chamada «do anjo» ou, mais
exatamente, «do ladrão», é uma verdadeira celebração litúrgica, aliás
muito popular, representada na igreja por dois diáconos, de acordo com
um texto que remonta provavelmente ao século V. Tal texto é atribuível a
Narsai ou, talvez com maior propriedade, a Efrém, e é precedido do
canto de alguns salmos por parte do coro. (...
Esta forma litúrgica tem ainda hoje uma grande
popularidade. E, nalgumas igrejas siríacas do Iraque, é mesmo celebrada
diversas vezes durante o ano como sufrágio pelos defuntos. Os gregos
veneram o bom ladrão como santo, já desde a antiguidade, no dia 23 de
março. Os latinos, dando-lhe o nome de Dimas, celebram-no no dia 25 do
mesmo mês. (...)
Não é apenas na igreja siro-oriental que se
celebra o Bom Ladrão como figura do cristão e do ser humano, que
encontra na cruz de Cristo a sua salvação. Muitos textos litúrgicos da
semana santa das Igrejas orientais realçam o papel do Bom Ladrão como
ícone maior do poder salvador da cruz. A própria liturgia bizantina
insiste na relação entre o ladrão e a cruz: é a cruz que leva o ladrão à
fé, que o torna teólogo, e o conduz ao paraíso. (...)
Bom ladrão, a imagem da esperança
À míngua de ícones da esperança, quem esperaria que o bom ladrão se tornasse imago spei (imagem
da esperança)? Consciente disto mesmo, Bento XVI escreve: «Deste modo,
na história da devoção cristã, o bom ladrão tornou-se a imagem da
esperança, a consoladora certeza de que a misericórdia de Deus pode
alcançar-nos mesmo no último instante; mais: a certeza de que, depois
de uma vida transviada, a oração que implora a sua bondade não é vã. ‘O
bom ladrão acolhendo, grande esperança me dais’, reza, por exemplo,
também o Dies Irae».
Timothy Radcliffe, a propósito da famosa frase:
«Hoje estarás comigo no Paraíso», interpreta-a de uma maneira diferente
da habitual. Para ele, o ‘hoje’ de Jesus quer dizer que Deus tem um
sentido do tempo diferente do nosso. «Deus perdoa-nos ainda antes de nós
termos pecado, e Jesus promete levar aquele ladrão para o Paraíso
antes ainda da sua própria ressurreição». E isto pelo facto de Deus
viver no Hoje da eternidade. «A eternidade de Deus irrompe agora nas
nossas vidas. A eternidade não é aquilo que acontece no fim dos tempos,
depois de termos morrido.
De cada vez que nós amamos e perdoamos, pomos um pé na
eternidade, que é a vida de Deus».
Para o famoso autor dominicano, o «bom ladrão»
consegue o Paraíso sem pagar nada por ele. No fundo, é como todos nós:
«Apenas temos de aprender a aceitar presentes». Deus está continuamente a
oferecer-nos a felicidade. «Nós temos de aprender a manter os olhos e
as mãos abertos para podermos agarrá-la quando ela chega. Somos
continuamente bombardeados pela felicidade que Deus nos atira: oxalá
possamos ter a rapidez de visão suficiente para a localizar».
Qual é a felicidade que Deus nos oferece? A que é
descrita como «Paraíso», uma palavra originária da Pérsia e que
significa «jardim murado». Ora, toda a história do Evangelho é escrita
no sentido de nós compreendermos que somos convidados a encontrar a
nossa morada nessa felicidade. Deus compraz-se na nossa felicidade. Diz
a cada um de nós quão maravilhoso é que existamos. «Nós podemos estar
na presença de Deus com todas as nossas fraquezas e falhas, como o bom
ladrão, e, mesmo assim, Deus continua a comprazer-se na nossa própria
existência, prometendo-nos o Paraíso».
A felicidade significa «que nós partilhamos a
complacência que Deus põe na humanidade. Significa que também devemos
partilhar a dor de Deus frente ao sofrimento dos seus filhos e filhas.
Não se pode ter uma sem o outro. A dor escava os nossos corações para
haver um espaço onde a felicidade de Deus possa morar».
Contrariamente ao que poderíamos imaginar, o
oposto da felicidade não é a tristeza. «É ter um coração de pedra. É
recusarmo-nos a deixar que outras pessoas nos toquem. É envergar uma
armadura que protege o nosso coração, impedindo-o de se comover. Para
sermos felizes, temos de ser arrancados de nós mesmos, tornando-nos,
por isso, vulneráveis. A felicidade e a dor verdadeira conduzem ao
êxtase. Libertam-nos de nós mesmos, para nos comprazermos noutras
pessoas e sentirmos dor pela sua dor. O mau ladrão recusa-se a isso. O
bom ladrão atreve-se a fazê-lo, mesmo na cruz. E é por isso que pode
receber o dom do Paraíso».
Versão do texto síriaco
1
Na crucificação vi um prodígio
quando o ladrão invocou Nosso Senhor
«Recorda-te de mim, Senhor, no dia da Tua vinda
no reino que não passará!»
Na crucificação vi um prodígio
quando o ladrão invocou Nosso Senhor
«Recorda-te de mim, Senhor, no dia da Tua vinda
no reino que não passará!»
2
Fez uma súplica, a formulou e a dirigiu
ao Rei crucificado e pediu piedade
e, cheio de compaixão, Ele ouviu-a
e acolheu a sua oração.
Fez uma súplica, a formulou e a dirigiu
ao Rei crucificado e pediu piedade
e, cheio de compaixão, Ele ouviu-a
e acolheu a sua oração.
3
«Recorda-te de mim, Senhor – gritou enquanto era crucificado –
quando Te manifestares naquele reino
e na glória com que virás
verei a Tua misericórdia pois acreditei em Ti.»
«Recorda-te de mim, Senhor – gritou enquanto era crucificado –
quando Te manifestares naquele reino
e na glória com que virás
verei a Tua misericórdia pois acreditei em Ti.»
4
Disse o Senhor: «Porque acreditaste,
estarás hoje no jardim do Éden.
Tem fé, ó homem, pois não serás excluído
do reino para o qual tu olhas.»
Disse o Senhor: «Porque acreditaste,
estarás hoje no jardim do Éden.
Tem fé, ó homem, pois não serás excluído
do reino para o qual tu olhas.»
5
«Toma como sinal a cruz e parte!
(Eis) a chave excelsa com que se abre
a grande porta daquele jardim
a fim de entrar Adão que dele foi expulso.»
«Toma como sinal a cruz e parte!
(Eis) a chave excelsa com que se abre
a grande porta daquele jardim
a fim de entrar Adão que dele foi expulso.»
6
A palavra do Senhor, como um rescrito
que recebeu um selo da corte,
foi consignada ao ladrão. Este
tomou-a e ao Jardim do Éden se dirigiu.
A palavra do Senhor, como um rescrito
que recebeu um selo da corte,
foi consignada ao ladrão. Este
tomou-a e ao Jardim do Éden se dirigiu.
7
Ouviu o querubim e chegou correndo
e capturou o ladrão à porta,
bloqueou-o com a espada que empunhava
e, aturdido, assim (lhe) disse:
Ouviu o querubim e chegou correndo
e capturou o ladrão à porta,
bloqueou-o com a espada que empunhava
e, aturdido, assim (lhe) disse:
8
O querubim: «Diz-me, ó homem, quem te enviou,
que procuras e como vieste?
Que motivo aqui te trouxe?
Mostra e explica-me quem és?»
O querubim: «Diz-me, ó homem, quem te enviou,
que procuras e como vieste?
Que motivo aqui te trouxe?
Mostra e explica-me quem és?»
9
O ladrão: «Dir-te-ei o que me pedes.
Imobiliza a espada e escuta as minhas palavras.
Eu sou um ladrão, mas implorei piedade
e vir aqui me ordenou o teu Senhor.»
O ladrão: «Dir-te-ei o que me pedes.
Imobiliza a espada e escuta as minhas palavras.
Eu sou um ladrão, mas implorei piedade
e vir aqui me ordenou o teu Senhor.»
10
Q.: «Com que poder sucedeu a tua chegada
e quem te enviou a (este) lugar terrível?
Quem te fez atravessar o mar de fogo?
Quem te enviou para entrar no Éden?»
Q.: «Com que poder sucedeu a tua chegada
e quem te enviou a (este) lugar terrível?
Quem te fez atravessar o mar de fogo?
Quem te enviou para entrar no Éden?»
11
L.: «Com o poder do Filho pois foi Ele quem me mandou.
Atravessei, cheguei e não fui impedido
e graças a Ele todas as Potências submeti
e cheguei para entrar como me prometeu.»
L.: «Com o poder do Filho pois foi Ele quem me mandou.
Atravessei, cheguei e não fui impedido
e graças a Ele todas as Potências submeti
e cheguei para entrar como me prometeu.»
12
Q.: «Tu és um ladrão, como disseste,
mas o nosso lugar não pode ser depredado.
Está circundado pela lança que o guarda.
Volta, ó homem, (porque) erraste no caminho.»
Q.: «Tu és um ladrão, como disseste,
mas o nosso lugar não pode ser depredado.
Está circundado pela lança que o guarda.
Volta, ó homem, (porque) erraste no caminho.»
13
L.: «Fui um ladrão, mas mudei.
Não foi para depredar que aqui vim.
Eis que tenho comigo a chave do Éden
para abrir e entrar e não serei impedido.»
L.: «Fui um ladrão, mas mudei.
Não foi para depredar que aqui vim.
Eis que tenho comigo a chave do Éden
para abrir e entrar e não serei impedido.»
14
Q.: «Terrível é o nosso lugar e não pode ser violado,
de fogo é o seu muro e não pode ser abatido.
A espada flameja-o a toda a volta.
Até aqui como ousaste vir?»
Q.: «Terrível é o nosso lugar e não pode ser violado,
de fogo é o seu muro e não pode ser abatido.
A espada flameja-o a toda a volta.
Até aqui como ousaste vir?»
15
L.: «Terrível foi o teu lugar como disseste,
até que o teu Senhor sobre a cruz subiu.
Ele cravou a lança das dores
e a tua espada não pode mais matar.»
L.: «Terrível foi o teu lugar como disseste,
até que o teu Senhor sobre a cruz subiu.
Ele cravou a lança das dores
e a tua espada não pode mais matar.»
16
Q.: «Desde o dia em que Adão saiu
entrar aqui ninguém vi.
A tua estirpe foi expulsa do Jardim.
Tu não entras. Não contestes!»
Q.: «Desde o dia em que Adão saiu
entrar aqui ninguém vi.
A tua estirpe foi expulsa do Jardim.
Tu não entras. Não contestes!»
17
L.: «Desde o tempo em que Adão pecou
contra a nossa raça se irou o teu Senhor,
mas reconciliou-se e abriu a porta.
Que tu permaneças aqui é (agora) supérfluo.»
L.: «Desde o tempo em que Adão pecou
contra a nossa raça se irou o teu Senhor,
mas reconciliou-se e abriu a porta.
Que tu permaneças aqui é (agora) supérfluo.»
18
Q.: «Convém que saibas que não é admitido
que entre aqui um homem impuro:
tu és um assassino e um derramador de sangue.
Quem te trouxe ao lugar dos justos?»
Q.: «Convém que saibas que não é admitido
que entre aqui um homem impuro:
tu és um assassino e um derramador de sangue.
Quem te trouxe ao lugar dos justos?»
19
L.: «Convém que saibas que assim o quis
o purificador dos impuros que comigo foi crucificado.
Com o sangue do seu costado me lavou e purificou
e me mandou para o paraíso.» (...)
L.: «Convém que saibas que assim o quis
o purificador dos impuros que comigo foi crucificado.
Com o sangue do seu costado me lavou e purificou
e me mandou para o paraíso.» (...)
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
Texto em português de Portugal.
In O ladrão e o querubim, ed. Pedra Angular
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Fonte: http://www.snpcultura.org/23/03/2012
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