segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Lídia Jorge: “A morte é apenas um instante. Escrevi sobre o fulgor da vida”

 Texto Ricardo Farinha


 Lídia Jorge tem 76 anos.

 

A escritora tem um novo livro, “Misericórdia”, baseado no último ano de vida da mãe — que faleceu em 2020, vítima de Covid-19.

Em abril de 2020, a mãe de Lídia Jorge, Maria dos Remédios, faleceu de Covid-19. Vivia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime. Antes, tinha-lhe deixado um pedido: que escrevesse um livro intitulado “Misericórdia”. A ideia, à partida, seria refletir sobre o fim da vida — para exaltar o facto de que os últimos momentos, ainda assim, não têm de ser despojados de entusiasmo, de sede de viver, de todas as outras coisas boas que marcam a vida. 

Foi um livro que acompanhou o natural processo de luto da autora, e que no final foi apresentado como uma história de ficção baseada em elementos íntimos e reais — inclusive vários apontamentos do diário de Maria dos Remédios, que a filha usou para dar corpo à obra. “Misericórdia” acompanha o último ano de vida de uma personagem.

Leia a entrevista da NiT com Lídia Jorge sobre “Misericórdia”.

Escreveu este livro, “Misericórdia”, a corresponder a um pedido da sua mãe. Sei que interrompeu inclusive a escrita de outro romance em que estava a trabalhar para dar início a este. Como descreveria esse processo?
Bem, foi um desafio muito grande, porque a minha mãe pediu-me muitas vezes que eu escrevesse um livro que se chamasse “Misericórdia”. Perguntava-lhe porquê, o que é que ela queria com isso. Ela nunca foi muito clara, mas a certa altura disse-me que era para eu poder escrever sobre a relação das pessoas quando o corpo já não corresponde àquilo que é o desejo íntimo da existência e que falasse nessas relações para que as pessoas tivessem mais compaixão umas pelas outras. Depois ela faleceu, com Covid, naqueles primeiros meses — foi a 19 de abril de 2020.

Logo no início da pandemia.
O último pedido que ela me fez foi a 8 de março. Nunca mais a voltei a ver. Isso ficou como um pedido que foi um imperativo absoluto. Mas ao princípio não sabia bem o que fazer com isso. Até que um amigo, o José Manuel Mendes, me enviou um livro do Roland Barthes cujo título é “Journal de Deuil” e percebi que tinha mesmo de escrever. Porque tinha uma espécie de vergonha de escrever alguma coisa tão próxima. Há um pouco de pudor nisso, naturalmente. Mas, como ele falava tão abertamente daquilo que sentia, deu-me esse impulso que de facto eu estava literariamente legitimada para o fazer. Só que, na construção do livro, tomei um caminho oposto. Enquanto que o Barthes, que era sobretudo um ensaísta, filósofo da linguagem e da literatura, fala direta e abertamente num “eu” que sofre com a partida da mãe, eu percebi que não poderia fazer isso. O que tinha de fazer era o contrário. Não falar de um “eu”, mas de um “tu”. Dei-lhe a voz inteira e procurei reconstituir o último ano de vida dela através do pensamento, que correspondia, no fundo, àquilo que ela me ia dizendo ao longo desse tempo.

Esse desejo que foi expresso no tal 8 de março, essa visão e perspetiva era algo em que a própria Lídia já pensava muito? Ou acabou por refletir muito mais sobre isso depois?
Sinceramente, refleti mais depois. Porque o título “Misericórdia” parecia-me dramático. Só que, perante o pedido dela, a palavra “misericórdia” começou a ganhar um sentido muito maior. Até porque, como a minha mãe nunca foi uma pessoa melancólica nem de lamento ou de saudades — tinha mas superava, foi uma pessoa de grande entusiasmo, viveu até aos últimos momentos de vida, que assisti apenas por telefone, com um entusiasmo pela vida. As últimas palavras que me disse foi “deixa-me que vou trabalhar”. Isto quando ela já não se movia, quando ia morrer, não é? Foi algo tão forte, ensinou-me e disse-me tanto, que eu não só fiquei tocada como achei que valia a pena partilhar. Isto são sentimentos que a pessoa sente pudor em partilhar, naturalmente. Mas acho que vale a pena quando há assim um sentido de vida tão intenso que nos ajuda, que nos anima na existência e a dar-lhe um sentido. Acabei por tomar alento e escrever este livro que começou lento mas a certa altura não conseguia parar. Foi escrito como se houvesse duas correntes: uma que era a sensação cada vez mais intensa de que ela tinha partido mesmo; e a outra era que com a voz ia ao encontro do âmago dela, do recado que ela me tinha deixado e que eu acho que não era só para mim. Foi um recado tão forte, a luta que ela fez pela aprendizagem, pela sabedoria, pelo conhecer o mundo. Pela esperança que tinha nas relações humanas, na melhoria da vida. Isso pareceu-me tão forte que achei que valia a pena partilhar e à medida que ia escrevendo cada vez mais sentia entusiasmo por isso. À medida que a história que é contada se aproxima do fim, e que é já num clima absoluto de pandemia, mais valorizo o sentido de esperança e de tentativa de narrativa que sempre houve dela para ultrapassar a existência. Porque isso foi algo que ela me passou, no fundo, e na qual me sinto sua irmã. O facto de ter apontamentos sobre a vida ajuda a sobreviver.

Já vi a Lídia descrever este livro como inevitavelmente duro, mas também positivo, esperançoso.
Sim, esperançoso, na medida em que encontrava as palavras que eram o eco daquela mensagem, achei que não era difícil. E por isso é que há pouco tempo, quando me perguntaram “mas porque escreveu sobre uma coisa tão triste?”, eu disse: “Não, eu não escrevi sobre a morte, escrevi sobre o fulgor da vida diante da qual a morte é apenas um dia”. A morte é um instante. É um pouco deslocado utilizar a palavra “alegria”, mas posso dizer outra palavra que quem escreve e os grandes leitores entendem: escrevi como uma espécie de “triunfo” sobre a morte, sobre o esquecimento, sobre aquilo que é o pó da vida.

O livro acaba por abordar a forma como as pessoas, quando naturalmente se aproximam do fim da vida, são muitas vezes percecionadas. Sente que é algo que precisa de mudar na nossa sociedade, a forma como as pessoas mais velhas são vistas quando estão num lar, por exemplo? O livro também acaba por abordar isso.
Sim, acaba. Não é o aspeto principal, porque não quis escrever nada sociológico, mas naturalmente passa-se lá e dá eco das situações comuns que se passam nos lares. Nós somos sempre frágeis, mas há dois períodos da vida em que somos particularmente: quando somos crianças e quando somos velhos. Em relação às crianças, hoje-se tem uma perceção do que é que precisam. Há um carinho e um cuidado que às vezes até é excessivo, mas existe essa noção da fragilidade da criança. Com as pessoas idosas, há uma ideia de que se tem de remediar, de que se tem de amparar, mas penso que ainda não há saberes suficientes sobre o assunto. A instituição lares é uma herança da sociedade industrial do século XX. E tenho ideia que, hoje com aquilo que sabemos sobre as pessoas mais velhas, acho que há que mudar coisas. Há que não juntar tanta gente, por exemplo. Há que perceber que se muitos dos cuidadores são pessoas que naturalmente têm sensibilidade e fazem prodígios, que são de uma atenção extraordinária por impulso, por temperamento, há outros — e são muitos — aqueles que precisam de ser conduzidos. E todas as pessoas precisam de ser remuneradas e ter atenção de outra forma. Nada melhorará enquanto essas pessoas não forem tratadas como especialistas. Porque temos de perceber que as pessoas vão para um lar porque em casa não temos condições. E compreender que nada pode ser ideal, que não há um mundo perfeito, que não se pode exigir tudo. São sítios onde há permanentemente surpresas, desencontros, situações dolorosas. Uma exigência demasiada e o propalar da ideia de que são sítios de tortura, como muitas vezes acontece… As notícias são só sobre lares como se fossem sítios de tortura, é de uma grande injustiça para toda a gente. Para a sociedade inclusive, que fica com uma ideia deturpada do que é um lar. Até há pessoas que evitam passar na porta, com medo, pensando que lá acontece uma espécie de tortura. Ora, não é nada disso que acontece, não é? É preciso entrar e ver com outros olhos. E sobretudo perceber que as pessoas que lá estão são pessoas cheias de vida. A maior parte delas mantém intactos os sonhos, a vontade de ser útil, de participar, ajudar. Fazem relações de amizade, criam clubes entre si, ajudam-se. É outro mundo, mas é apenas o prolongamento das pessoas ativas. É uma extensão natural da nossa existência quotidiana.

O livro tem mais de 460 páginas.

Este livro é baseado na sua mãe, nas suas vivências, nos seus pensamentos. Mas também tem uma parte ficcionada. Essa verdade não está exposta como se fosse documental, digamos assim.
Quando li o “Journal du Deil”, percebi que tinha de fazer ficção. Gosto de colocar as figuras em ação, de criar um palco e fazer uma espécie de teatro, separar-me da realidade. Não gosto de fazer o trânsito imediato da realidade para um livro. Preciso, entre a realidade e a página, de criar uma fábula. Por isso, este livro tem um subsolo de realidade, mas é uma ficção criada a partir de elementos muito próximos e muito reais.

Foi especialmente desafiante escrever e inventar essa fábula tendo em conta o tal subsolo real que existia neste livro?
Foi fácil, porque a minha mãe me deixou todos os elementos. Não os esgotei, acredite. Desde que a conheço que fez um diário. No final, já só escrevia pequenas palavras. E são essas pequenas palavras, que alterei, transfigurei, modifiquei porque não são bem assim. Pequenas frases como se fossem pequenos poemas. São apontamentos do dia que me deram a ideia que era a partir daí que podia reconstituir aquilo que era a sua fala. Então foi simples. Demorei dois anos a escrevê-lo, mas com longos intervalos. E nesses intervalos estava sempre a desejar voltar para casa, para o poder retomar, porque sentia que era uma história que tinha de escrever — escrevi com um impulso muito forte. Não vale a pena estar a dizer quais são os que recolhi da realidade e quais são aqueles que evitei, porque isso é absolutamente inútil para um leitor. O leitor deve imaginar que é tudo ficção, isso é que é importante.

Suponho que seja um livro bastante especial por partir de uma base tão íntima e próxima para si.
É um livro que não tem antecedente, e provavelmente não terá consequente. É um livro único, não espero voltar a ter uma experiência semelhante. Como disse, é um livro para um “tu” muito próximo, mas com um diálogo intenso e é um livro em que procuro levantar da terra uma figura e erguê-la. Criar uma espécie de estátua para ficar. Para mim é muito especial, de facto.

Sente que também foi uma forma de processar o luto?
Sim. À medida que ia escrevendo, tinha a ideia de que ia reencontrando a normalidade. A normalidade da casa, do jardim, da vida. Inclusive a normalidade do diálogo com o mundo. Porque naquela altura houve um momento em que tudo ficou entre parênteses. A minha mãe era uma pessoa muito envolvida com o mundo, com a política, ela tinha opinião sobre tudo. Gostava de falar sobre os políticos do partido de que ela gostava e também dos da oposição. A pouco e pouco, o luto foi isso: voltar a vê-la com alegria, como se ela voltasse a estar inteira, a estar viva entre nós. Porque o luto não é desembaraçarmo-nos de alguém e pô-lo dentro de uma gaveta e dizer “este já cá não está”. O luto é passarmos a conviver com a lembrança e com a atitude viva de alguém que nos amou profundamente e que amou os nossos descendentes. E que está aqui. Ao menos enquanto pensamos nisso, ela existe. É um elo humano formidável.

Estava a descrever há pouco os longos intervalos durante a escrita deste livro. A rotina criativa que a Lídia tem depende muito de cada livro? Obviamente também dependerá da fase da sua vida.
Depende mais do meu temperamento [risos]. Porque há escritores — e admiro-os e louvo-os e gostaria de ser um deles — que são capazes de ficar em casa, de se fecharem durante um ano, de dizerem “aqui ninguém me bate à porta”. E eu não sou uma pessoa assim. Tenho muita pena de não ser, mas não sou. Se me batem à porta, abro a porta. E quem é assim está sujeito à ventania [risos]. Dependo muito daquilo que está a acontecer. Do que está a acontecer no mundo, socialmente, com os amigos e a família. Não consigo programar: durante um ano, vou acabar um livro. Vou viajar e vou fechar-me. Não. É um problema e um defeito do meu temperamento. Poderia ter escrito o dobro e possivelmente melhor se tivesse um temperamento de mais cautela e vigilância sobre aquilo que é e deve ser uma espécie de missão que os escritores têm, que é dizer aquilo que lhes parece do mundo enquanto vivem. Deixar esse registo, esse testemunho, e isso é algo que deve merecer o sacrifício de outras coisas. Quem não o faz, peca. Portanto, eu pecadora me confesso [risos]. De facto não o tenho feito, não me dediquei a tempo inteiro como deveria.

Mas também perderia, obviamente, outras coisas importantes. É inevitável.
Sim, é inevitável. Admiro muito as pessoas que imaginam que temos muitas vidas [risos], acho que elas são felizes. Gostaria muito de ter muitas vidas. Penso que todos nós… De vivermos em simultâneo muitas situações, não é? Porque a nossa vida é cheia, é intensa. Queremos descobrir tanta coisa, percebemos que somos finitos, que passamos rapidamente, então vimos a este mundo e ele está escancarado à nossa espera. Somos só um: um sujeito tão limitado para aquilo que é o desejo ilimitado de conhecimento e de vivência. Mas é assim.

Já voltou ao livro que entretanto tinha deixado em suspenso? Ou ainda não?
Ainda não, nem sei se é um livro para retomar. Já ia bastante adiantada na conceção e com várias páginas escritas, mas de facto o mundo entretanto mudou muito. De há dois anos para cá, há revelações extraordinárias. Quer do ponto de vista da natureza que nos atacou, quer do ponto de vista das relações entre os países e as pessoas. Imaginava que, depois da pandemia, ficávamos todos mais juntos. Escrevi 13 textos durante a pandemia, todos esperançosos, com a ideia de que o mundo iria ser melhor. De que tínhamos percebido finalmente que éramos uma só geração à face da terra. Que tínhamos padecido todos ao mesmo tempo das mesmas dores. E que isso nos tinha tornado fraternos. Agora leio esses textos e até sinto vontade de chorar, porque foi ao contrário. Acabou a pandemia e estamos envolvidos num tumulto internacional, à beira de podermos ir para uma Terceira Guerra Mundial da qual não restará pedra sobre pedra. Ou as pedras restarão, mas não restarão pessoas ao lado das outras para continuarem a vida. Isto traz-me um tumulto tão grande que é um momento muito delicado. Acho que para toda a gente. Mas para quem teve a esperança, para quem confiou que iria ser melhor, isto é uma derrota. Cada dia que passa é uma derrota. Tenho esperança que haja qualquer coisa boa que surja.

Fonte: https://www.nit.pt/cultura/livros/lidia-jorge-a-morte-e-apenas-um-instante-escrevi-sobre-o-fulgor-da-vida?fbclid=IwAR0UC_UXJ796xvbz9iLDJzJJfB7LSfuPD9VMAAUN-CIOOrG-upmcqbgyq5w

 fotografia Inês Gomes Lourenço

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