Antes de morrer, o filósofo
André Gorz transmitiu, via fax, um texto, com a data de 17-09-2008, para a revista ÉcoRev’ um longo artigo intitulada O trabalho na saída do capitalismo. A página eletrônica Rue89, publica um extrato do texto que traduzimos e publicamos a seguir.
Eis um extrato do texto.
A questão da saída do capitalismo nunca foi tão atual. Ela se põe em termos e com uma urgência de uma radical novidade. Por causa do próprio desenvolvimento, o capitalismo atingiu um limite tanto interno quanto externo que ele é incapaz de ultrapassar e que faz com que seja um sistema que sobrevive por meio de subterfúgios à crise das suas categorias fundamentais: o trabalho, o valor, o capital.
A crise do sistema se manifesta no nível macro-econômico como também no nível micro-econômico. Isso se explica principalmente pela mudança tecnocientífica que introduz uma ruptura no desenvolvimento do capitalismo e arruína, por seus repercussões a base do seu poder e sua capacidade de se reproduzir. Tentarei de analisar esta crise, em primeiro lugar, sob o aspecto macro-econômico e, depois, nos seus efeitos sobre o funcionamento e a gestão das empresas.
1.- A informação e a robotização permitiram introduzir quantidades crescentes de mercadorias com quantidades decrescentes de trabalho. O custo do trabalho por unidade de produto não cessa de diminuir e o preço dos produtos tende a baixar. Quanto mais a quantidade de trabalho para uma determinada produção diminui, mais o valor produzido por trabalhador – sua produtividade – deve aumentar para que a massa de lucro realizado não diminua. Tem-se, assim, este aparente paradoxo que quanto mais aumenta a produtividade, tanto mais é necessário que ela aumente para evitar que o volume do lucro não diminua. A corrida em busca da produtividade tende assim a acelerar, os efetivos empregados tendem a ser reduzidos, a pressão sobre o pessoal endurece, o nível e a massa dos salários diminui. O sistema evolui para um limite interno onde a produção e o investimento na produção param de ser muito rentáveis.
Os índices atestam que este limite foi atingido. A acumulação produtiva do capital produtivo não para de regredir. Nos EUA, as 500 empresas do índice Standard & Poor’s dispõem de 631 bilhões de reservas líquidas; a metade dos lucros das empresas americanas provém dos mercados financeiros. Na França, o investimento produtivo das empresas do CAC 40 não aumenta mesmo quando os lucros explodem.
A produção não sendo mais capaz de valorizar o conjunto dos capitais acumulados, uma parte crescente destes conserva a forma de capital financeiro. Uma indústria financeira se constitui que não pára de afinar a arte de fazer dinheiro não comprando nem vendendo nada além das diversas formas de dinheiro. O dinheiro mesmo é a única mercadoria que a indústria financeira produz por meio de operações, nos mercados financeiros, cada vez mais arriscadas e cada vez menos controláveis.
A massa de capital que a indústria financeira drena e gera ultrapassa de longe a massa de capital que valoriza a economia real (o total dos ativos financeiros representa 160 trilhões de dólares, ou seja, quatro vezes mais do que o PIB mundial). O “valor” deste capital é puramente fictício: ele repousa, em grande parte, sobre o endividamento e o “good will”, isto é, sobre as antecipações: a Bolsa capitaliza o crescimento futuro, os lucros futuros das empresas, a alta futura dos preços imobiliários, os ganhos que poderão ser gerados pelas reestruturações, pelas fusões, concentrações, etc. As Bolsas se enchem de capitais e de seus rendimentos futuros e as famílias são incitadas pelos bancos a comprar (entre outros) as ações e os certificados de investimento imobiliário, a acelerar, desta maneira, a alta da Bolsa, a emprestar dos bancos somas crescentes à medida que aumenta o capital fictício da Bolsa.
A capitalização da antecipações do lucro e do crescimento anima o endividamento crescente, alimenta a economia com liquidez devido à reciclagem bancária da mais-valia fictícia, e permite aos EUA um ‘crescimento econômico’ que, fundado sobre o endividamento interno e externo, é, de longe, o principal motor do crescimento mundial (inclusive do crescimento chinês). A economia real torna-se, assim, um apêndice das bolhas especulativas mantidas pela indústria financeira. Até o momento, inevitável, em que as bolhas estouram, levando os bancos à bancarrota em cadeia, ameaçando com o colapso o sistema mundial de crédito, a economia real de uma depressão severa e prolongada (a depressão japonesa dura já quase quinze anos).
Tem-se acusado a especulação, os paraísos fiscais, a opacidade e a falta de controle da indústria financeira (particularmente os hedge funds), a ameaça de depressão, ou seja, o derrocamento que pesa sobre a economia mundial não é devido à falta de controle; ele se deve à incapacidade do capitalismo se reproduzir. Ele não se perpetua e somente funciona sobre bases fictícias cada vez mais precárias. Pretender redistribuir por meio da imposição as mais-valias fictícias das bolhas precipitaria o que a indústria financeira quer evitar: a desvalorização da massa gigantesca dos ativos financeiros e a derrocada do sistema bancário.
A “reestruturação ecológica” irá agravar ainda mais a crise do sistema. É impossível evitar uma catástrofe climática sem romper radicalmente com os métodos e a lógica econômica que reinam há 150 anos. Se se prolonga a tendência atual, o PIB mundial será multiplicado por 3 ou 4 vezes, de hoje até o ano 2050. Ora, segundo o relatório do Conselho sobre o clima da ONU, as emissões de CO2 deverão diminuir em 85% até 2050 se se quer limitar o aquecimento climático em 2º C, no máximo. Além dos 2º, as conseqüências serão irreversíveis e não controláveis.
Portanto, o decrescimento é um imperativo de sobrevivência. Mas ele supõe uma outra economia, um outro estilo de vida, uma outra civilização, outras relações sociais. Na sua ausência, o derrocamento só será evitado impondo restrições, racionamentos, alocações autoritárias de recursos característicos de uma economia de guerra. A saída do capitalismo, portanto, se dará de uma ou outra maneira, de modo civilizado ou bárbaro. A questão é somente de que forma se dará esta saída e qual a cadência com que vai se dar.A forma bárbara nos já é familiar. Ela prevalece em várias regiões da África, dominadas por chefes de guerra, pela pilhagem das ruínas da modernidade, os massacres e tráficos de seres humanos, tendo como pano de fundo a fome. Os três Mad Max eram relatos antecipatórios.
Uma forma civilizada de saída do capitalismo, ao contrário, raramente é analisada. A evocação da catástrofe climática que ameaça conduz geralmente a propor uma necessária ‘mudança de mentalidade”, mas a natureza desta mudança, suas condições de possibilidade, os obstáculos a serem superados parecem sufocar a imaginação.
Propor uma outra economia, outras relações sociais, outros modos e meios de produção e modos de vida é visto como algo ‘irrealista’, como se a sociedade da mercadoria, do assalariamento e do dinheiro fosse impossível de ser superada. Na realidade, uma multidão de índices convergentes sugerem que esta superação já iniciou e que as chances de uma saída civilizada do capitalismo dependem antes de tudo da nossa capacidade em distinguir as tendências e as práticas que anunciam a possibilidade.
2.- O capitalismo deve a sua expansão e a sua dominação ao poder que ele tomou, em um século, sobre a produção e, ao mesmo tempo, sobre o consumo. Ao expropriar, primeiramente, os operários dos seus meios de produção e dos seus produtos, ele foi assegurando, progressivamente, o monopólio dos meios de produção e a possibilidade de subsumir o trabalho. Ao especializar, dividir e mecanizar o trabalho nas grandes fábricas, ele fez dos trabalhadores os apêndices das megamáquinas do capital. A apropriação dos meios de produção pelo produtores se tornou impossível. Eliminando o poder daqueles sobre a natureza e a destinação dos produtos, ele garantiu ao capital o quase-monopólio da oferta, portanto o poder de privilegiar em todos os domínios as produção e o consumo mais rentáveis, como também o poder de fomentar o gosto e os desejos dos consumidores, a maneira pela qual ele satisfariam as suas necessidades. É este poder que a revolução informacional começa a romper. (IHU/Unisinos- 06/02/2008)