segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Lídia Jorge: “A morte é apenas um instante. Escrevi sobre o fulgor da vida”

 Texto Ricardo Farinha


 Lídia Jorge tem 76 anos.

 

A escritora tem um novo livro, “Misericórdia”, baseado no último ano de vida da mãe — que faleceu em 2020, vítima de Covid-19.

Em abril de 2020, a mãe de Lídia Jorge, Maria dos Remédios, faleceu de Covid-19. Vivia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime. Antes, tinha-lhe deixado um pedido: que escrevesse um livro intitulado “Misericórdia”. A ideia, à partida, seria refletir sobre o fim da vida — para exaltar o facto de que os últimos momentos, ainda assim, não têm de ser despojados de entusiasmo, de sede de viver, de todas as outras coisas boas que marcam a vida. 

Foi um livro que acompanhou o natural processo de luto da autora, e que no final foi apresentado como uma história de ficção baseada em elementos íntimos e reais — inclusive vários apontamentos do diário de Maria dos Remédios, que a filha usou para dar corpo à obra. “Misericórdia” acompanha o último ano de vida de uma personagem.

Leia a entrevista da NiT com Lídia Jorge sobre “Misericórdia”.

Escreveu este livro, “Misericórdia”, a corresponder a um pedido da sua mãe. Sei que interrompeu inclusive a escrita de outro romance em que estava a trabalhar para dar início a este. Como descreveria esse processo?
Bem, foi um desafio muito grande, porque a minha mãe pediu-me muitas vezes que eu escrevesse um livro que se chamasse “Misericórdia”. Perguntava-lhe porquê, o que é que ela queria com isso. Ela nunca foi muito clara, mas a certa altura disse-me que era para eu poder escrever sobre a relação das pessoas quando o corpo já não corresponde àquilo que é o desejo íntimo da existência e que falasse nessas relações para que as pessoas tivessem mais compaixão umas pelas outras. Depois ela faleceu, com Covid, naqueles primeiros meses — foi a 19 de abril de 2020.

Logo no início da pandemia.
O último pedido que ela me fez foi a 8 de março. Nunca mais a voltei a ver. Isso ficou como um pedido que foi um imperativo absoluto. Mas ao princípio não sabia bem o que fazer com isso. Até que um amigo, o José Manuel Mendes, me enviou um livro do Roland Barthes cujo título é “Journal de Deuil” e percebi que tinha mesmo de escrever. Porque tinha uma espécie de vergonha de escrever alguma coisa tão próxima. Há um pouco de pudor nisso, naturalmente. Mas, como ele falava tão abertamente daquilo que sentia, deu-me esse impulso que de facto eu estava literariamente legitimada para o fazer. Só que, na construção do livro, tomei um caminho oposto. Enquanto que o Barthes, que era sobretudo um ensaísta, filósofo da linguagem e da literatura, fala direta e abertamente num “eu” que sofre com a partida da mãe, eu percebi que não poderia fazer isso. O que tinha de fazer era o contrário. Não falar de um “eu”, mas de um “tu”. Dei-lhe a voz inteira e procurei reconstituir o último ano de vida dela através do pensamento, que correspondia, no fundo, àquilo que ela me ia dizendo ao longo desse tempo.

Esse desejo que foi expresso no tal 8 de março, essa visão e perspetiva era algo em que a própria Lídia já pensava muito? Ou acabou por refletir muito mais sobre isso depois?
Sinceramente, refleti mais depois. Porque o título “Misericórdia” parecia-me dramático. Só que, perante o pedido dela, a palavra “misericórdia” começou a ganhar um sentido muito maior. Até porque, como a minha mãe nunca foi uma pessoa melancólica nem de lamento ou de saudades — tinha mas superava, foi uma pessoa de grande entusiasmo, viveu até aos últimos momentos de vida, que assisti apenas por telefone, com um entusiasmo pela vida. As últimas palavras que me disse foi “deixa-me que vou trabalhar”. Isto quando ela já não se movia, quando ia morrer, não é? Foi algo tão forte, ensinou-me e disse-me tanto, que eu não só fiquei tocada como achei que valia a pena partilhar. Isto são sentimentos que a pessoa sente pudor em partilhar, naturalmente. Mas acho que vale a pena quando há assim um sentido de vida tão intenso que nos ajuda, que nos anima na existência e a dar-lhe um sentido. Acabei por tomar alento e escrever este livro que começou lento mas a certa altura não conseguia parar. Foi escrito como se houvesse duas correntes: uma que era a sensação cada vez mais intensa de que ela tinha partido mesmo; e a outra era que com a voz ia ao encontro do âmago dela, do recado que ela me tinha deixado e que eu acho que não era só para mim. Foi um recado tão forte, a luta que ela fez pela aprendizagem, pela sabedoria, pelo conhecer o mundo. Pela esperança que tinha nas relações humanas, na melhoria da vida. Isso pareceu-me tão forte que achei que valia a pena partilhar e à medida que ia escrevendo cada vez mais sentia entusiasmo por isso. À medida que a história que é contada se aproxima do fim, e que é já num clima absoluto de pandemia, mais valorizo o sentido de esperança e de tentativa de narrativa que sempre houve dela para ultrapassar a existência. Porque isso foi algo que ela me passou, no fundo, e na qual me sinto sua irmã. O facto de ter apontamentos sobre a vida ajuda a sobreviver.

Já vi a Lídia descrever este livro como inevitavelmente duro, mas também positivo, esperançoso.
Sim, esperançoso, na medida em que encontrava as palavras que eram o eco daquela mensagem, achei que não era difícil. E por isso é que há pouco tempo, quando me perguntaram “mas porque escreveu sobre uma coisa tão triste?”, eu disse: “Não, eu não escrevi sobre a morte, escrevi sobre o fulgor da vida diante da qual a morte é apenas um dia”. A morte é um instante. É um pouco deslocado utilizar a palavra “alegria”, mas posso dizer outra palavra que quem escreve e os grandes leitores entendem: escrevi como uma espécie de “triunfo” sobre a morte, sobre o esquecimento, sobre aquilo que é o pó da vida.

O livro acaba por abordar a forma como as pessoas, quando naturalmente se aproximam do fim da vida, são muitas vezes percecionadas. Sente que é algo que precisa de mudar na nossa sociedade, a forma como as pessoas mais velhas são vistas quando estão num lar, por exemplo? O livro também acaba por abordar isso.
Sim, acaba. Não é o aspeto principal, porque não quis escrever nada sociológico, mas naturalmente passa-se lá e dá eco das situações comuns que se passam nos lares. Nós somos sempre frágeis, mas há dois períodos da vida em que somos particularmente: quando somos crianças e quando somos velhos. Em relação às crianças, hoje-se tem uma perceção do que é que precisam. Há um carinho e um cuidado que às vezes até é excessivo, mas existe essa noção da fragilidade da criança. Com as pessoas idosas, há uma ideia de que se tem de remediar, de que se tem de amparar, mas penso que ainda não há saberes suficientes sobre o assunto. A instituição lares é uma herança da sociedade industrial do século XX. E tenho ideia que, hoje com aquilo que sabemos sobre as pessoas mais velhas, acho que há que mudar coisas. Há que não juntar tanta gente, por exemplo. Há que perceber que se muitos dos cuidadores são pessoas que naturalmente têm sensibilidade e fazem prodígios, que são de uma atenção extraordinária por impulso, por temperamento, há outros — e são muitos — aqueles que precisam de ser conduzidos. E todas as pessoas precisam de ser remuneradas e ter atenção de outra forma. Nada melhorará enquanto essas pessoas não forem tratadas como especialistas. Porque temos de perceber que as pessoas vão para um lar porque em casa não temos condições. E compreender que nada pode ser ideal, que não há um mundo perfeito, que não se pode exigir tudo. São sítios onde há permanentemente surpresas, desencontros, situações dolorosas. Uma exigência demasiada e o propalar da ideia de que são sítios de tortura, como muitas vezes acontece… As notícias são só sobre lares como se fossem sítios de tortura, é de uma grande injustiça para toda a gente. Para a sociedade inclusive, que fica com uma ideia deturpada do que é um lar. Até há pessoas que evitam passar na porta, com medo, pensando que lá acontece uma espécie de tortura. Ora, não é nada disso que acontece, não é? É preciso entrar e ver com outros olhos. E sobretudo perceber que as pessoas que lá estão são pessoas cheias de vida. A maior parte delas mantém intactos os sonhos, a vontade de ser útil, de participar, ajudar. Fazem relações de amizade, criam clubes entre si, ajudam-se. É outro mundo, mas é apenas o prolongamento das pessoas ativas. É uma extensão natural da nossa existência quotidiana.

O livro tem mais de 460 páginas.

Este livro é baseado na sua mãe, nas suas vivências, nos seus pensamentos. Mas também tem uma parte ficcionada. Essa verdade não está exposta como se fosse documental, digamos assim.
Quando li o “Journal du Deil”, percebi que tinha de fazer ficção. Gosto de colocar as figuras em ação, de criar um palco e fazer uma espécie de teatro, separar-me da realidade. Não gosto de fazer o trânsito imediato da realidade para um livro. Preciso, entre a realidade e a página, de criar uma fábula. Por isso, este livro tem um subsolo de realidade, mas é uma ficção criada a partir de elementos muito próximos e muito reais.

Foi especialmente desafiante escrever e inventar essa fábula tendo em conta o tal subsolo real que existia neste livro?
Foi fácil, porque a minha mãe me deixou todos os elementos. Não os esgotei, acredite. Desde que a conheço que fez um diário. No final, já só escrevia pequenas palavras. E são essas pequenas palavras, que alterei, transfigurei, modifiquei porque não são bem assim. Pequenas frases como se fossem pequenos poemas. São apontamentos do dia que me deram a ideia que era a partir daí que podia reconstituir aquilo que era a sua fala. Então foi simples. Demorei dois anos a escrevê-lo, mas com longos intervalos. E nesses intervalos estava sempre a desejar voltar para casa, para o poder retomar, porque sentia que era uma história que tinha de escrever — escrevi com um impulso muito forte. Não vale a pena estar a dizer quais são os que recolhi da realidade e quais são aqueles que evitei, porque isso é absolutamente inútil para um leitor. O leitor deve imaginar que é tudo ficção, isso é que é importante.

Suponho que seja um livro bastante especial por partir de uma base tão íntima e próxima para si.
É um livro que não tem antecedente, e provavelmente não terá consequente. É um livro único, não espero voltar a ter uma experiência semelhante. Como disse, é um livro para um “tu” muito próximo, mas com um diálogo intenso e é um livro em que procuro levantar da terra uma figura e erguê-la. Criar uma espécie de estátua para ficar. Para mim é muito especial, de facto.

Sente que também foi uma forma de processar o luto?
Sim. À medida que ia escrevendo, tinha a ideia de que ia reencontrando a normalidade. A normalidade da casa, do jardim, da vida. Inclusive a normalidade do diálogo com o mundo. Porque naquela altura houve um momento em que tudo ficou entre parênteses. A minha mãe era uma pessoa muito envolvida com o mundo, com a política, ela tinha opinião sobre tudo. Gostava de falar sobre os políticos do partido de que ela gostava e também dos da oposição. A pouco e pouco, o luto foi isso: voltar a vê-la com alegria, como se ela voltasse a estar inteira, a estar viva entre nós. Porque o luto não é desembaraçarmo-nos de alguém e pô-lo dentro de uma gaveta e dizer “este já cá não está”. O luto é passarmos a conviver com a lembrança e com a atitude viva de alguém que nos amou profundamente e que amou os nossos descendentes. E que está aqui. Ao menos enquanto pensamos nisso, ela existe. É um elo humano formidável.

Estava a descrever há pouco os longos intervalos durante a escrita deste livro. A rotina criativa que a Lídia tem depende muito de cada livro? Obviamente também dependerá da fase da sua vida.
Depende mais do meu temperamento [risos]. Porque há escritores — e admiro-os e louvo-os e gostaria de ser um deles — que são capazes de ficar em casa, de se fecharem durante um ano, de dizerem “aqui ninguém me bate à porta”. E eu não sou uma pessoa assim. Tenho muita pena de não ser, mas não sou. Se me batem à porta, abro a porta. E quem é assim está sujeito à ventania [risos]. Dependo muito daquilo que está a acontecer. Do que está a acontecer no mundo, socialmente, com os amigos e a família. Não consigo programar: durante um ano, vou acabar um livro. Vou viajar e vou fechar-me. Não. É um problema e um defeito do meu temperamento. Poderia ter escrito o dobro e possivelmente melhor se tivesse um temperamento de mais cautela e vigilância sobre aquilo que é e deve ser uma espécie de missão que os escritores têm, que é dizer aquilo que lhes parece do mundo enquanto vivem. Deixar esse registo, esse testemunho, e isso é algo que deve merecer o sacrifício de outras coisas. Quem não o faz, peca. Portanto, eu pecadora me confesso [risos]. De facto não o tenho feito, não me dediquei a tempo inteiro como deveria.

Mas também perderia, obviamente, outras coisas importantes. É inevitável.
Sim, é inevitável. Admiro muito as pessoas que imaginam que temos muitas vidas [risos], acho que elas são felizes. Gostaria muito de ter muitas vidas. Penso que todos nós… De vivermos em simultâneo muitas situações, não é? Porque a nossa vida é cheia, é intensa. Queremos descobrir tanta coisa, percebemos que somos finitos, que passamos rapidamente, então vimos a este mundo e ele está escancarado à nossa espera. Somos só um: um sujeito tão limitado para aquilo que é o desejo ilimitado de conhecimento e de vivência. Mas é assim.

Já voltou ao livro que entretanto tinha deixado em suspenso? Ou ainda não?
Ainda não, nem sei se é um livro para retomar. Já ia bastante adiantada na conceção e com várias páginas escritas, mas de facto o mundo entretanto mudou muito. De há dois anos para cá, há revelações extraordinárias. Quer do ponto de vista da natureza que nos atacou, quer do ponto de vista das relações entre os países e as pessoas. Imaginava que, depois da pandemia, ficávamos todos mais juntos. Escrevi 13 textos durante a pandemia, todos esperançosos, com a ideia de que o mundo iria ser melhor. De que tínhamos percebido finalmente que éramos uma só geração à face da terra. Que tínhamos padecido todos ao mesmo tempo das mesmas dores. E que isso nos tinha tornado fraternos. Agora leio esses textos e até sinto vontade de chorar, porque foi ao contrário. Acabou a pandemia e estamos envolvidos num tumulto internacional, à beira de podermos ir para uma Terceira Guerra Mundial da qual não restará pedra sobre pedra. Ou as pedras restarão, mas não restarão pessoas ao lado das outras para continuarem a vida. Isto traz-me um tumulto tão grande que é um momento muito delicado. Acho que para toda a gente. Mas para quem teve a esperança, para quem confiou que iria ser melhor, isto é uma derrota. Cada dia que passa é uma derrota. Tenho esperança que haja qualquer coisa boa que surja.

Fonte: https://www.nit.pt/cultura/livros/lidia-jorge-a-morte-e-apenas-um-instante-escrevi-sobre-o-fulgor-da-vida?fbclid=IwAR0UC_UXJ796xvbz9iLDJzJJfB7LSfuPD9VMAAUN-CIOOrG-upmcqbgyq5w

 fotografia Inês Gomes Lourenço

Um olhar interseccional para o futuro

 Por Eunice A. Jesus Prudente*

Foto da Internet
 Publicado: 27/10/2022

Crianças, adolescentes e jovens são o nosso futuro, principalmente quando visitamos lições dos mestres brasileiros pelos direitos humanos. Em especial as preleções do professor Dalmo de Abreu Dallari, que nos introduziu na teoria crítica de direitos humanos com as necessárias propostas de mudanças a partir do combate a todas as formas de opressão. E, para tanto, as pesquisas hão de ser interdisciplinares, visitando a história, os dados econômicos, as culturas dos povos do nomadismo às fixações territoriais com animus de permanência em meio a guerras e apropriações materiais e imateriais forjando as civilizações, assim nos informam a antropologia e a sociologia. Na atualidade, os estudos dos direitos humanos exigem informações fundamentadas na psicologia, nas ciências médicas que nos esclarecem a natureza deste ser humano. Também imprescindíveis esclarecimentos advindos das ciências físicas, elucidando a formação do redondo planeta Terra e as questões ambientais, como desmatamentos e impactos sobre a organização política da convivência. Somente informados a Teoria dos Direitos Humanos será crítica e propiciará o enfrentamento de todas as formas de opressão, desconstruindo paredes patriarcais, racistas, homofóbicas, além das históricas patrimonialistas, construídas durante séculos.

Neste momento importante desta pesquisa, bom atentarmos também para as contribuições do professor Fábio Konder Comparato, quando se refere sobre a preeminência da política nos estudos e análises da convivência humana. A política como ciência e arte que possibilitou os entendimentos da organização de vida na pólis, para nós em sociedade, nos permite visualizar individualidades em sociedade para conclusões críticas dos sistemas socioeconômicos adotados e propostas de inclusão social.

A exclusão social na República Federativa do Brasil alcança crianças, adolescentes e jovens. O futuro deste Estado está comprometido. Um dos principais objetivos de uma sociedade política, chamada de Estado, consiste na previsão de melhor futuro para os grupos humanos que a compõem. Destacando-se como principal providência as previsões futuras para o povo, enquanto conjuntos dos cidadãos. Nisso se incluem a proteção e formação das crianças, adolescentes e jovens. É a educação formadora de seres humanos solidários, como nos ensina Paulo Freire com as teses da educação libertadora que fortalece laços humanos. Laços sociais além da família como núcleo social básico, alcançando diversas formas associativas e, sob este ponto de vista, somos espetacularmente criativos, até chegarmos à instituição pública de fins gerais, políticos, o Estado.

Ocasião de visitarmos os pensamentos de Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. A educação freiriana também é proposta para uma teoria crítica de direitos humanos uma vez que a pessoa humana deve aprender a olhar além dos objetivos (tão) próximos familiares, ver portanto além de seus primeiros interesses culturais religiosos e outros, conseguir também antever e vivenciar outros valores e propostas, enfim, se dedicar aos objetivos políticos que propiciarão convivência solidária entre muitos indivíduos que sequer se conhecem, mas que integram a mesma república, a mesma sociedade política com longa formação histórica. Assim a participação política é também o principal direito humano que possibilita a ingerência de todos na governabilidade do Estado.

A educação libertadora de Paulo Freire possibilita a percepção das diferenças buscando uma convivência pacífica e construtiva, uma vez que as pessoas não são idênticas. Uma personalidade nos identifica e diferencia, as pessoas são iguais para o direito, seja no exercício de direitos ou obrigações, mas há diferenças biológicas, de gênero, étnicas, culturais que exigem respeitabilidade e credibilidade de todos, uma vez que são expressões de personalidade e deduz-se apenas diferenças, e como são interessantes e diversas! Nunca estabelecem sentido de superioridade de uns em relação a outros.

Já as desigualdades, como preleciona Fábio Konder Comparato, são criações racionais, arbitrárias e injustas pois estabelecem relações de exploração e dominação entre pessoas. São históricas e cabe aos cidadãos, às instituições, sobretudo as públicas, providenciar sua extinção.

Esta educação libertadora construirá a sociedade livre e solidária como almejam os brasileiros nas disposições do artigo 3º da Constituição Federal.

A conquista da Constituição Federal de 1988 é um marco na nossa história porque contou com a participação da sociedade política organizada nos momentos constituintes. Os movimentos sociais unidos na luta contra a ditadura participaram da constituinte exigindo que fossem os direitos humanos considerados fundamentais, ou seja, indisponíveis portanto sem a fruição dos direitos humanos individuais, sociais e coletivos, o brasileiro permanecerá prejudicado na sua dignidade.

A Constituição Federal de 1988 dispõe entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, alicerces que sustentam a República Federativa do Brasil, a cidadania, a dignidade da pessoa, além do pluralismo político. Reconhece as crianças, adolescentes e jovens sujeitos de direito e nunca meros objetos de disposições dos adultos. Crianças e adolescentes têm a personalidade em formação e os jovens têm reconhecidas sua autonomia, emancipação além da participação social e política.

O princípio da proteção integral à criança, ao adolescente e ao jovem tem fundamentos no artigo 227 da Constituição Federal:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Caberá ao Estado, à família e a toda a sociedade propiciar os direitos humanos fundamentais para garantir essa proteção integral com prioridade absoluta. Conforme preleciona a especialista em direitos da criança e adolescente, Denise Auad, o princípio da proteção integral, construído a partir do reconhecimento jurídico do universo infantojuvenil, encontra fundamento nos valores presentes na Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança, afastando ideários antigos preconceituosos do menorismo, do tutelarismo que resultaram em assistencialismos desrespeitadores para uma “nova visão da cidadania e oportunidades facilitadoras do desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”, como diz Denise Auad.

O reconhecimento da condição de pessoa em desenvolvimento significa formação física e da personalidade. Quanto ao jovem deve-se propiciar formação intelectual e profissional de qualidade para a assunção de todas as responsabilidades sociais, vida adulta plena.

A Constituição Federal de 1988 inclusiva expressando necessidades sociais propiciou legislações que obtiveram reconhecimento jurídico de excelência em nível internacional. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8069, de 1990) aplicando-se às crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal, de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou as comunidades em que vivem.

Também reconhece especificidades determinantes à dignidade e ao bem-estar de crianças e adolescentes como a prioridade nas adoções para grupos de irmãos (Arts. 28, §4º e 50, § 15) e em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade quilombola será obrigatório o respeito à identidade social e cultural, os seus costumes e tradições na ocorrência de colocação familiar (guarda, tutela ou adoção) se dará prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia (Art. 28, § 6º).

E quanto ao jovem, o Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852, de 2013) dispõe sobre direitos e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude garantindo-se aos jovens brasileiros o direito à cidadania, a participação social e política e representação juvenil. Entende-se por participação juvenil a inclusão do jovem nos espaços públicos e comunitários a partir da sua concepção como pessoa ativa, livre, responsável e digna de ocupar uma posição central nos processos políticos e sociais. Determina ainda que a interlocução da juventude com o poder público pode realizar-se por intermédio de associações, redes, movimentos e organizações juvenis.

Entre os direitos garantidos aos jovens destaca-se o direito à educação de qualidade com as seguintes disposições:

Art. 8º O jovem tem direito à educação superior, em instituições públicas ou privadas, com variados graus de abrangência do saber ou especialização do conhecimento, observadas as regras de acesso de cada instituição.

§1º É assegurado aos jovens negros, indígenas e alunos oriundos da escola pública o acesso ao ensino superior nas instituições públicas por meio de políticas afirmativas, nos termos da lei.
§2º O poder público promoverá programas de expansão da oferta de educação nas instituições públicas, de financiamento estudantil e de bolsas de estudos nas instituições privadas, em especial para jovens com deficiência, negros, indígenas e alunos oriundos da escola pública.

Conforme hierarquia normativa, em primeiro lugar decisões políticas da Constituição Federal; depois o Estatuto da Juventude, como legislação nacional, integrando a União, os Estados, Municípios e Distrito Federal na proteção integral ao jovem, instituindo o Sistema Nacional de Juventude – Sinajuve, garantido políticas de ação afirmativa para inclusão de jovens negros, indígenas e alunos oriundos de escolas públicas nos cursos universitários públicos e em terceiro plano as leis federais, estaduais temporárias dispondo sobre cotas nos vestibulares para instituições públicas, formas importantes de política afirmativa. Assim sendo o que o Congresso Nacional está realizando na atualidade é um exame de leis federais e estaduais temporárias dispondo sobre políticas de ações afirmativas mediante cotas

Conclui-se que o direito dos jovens brasileiros à inclusão prossegue, sendo óbvio as mencionadas leis federais e estaduais temporárias poderão ser prorrogadas ou deverão ser substituídas por outras. Não há retrocesso na conquista de direitos humanos, pois são intrínsecos ao direito de ser pessoa humana, por isso fundamentais. Enquanto houver um jovem brasileiro excluído, deverão ser instituídas políticas de ação afirmativa, propiciando equidade no acesso a direitos.

Outra conquista relevante para nossos direitos na luta pela igualdade substancial foi a criminalização da discriminação racial (Art. 5º, XLII) e o advento de legislação punitivista (Lei nª 7716, de 1989, Lei nº 9.459, de 1997) e não por acaso. Sob o ponto de vista técnico jurídico, o Direito Penal protege os principais valores e bens de sociedades politicamente organizadas. E as discriminações ofendem pessoas a partir do direito de ser pessoa humana com direito ao bem-estar constitucionalmente garantido. A primeira manifestação que encontramos pela criminalização da discriminação racial foi nos feitos do Teatro Experimental do Negro, criado e dirigido por Abdias do Nascimento. Artistas negros, atores e atrizes denunciaram discriminações sofridas por volta de 1950 durante o evento Convenção Nacional do Negro. Neste momento histórico do movimento negro, a arte educou, levando o povo brasileiro a pensar seus valores e defendê-los.

Como se conclui, o direito é para pessoas e suas manifestações e não apenas para juristas encerrados em gabinetes e ou tribunais!

A Constituição Federal garante a individualização das penas aplicadas (Art. 5º, XLVI): privação ou restrição da liberdade; perda de bens; multa; prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos. Não há vingança ou castigos no Estado Democrático de Direito e ressocialização mediante formas de educação. Todavia são visíveis as dificuldades para a reeducação de racistas neste Brasil grande a partir de falhas grotescas na história oficial do Brasil e práticas de políticas de embranquecimento buscando apagar o protagonismo negro.

Cabe ainda informar que as penas privativas de liberdade são cumpridas em estabelecimentos penitenciários e o STF considerou a situação prisional no Brasil “um estado de coisas inconstitucional” com ocorrência de “violação massiva de direitos fundamentais” (ADPF nº 347, 2015). A política de encarceramento em massa adotada pelo governo brasileiro somente vem alcançando injustamente jovens negros e pobres de comunidades periféricas, formadas nas cidades brasileiras.

A inclusão social que buscamos ocorrerá mediante políticas públicas com ações afirmativas. Neste estudo reconhecemos também a importância do Estatuto da Igualdade Racial (LEI Nº 12.288, de 2010) alcançado pelo movimento negro integrado por respeitáveis lideranças intelectuais ativistas. O Estatuto da Igualdade Racial garante a efetivação de igualdade de oportunidades a defesas dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos previstos na Constituição Federal. Além do combate à discriminação e à demais formas de intolerância étnica. Note-se que se trata também de lei nacional, integrando em torno dos direitos garantidos aos negros, a União como governo federal, os Estados, municípios e o Distrito Federal, assim todas as entidades federais brasileiras.

Ocorre que diferentemente das imposições determinadas nas leis nacionais comentadas (Lei n° 8069, de 1990 e Lei n° 12.852, de 2013) para Estados e municípios vinculando-os às suas disposições, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.88,de 2010) não submete obrigatoriamente os Estados, municípios ou Distrito Federal ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial – Sinapir, garantidor dos direitos fundamentais à população negra, ou seja, conjunto de pessoas que se autodeclararam pretas e pardas, conforme quesito cor ou raça usado pelo IBGE. Mas assim é disposto o Sinapir:

Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal.

§1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão participar do Sinapir mediante adesão.
§2º O poder público federal incentivará a sociedade e a iniciativa privada a participar do Sinapir.

A integração de Estado como o brasileiro com dimensões continentais e pleno em diversidade étnica e ambiental não é tarefa fácil, sobretudo se reconhecendo a autonomia das entidades federadas. Por isso entendemos que também este sistema nacional Sinapir deveria submeter municípios e Estados a suas normas, inclusive pelo seu histórico. Observe-se que estudiosos e ativistas do movimento negro não conseguiram que fosse incluído na Constituição Federal de 1988, título ou capítulo sobre o protagonismo negro. Conquistou-se finalmente a criminalização (Art. 5º, XLII) das práticas de racismo tipificadas como crime (Lei nº 7716, de 1989). Mas a intelectual dra. Edna Rolland, em suas conferências esclarece como se lutou para que o texto da Constituição Federal contivesse tais explicitações. A conquista do Estatuto da Igualdade Racial adveio somente em 2010 após a exitosa Conferência de Durban, evento da ONU realizado na África do Sul, quando a ONU declarou 2001 o Ano Internacional de Mobilização contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Com participação de 173 países, muitos da América Latina, com destaque para o Brasil com representantes oficiais e intelectuais estudiosos dos temas da inclusão do negro, acabou firmando compromissos para legislação inclusiva e a dra. Edna Rolland foi a secretária deste evento internacional.

O Estatuto da Igualdade Racial ilumina nossa complexa situação social com visão interseccional quando conceitua discriminação racial ou étnico-racial reconhecendo a ocorrência no Brasil de “desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais” (Art. 1º, Parágrafo Único, III). Além de propor como direito as ações afirmativas mediante programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e a promoção da igualdade de oportunidades.

Os brasileiros integram sociedade pluriétnica com cultura fundada em saberes e valores de todos os povos do mundo. Todavia a realidade vivenciada é muito grave posto que formas violentas discriminatórias estão presentes na nossa convivência além de insuportável desigualdade socioeconômica insuportável até mesmo para capitalistas do agronegócio. Estes muitas vezes estão na mídia denunciando que não há público consumidor suficiente para o leite e produtos laticínios, imprescindíveis à saúde do povo. Tão empobrecida se encontra a sociedade brasileira!

Instituições governamentais como o Ipea, IBGE bem como a sociedade civil representada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, todos pela Educação, Fundação Abrinq, Transparência Brasil, vêm a público com informes e dados estatísticos revelando as injustiças a que é submetido nosso povo. Relatórios anuais do Ipea nos informam que o problema mais grave do Brasil não é a escassez, mas a distribuição dos recursos. Além de uma linha expressa por fenótipos negroides delinear bolsões de miséria por este Brasil grande. Na base larga da pirâmide social estão as famílias negras, tendo por responsáveis as mulheres negras. São as famílias mais pobres do Brasil. Sujeitas às diversas formas de violências perpetradas nas comunidades de todas as cidades brasileiras.

Pesquisando origem ou origens, nos deparamos com quatrocentos anos de monarquia escravizadora e pouco mais de centro e trinta anos da República desigualizadora com naturalização de infeliz distribuição de papéis sociais oitocentistas que nos legaram patriarcalismos e racismo estrutural.

O Anuário de Segurança Pública de 2017 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública informa que das pessoas mortas pelos órgãos de segurança pública naquele ano 99,3% são homens, 81,8% têm entre 12 e 29 anos, mas 76,2% são negros. Já a Ouvidoria de Polícias do Estado de São Paulo em pesquisa sobre o uso da força letal por policiais de São Paulo e vitimização policial em 2017 informa que 65% das vítimas ou tinham até 17 anos, “16%” ou estavam na faixa entre 18 e 25 anos “49%”. O mesmo estudo revela que dos mortos até 17 anos, 70% eram negros, e das vítimas de 18 a 25 anos, 68% eram negros. Conclui a Ouvidoria: “Ou seja, a principal vítima de letalidade por intervenção policial é o jovem negro de até 25 anos” (Ouvidoria de Polícias do Estado de São Paulo. Pesquisa Sobre o Uso da Força Letal por Policiais de São Paulo e Vitimização Policial em 2017. São Paulo, agosto de 2018).

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, a partir de dados da pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua e anual – Pnad, em levantamento de 2019, informa que no Brasil aproximadamente 84 mil crianças e adolescentes de 5 a 17 anos exerciam trabalhos domésticos, sendo 48,6% como cuidadores de outras crianças e 40,3% desempenhado outros serviços domésticos. Informa a secretária executiva do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil, Katerina Volgov: “Diz que o rosto do trabalho doméstico infantil reflete o que ela considera o modo colonial e a herança do trabalho reprodutivo doméstico”. “O trabalho infantil reproduz o desequilíbrio de gênero de que esses papéis são destinados às mulheres”. A jornalista Fernanda Brigatti que a entrevistou para a Folha de S. Paulo, seção Mercado, 7 de outubro de 2022, ainda informa que Katerina Volgov esclarece que o trabalho infantil doméstico é principalmente feminino e negro, reproduzindo ao mesmo tempo desiquilíbrio de gênero e racismo estrutural, pois 85,2% das crianças e adolescentes eram mulheres e 70,8% negras.

Outro caso é a situação gravíssima de discriminação racial institucional que vem vitimando o jovem músico, cidadão negro, Luiz Carlos Justino. Que foi preso injustamente duas vezes. Em 2020 foi preso acusado por crime que não cometeu, sendo absolvido. Mas foi preso novamente a partir de abordagem policial porque o seu nome constava de mandado de prisão em aberto no sistema do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões. Conforme noticiado pela imprensa, a ocorrência se deu em Niterói. Ocorre que o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0 sistemas eletrônico esclarece às autoridades judiciárias da Justiça Criminal informações a partir da gestão de documentos atinentes às ordens de prisão e soltura expedidas em todo Brasil, expedindo um cadastro nacional de presos. Presume-se ser serviço público imprescindível à segurança da sociedade e deveria ser sempre atualizado e expressar situações verdadeiras. Como titulares do poder, fomos enganados e mais um jovem negro injustiçado.

Outra situação grave envolvendo a morte, aos 22 anos, do jovem motoboy Briner de César Bitencourt ocorreu na cidade de Palmas, Tocantins. Acusado e preso em 2021 foi absolvido em 2022, mas morreu na cadeia pública um dia antes da soltura. Preso há um ano, na prisão perdeu a saúde por razões desconhecidas, passando os últimos 14 dias de vida sem conseguir se alimentar e com dores abdominais. Levado a uma Unidade de Pronto Atendimento – UPA, aonde chegou em cadeira de rodas, veio a óbito. O jornalista Francisco Lima Neto (Folha de S. Paulo, seção Cotidiano, de 14 de outubro de 2022) comenta o triste fato.

São muitas e recentes situações de violências vitimando crianças, adolescentes e jovens, principalmente negros e pobres, demonstrando ineficiência e ou inexistência de políticas públicas para implementação de direitos imprescindíveis para o estado de justiça que buscamos na convivência.

Como saber e entender tudo isso? É fundamental a vigência de um Estado Democrático de Direito que possibilite acesso a dados e informes sobre todas as questões sociais. Não se trata de expor opiniões e sim demonstrar realidades. Ressalta-nos a metodologia interseccional que mediante cruzamento de informações e dados temos conhecimento de realidades complexas. Ocorre que dados e informes múltiplos e quadros estatísticos encontram-se sob responsabilidade de instituições públicas e precisam ser disponibilizados à sociedade. É mediante política de dados abertos permitindo aos cidadãos bem como as instituições públicas e privadas o acesso e disponibilização de todos de todos os tipos de informações como preceitua a Constituição Federal (Art. 5ºXXIII) e a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 2011) que conheceremos realidades e democraticamente criticamos e propomos políticas públicas. Com os dados podemos desenvolver interseccionalidades analisando todos os eixos da questão social por mais complexa que se nos apresente. Muito aprendemos com feminismo negro a partir das teses das pensadoras Angela Davis, Patricia Collins, bell hooks e Kimberlé Crenshaw e entre nós as intelectuais pensadoras negras Leila Gonzales, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, entre outras, cujas contribuições vêm alertando a sociedade no entendimento das questões sociais buscando sempre interagir aspectos da racialização, questões de gênero e a inafastável questão socioeconômica. Racismo, patriarcalismo e miserabilidade atingem e violentam pessoas tendo como resultado a vulnerabilidade de ser criança, adolescente ou jovem negro no Brasil. São os sujeitos por natureza carecedores de atenções, mas os vitimados pelas exclusões discriminatórias.

O questionamento persiste, por que nos agredimos e comprometemos negativamente o nosso futuro? Como preleciona Denise Auad, “o princípio da dignidade sob a perspectiva da alteridade é essencial”, o “enfoque da alteridade permite que visualizemos os problemas a partir da multiplicidade de consequências que acarretam o corpo social”, acrescentamos como forma importante de nos colocarmos “no outro” para prevenir situações injustas exigindo planejamento e políticas públicas.

Enquanto persistir o descaso com os direitos humanos, descumprimento flagrante de compromissos internacionais, inclusive de direitos constitucionais e das legislações conquistadas com ações inteligentes e pacíficas dos movimentos sociais e de entidades da sociedade civil, não alteraremos os quadros de injustiças.

Retornando à educação e a Paulo Freire, somente pela formação de nova cidadania e firme participação política revolucionaremos.

* Professora da Faculdade de Direito (FD) da USP

Fonte: https://jornal.usp.br/?p=578097

Indissolúvel?

 Por Antonio Gerardo Fidalgo*

https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2022/10/28_10_casamento_unsplash.jpg

29 Outubro 2022

"Embora seja difícil aceitá-lo, é preciso dizer que continuar a defender a irrevogabilidade do vínculo sacramental, o absolutismo da indissolubilidade, é manter um rigor antievangélico, que, embora não propositalmente, não é misericordioso".


Aparentemente, a grande pedra do escândalo matrimonial é seu caráter "indissolúvel", tanto por seu fundamento positivo quanto pelas eventuais "soluções pastorais" em caso de crise. O tema, apesar de sua complexidade, se apresenta dentro de uma série de tensões: essa categoria é mais um pilar teológico que jurídico?

É verdade que "o ser humano não separe o que Deus uniu" é uma frase que implica teológica e juridicamente aquela que tem sido chamada de "indissolubilidade"? É possível dar ao amor humano um vínculo perpétuo que exige firmeza e invariabilidade? Pode a “graça sacramental” transformar a frágil e temporária estrutura humana em uma estrutura forte e perpétua? E assim se poderia continuar com perguntas semelhantes que criam diferentes tensões nas pessoas, discursos e configurações sobre o casamento.

Verdade e discernimento

Por outro lado, devemos acrescentar as tensões advindas do horizonte interpretativo, que costumam variar entre a corajosa defesa da vontade e da verdade que vêm de Cristo, segundo a interpretação da Igreja, e que seriam inamovíveis, e a discernimento que a Igreja pode realizar para compreender melhor essa verdade.

Essas tensões ocorrem entre uma Igreja que pretende professar a sua fidelidade a Cristo e sua verdade (imutável) e, ao mesmo tempo, sua busca por se comportar com espírito maternal diante da fragilidade de seus filhos (mutáveis/adaptáveis). Entre manter inalteradas a "doutrina" e a "disciplina" (eclesiástica) e abrir-se a percursos de compreensão "pastoral" (eclesial). Entre o rigor dos princípios e a misericórdia ou equidade na sua aplicação. Entre endurecimento hostil e tolerância benevolente oportunista. Entre ser simples cuidadores do depositum fidei e ser seus donos e senhores.

E assim se poderia continuar com uma longa lista de tensões que contêm posições, posturas e imposturas de várias orientações e intenções.

Resumidamente, dever-se-ia assumir que o tema necessita de um tratamento teológico sério, que seja capaz, com todo o respeito possível, de abandonar toda relação ou referência a categorias e argumentos jurídicos.

Sacramento e comunidade

Tal tratamento exigiria pelo menos duas coisas fundamentais. Acima de tudo, a revisão do setenário sacramental, reconhecendo que existe uma hierarquia de verdade entre os sacramentos essenciais (batismo e eucaristia) e o restante. A realidade ontológica dada ao Batismo e à Eucaristia não pode ser a mesma dos outros sacramentos.

Trata-se de uma questão que vem sendo estudada há muito tempo em sentido ecumênico, que as Igrejas deveriam assumir com maior profundidade e liberdade, deixando de repetir interminavelmente argumentos que são difíceis de compreender hoje, tendo sido forjados em resposta a circunstâncias socioculturais e não por razões de valor teológico e teológico.

O segundo ponto: assumir que a realidade do casamento, vista e celebrada do ponto de vista da fé, deve ser realizada nas e através das estruturas eclesiais de fé e participação ativa da comunidade eclesial, e não ser resolvida nos tribunais, onde de alguma forma, está presente uma perspectiva legalista da jurisprudência. E isso vale tanto no início, tendo em vista a celebração do casamento, quanto, se necessário, em caso de fracasso da experiência conjugal.

Obviamente, não se trata de renunciar à dimensão ou perspectiva jurídica, que aliás pertence à vida humana como organização, mas se trata de distinguir e de aceitar onde deve intervir e onde não.

A realidade sacramental do casamento tem a sua centralidade no amor-fiel ("comunidade íntima de vida e de amor", GS 48), que, do ponto de vista antropológico e teológico, reclama a permanência e a clara intenção de cuidar dele, isto é, evitando qualquer sinal contrário de desamor e infidelidade.

Nesse sentido, deve-se entender que o ser humano não pode dar origem à infidelidade onde Deus abençoou uma unidade de pessoas no sinal da fidelidade; aqui se compreende - de alguma forma e salvaguardando as distâncias - a comparação com a fidelidade de Cristo em relação à sua Igreja.

O amor-fiel é assumido e celebrado sob o signo da promessa e dentro das dinâmicas humanas de gradualidade e processualidade, onde há sempre a possibilidade, não só do fracasso, mas também da decepção e de repensar o caminho, em parte ou no todo. O que, com certeza, causará lesões e desconfortos, que devem ser assumidos buscando as melhores e possíveis respostas, que sirvam de remédio para continuar caminhando. Nesse contexto devem ser entendidas as separações temporárias ou definitivas das pessoas unidas em casamento.

Promessa e separação

O casamento é uma promessa para toda a vida, desde que seja sempre portador de vida, caso contrário pode cessar e ser reconsiderado. Aqui só se pode falar de separação (momentânea ou definitiva) nunca de nulidade (terminologia jurídica não adequada ou correta do ponto de vista teológico e antropológico).

Tudo isso deve ocorrer no contexto da pastoral eclesial. Assim como é suficiente o consentimento livre e responsável dos cônjuges e algumas testemunhas para iniciar esse percurso, o mesmo deveria ser necessário para decidir que o percurso seja interrompido. Apenas o consentimento dos cônjuges e na presença de algumas testemunhas qualificadas que garantem que, tendo tentado permanecer no caminho do amor-fiel, isso não foi possível; verificado isso, na liberdade-responsabilidade dos filhos e das filhas de Deus, eles deveriam ter a possibilidade de dizer basta e de poder recomeçar ou continuar de outra forma sua vida pessoal e familiar.

A separação eclesial, assim entendida, pode coincidir com o que é chamado divórcio civil, sem que haja nenhum conflito. Assim como o casamento exige um processo de preparação teológico-pastoral, o mesmo deveria acontecer em caso de separação, também para não expandir excessivamente os tempos e os procedimentos burocráticos; nunca esquecendo que devem ser sempre atentos e respeitosos com as pessoas.

O evangelho do matrimônio e da família tem como conteúdo o amor-fiel, assumido livremente e responsavelmente pelas pessoas envolvidas, como dom e promessa de um "para sempre de qualidade" (cf. AL, 62; 77; 86), que se explicita no aqui e agora da história, pessoal e social, sob o signo da fragilidade e da processualidade.

Estruturas e pessoas

Só uma lógica teológica e, portanto, evangélica, pode ser satisfatória, para assumir o valor do casamento, pois todas as chaves jurídicas, mesmo com as melhores intenções, sempre se movem no plano das "concessões" e das possíveis "exceções" nos casos particulares, mas deixando sempre que as estruturas permaneçam acima das pessoas.

Neste caso, o vínculo indissolúvel é colocado acima das pessoas e suas verdadeiras histórias de amor e de desamor. Só uma lógica jurídica coloca os fatos - em primeiro lugar - como lícitos ou válidos, como "objetivamente" pecaminosos, para além das situações subjetivas: isso deve ser completamente superado porque representam uma espécie de esquizofrenia que mina a vida de uma fé que procura realizar-se evangelicamente.

Toda essa abordagem não é uma mera tentativa de subjetivismo ou relativismo/emotivismo ético, mas pretende ser uma revisão aprofundada, procurando dar continuidade à prática de Jesus Cristo, que veio para nos libertar de todo o tipo de escravidão, e em cujo plano espera-se que todos os seres humanos encontrem uma modalidade de realização inclusiva e libertadora.

Não se trata, como têm afirmado não poucas pessoas e setores eclesiais e sociais, entrincheirando-se em altissonantes bastiões de segurança, de dobrar a revelação a determinadas preferências humanas, abrandando as exigências evangélicas. Mas, embora seja difícil aceitá-lo, é preciso dizer que continuar a defender a irrevogabilidade do vínculo sacramental, o absolutismo da indissolubilidade, é manter um rigor antievangélico, que, embora não propositalmente, não é misericordioso.

Trata-se de seguir a lógica evangélica da verdade do amor (a única que liberta e é exigente: "a porta estreita"), acima do "amor à verdade" (à doutrina; à disciplina, etc.: que acaba sendo "a estreiteza da porta"), sobretudo quando essa verdade não surge do amor, mas de ideologizações condicionadas por posturas mentais e socioculturais, que não só não comunicam a genuinidade do evangelho, como o traem.

Além da doutrina da indissolubilidade

Em última análise, é importante abandonar a linguagem da "indissolubilidade" e o seu conteúdo puramente jurídico. A indissolubilidade do casamento, como continua a se apresentar, é um sério e antievangélico limite à liberdade responsável dos filhos e das filhas de Deus, fruto de uma imposição arbitrária de leis eclesiásticas que, embora com o bom pretexto de ser manifestação da força do amor com que Deus ama o ser humano, acaba por ser o exato contrário, um verdadeiro e terrível obstáculo (neste sentido, "escândalo"), que deturpa o que deveria ser um dom do Deus da vida.

Assumir que, de modo cristão, o casamento fundado no amor-fiel seja uma realidade que implica um compromisso estável para toda a vida (cf. AL, 52; 123; 124), não implica de modo algum o pesado fardo de tudo o que a doutrina de indissolubilidade comporta hoje (cf. CEC, 1640; 1644; CIC, 1141), apresentando-a como uma obrigação ou doutrina acima da realidade das pessoas (cf. AL, 134).

Toda essa abordagem não é a diatribe entre um pensamento forte e um fraco, mas a tentativa de ser fortes na fraqueza, de ser pessoas que fazem a história da salvação, deixando espaço para a salvação na história, sem violá-la, respeitando as pessoas e suas reais necessidades e possibilidades, sempre peregrinos e em constante construção/conversão (cf. AL, 243).

Esperamos que esta seja verdadeiramente a Igreja que é "o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho" (EG, 114).

*Antonio Fidalgo é religioso da Congregação do Santíssimo Redentor, professor titular da Academia Alfonsiana de Antropologia Teológica (Itália), licenciado em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1995) e o doutor em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (2004). Foi coordenador da ETAP, Grupo de assessores teológicos da presidência da CLAR (Conferência Latino-Americana de Religiosos) de 2012 a 2014.

 O artigo é de , publicado por Settimana News, 27-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Fonte: 

https://www.ihu.unisinos.br/623435-indissoluvel