domingo, 31 de maio de 2020

INTOLERÂNCIA

Umberto Eco

O escritor italiano Umberto Eco Foto: Andrea Barbiroli/Estadão

Pensador italiano previu a onda de migração em massa em direção à Europa

Elias Thomé Saliba*, O Estado de S.Paulo 
 
27 de maio de 2020

Todos conhecem a divertida passagem de O Ingênuo, de Voltaire, na qual o índio Hurão, que havia deixado a América para visitar a Inglaterra, é quase forçado a passar pelo rito da confisssão com um frade, após este impingir-lhe a epístola de S.Jacques: “Confessai-vos uns aos outros”. Terminada a confissão, o hurão obriga o frade a trocar de lugar com ele, e colocando-o de joelhos anuncia que o religioso também não sairia dali até que confessasse todos os seus pecados. Esta passagem é um chamariz para Experiências de Antropologia Recíproca, um dos quatro ensaios, sendo dois deles inéditos, de Umberto Eco, reunidos em Migração e Tolerância.

Como são ensaios derivados de intervenções e conferências, realizadas entre 1997 e e 2012, vemos um Eco muito mais à vontade, sem perder a verve, fluência e a erudição que caracterizam sua obra. Suas referências históricas surpreendem: para exemplificar como diferentes civilizações criam seus próprios calendários e respectivas teogonias - e que a cristã é apenas uma entre muitas - retira lá do século 17, o obscuro herege Isaac de la Peyrère, que revelou que cronologias chinesas eram muito mais antigas que as hebraicas, aventando a hipótese de que o pecado original envolvesse apenas a posteridade de Adão, mas não de outros povos, surgidos muito tempo antes. 

Num dos ensaios mais incisivos, Eco procura mostrar que a intolerância quase sempre vem antes de qualquer doutrina, ou seja, a intolerância já existe difusamente na vida cotidiana e alcança até alguma popularidade, antes de se constituir em seitas fundamentalistas, como o integrismo ou o racismo pseudocientífico. A intolerância – argumenta – chega mesmo a ter raízes biológicas, manifesta-se entre os animais como territorialidade, baseia-se em relações emocionais, muitas delas completamente superficiais, mas renitentes: não suportamos os que são diferentes de nós porque têm a pele de cor diferente, falam uma língua que não compreendemos, ou porque comem rãs, cães, macacos, porcos, alho, ou são tatuados. Assim, não são as doutrinas da diferença que produzem a intolerância selvagem, ao contrário, estas desfrutam de um fundo preexistente de difusa intolerância. Foi assim que o antissemitismo pseudocientífico surgiu no decorrer do século 19 e acabou transformando-se em antropologia totalitária e na mais perversa prática industrial do genocídio no século 20. Porém, não poderia ter nascido se já não existisse um antissemitismo popular, já fortemente disseminado – e dissimulado - nos séculos anteriores. Com exemplos curiosos colhidos do universo medieval e mesmo do mundo renascentista, Eco demonstra que todas as teorias e doutrinas da intolerância apenas nasceram e exploraram um ódio pelo diferente que já existia. Escrevendo em 2012, Eco observa, de forma presciente, que o novo fenômeno do antissemitismo não é uma doença marginal que afeta apenas uma minoria lunática, mas o fantasma de uma obsessão milenar. 

Eco não menciona diretamente o conto de Voltaire, mas o episódio serve como inspiração para definir o que ele chama de antropologia recíproca: não mais uns (ativos) observando outros (passivos), mas uns e outros como representantes de culturas diversas analisando-se face a face e mostrando como podemos reagir de maneiras diferentes, aprendendo com a diversidade. Hoje, como ontem, é tarefa difícil lutar contra a intolerância selvagem, porque diante da animalidade pura o pensamento esmaece. Pior ainda quando a intolerância se faz doutrina: aí já é muito tarde para vencê-la, e aqueles que deveriam fazê-lo tornam-se suas primeiras vítimas. Muito desta onda de intolerância acaba se deslocando para as migrações em massa, as quais, sobretudo em relação à Europa, tornam-se fenômenos incontroláveis que Eco, escrevendo em 1997, conclui com um notável prognóstico: “no próximo milênio( e como não sou profeta não posso especificar a data), a Europa será um continente multirracial ou, se preferirem, ‘colorido’. Se lhes agrada, assim será; se não, assim será da mesma forma.” 

Afinal, o migrante, seja ele quem for e de onde vier, sofre na pele o trauma do dezenraizamento, mas também ensina lições novas e aquela singular diversidade que cresce e se fertiliza, ao eliminar fronteiras entre o estranho e o conhecido. O que faz lembrar da frase de Hugues de Saint Victor, a qual noutra obra, Eco traduziu direto do latim: “Quem acha sua pátria doce é ainda um tenro aprendiz; quem acha que todo solo é como o nativo, já é forte; mas, perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é um lugar estranho”. 
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* Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e coordenador do site: humorhistoria.wordpress.com
FONTE:  https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,ensaios-ineditos-de-umberto-eco-tratam-da-intolerancia,70003310551

Pandemia faz emergir "o porco e o santo" em cada um de nós, define professor da PUCRS


Camila Cunha / PUCRS,Divulgação
 Marques de Jesus: "Durante a epidemia, temos visto emergir o que há de melhor e pior no ser humano"Camila Cunha / PUCRS,Divulgação

Docente na Escola de Humanidades e coordenador do curso de Filosofia da universidade, Luciano Marques de Jesus avalia isolamento social: "Nem todos aprenderão com a atual experiência"

27/05/2020 - 15h29minAtualizada em 27/05/2020 - 15h33min

Daniel Feix

Situações extremas, como a pandemia de coronavírus, podem nos despertar para uma consciência até então adormecida, acreditam alguns filósofos que têm feito reflexões sobre o momento atual. Mas, ao mesmo tempo, também podem ressaltar o lado mais sombrio das pessoas, pontuam outros. É a “emergência do porco e do santo”, resume o professor Luciano Marques de Jesus, da Escola de Humanidades da PUCRS, referindo-se ao que há de nobre e abjeto no ser humano. Na entrevista a seguir, o professor, que coordena o curso de Filosofia na universidade, faz cogitações sobre como tendemos a sair da crise, que tem origem sanitária e que pode nos afetar como indivíduos e também seres sociais.

A morte parece mais próxima em uma pandemia. Como essa experiência pode nos influenciar?
Nossa sociedade nega a morte. Por um lado, a morte é tabu. Por outro, é banalizada e espetacularizada. Se há uma pessoa doente na família, a palavra morte é proibida, nos programas policiais vespertinos é vulgarizada e, não raro, comemorada. Na área da saúde a palavra não existe. As pessoas não morrem, evoluem a óbito. Tudo isso talvez porque, para muitos, a morte represente a derrota última. Mas a pandemia nos confronta com a morte! Deveríamos aprender com Rubem Alves que a consciência da morte nos torna mais libertos, preocupados com aquilo que efetivamente importa, que vale a pena dar valor. Se morrêssemos hoje, qual o significado de toda a preocupação de ontem? Vale a pena dar a importância a tantas inquietações? Talvez pouca coisa nos seja necessária, talvez uma só! Curioso ser humano! O único animal que sabe que vai morrer e vive como se nunca fosse morrer. Tomara que saiamos dessa experiência dando maior valor à vida. Essa é uma oportunidade que temos. Infelizmente, nem todos vão aproveitá-la.

O senhor é um estudioso da logoterapia, que preconiza que a chave interpretativa do ser humano é a vontade de sentido, e não de prazer ou poder. A logoterapia surgiu quando seu fundador, Viktor Frankl (1905-1992), refletiu sobre sua experiência nos campos de concentração nazistas. O quanto experiências dramáticas (como uma pandemia) podem nos mostrar o sentido da vida?
A logoterapia propõe que o motor da vida humana, a verdade que sempre volta é a vontade de sentido. A questão do sentido persegue o fundador da logoterapia desde sua juventude, quando, numa aula de história natural, o professor ensinava que a vida pode ser reduzida a dois processos, oxidação e combustão. O jovem Frankl questiona: se é assim, que sentido tem a vida? O campo de concentração foi o terrível laboratório que validou as intuições de Frankl, mostrou que as chaves interpretativas de Freud (prazer) e Adler (poder) são insuficientes para mostrar o motivo por que as pessoas continuariam a dizer sim à vida, não obstante todo o horror que as circunvizinhava. A teimosa vontade de fazer que a vida faça sentido, essa é a chave interpretativa do ser humano segundo a logoterapia. Freud tinha a ideia que, se todos fossem submetidos aos seus instintos, por exemplo, se todos passassem fome, seriam iguais. O campo de concentração e outras situações de extrema crise, como essa pandemia, mostram o contrário: trazem a lume a emergência do que há de mais elevado, nobre e sublime no ser humano e, também, o que há de mais baixo, asqueroso e abjeto; ou, na dura expressão de Frankl, a emergência do porco e do santo.

Curioso ser humano! O único animal que sabe que vai morrer e vive como se nunca fosse morrer. Tomara que saiamos dessa experiência dando maior valor à vida. Essa é uma oportunidade que temos. Infelizmente, nem todos vão aproveitá-la.
Muito se tem dito que todos sairemos da pandemia transformados em algum sentido. Há quem diga que seremos menos individualistas. O senhor concorda com essa ideia?
Mais do que concordar, eu torço para que isso aconteça! No entanto, não podemos nos iludir, já durante a epidemia temos visto emergir o que há de melhor e de pior no ser humano. Muita solidariedade e voluntariado, mas também oportunismo, golpes e manifestações de interesses egoístas. Penso que a vida pós-coronavírus tem tudo para ser melhor, mas nem todos aprenderão com a experiência. Mario Sergio Cortella afirma que a ocasião não faz o ladrão, ela apenas o revela! Vamos aguardar para ver quais revelações o futuro nos revelará.

Temos visto alguma virulência no debate público, e não só no campo político. O negacionismo à pandemia se alinha a isso à medida que sugere interpretações rasas e pré-concebidas do mundo. O quanto essa situação de conflito pode ser afetada por este momento de crise e isolamento das pessoas?
O cientista e professor Marcelo Gleiser, perguntado por um aluno da Especialização em Filosofia e Autoconhecimento da PUCRS sobre o que ele pensava a respeito da volta do terraplanismo, respondeu com uma palavra: triste! É uma tristeza ver menosprezo pela ciência, negacionismo, movimento contra as vacinas. De um lado, essas visões equivocadas – não gosto do adjetivo “medievais”, ele é ofensivo, mas para a Idade Média! – podem prejudicar o combate ao vírus, mas também torço para que sejam desmascaradas. É impressionante a capacidade brasileira de politizar e ideologizar uma pandemia! Sobre a defesa do uso de medicações específicas por pessoas que passam longe da área da saúde, só resta o meu estarrecimento. De uma velha canção portuguesa, citada pelo saudoso senador Jefferson Peres: “Tudo isto existe; tudo isto é triste; tudo isto é fado!”.
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Esperanças


Lya Luft*
 Reconstruir a esperança « Paróquia Porciúncula de Sant'ana
(Aqui respondo ao pedido especial de alguém que ainda não conseguiu meu livro As Coisas Humanas, que aguarda livrarias abertas, portanto sendo comprado online.)
Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem mesmo planeta.

Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes, por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente - e fim de uma alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada. (Ou uma trágica pandemia destruindo boa parte do mundo que conhecíamos.)

Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes positivos que o destino nos traz. Como quando abro a janela e diante de mim, um luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um sorvete de morango se derramando sobre as outras árvores mais baixas (sim, gulosa desde criança).Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente: "Tu és uma vó muito divertida!", e isso me ilumina um dia inteiro. Ou cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha esquecido o poema.

Ou num aeroporto estrangeiro, uma brasileira toque meu ombro para perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar e dizer uma porção de coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.

Mas não somos terra de ninguém na medida em que coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas, memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.

Pois viver pode ser interessante, instigante, mas em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Ter um artigo para escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons. E a casinha da serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas de um azul muito pálido e vizinhas e amigas -, e quando quero, quietude maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com elas e acho que me protegem.

Enfim, o jeito é bancar o guerreiro e não entregar os pontos, pensando que não há só desgraça e discórdia, e quem sabe vamos todos nos abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem, não valem a pena. (Grande ilusão da minha infância.)

Pois o bom é poder ser território de amores, amizades, desejos, trabalhos, conquistas e mesmo fracassos, mas estando aqui, estando vivos - ah, e, apesar de tudo, curtindo as esperanças.
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* Escritora.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=8b430fa12793a41499cd660bfbeb48b8
Imagem da Internet 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Nobel da Paz: trazer à tona os rios subterrâneos da solidariedade

Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Novel da Paz

"Minha esperança está nos jovens que devem descobrir a si mesmos e descobrir os caminhos da vida, da espiritualidade, dos valores. Devem tornar-se protagonistas de suas vidas e construtores de sua própria história". 
 Palavras do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, em entrevista ao L' Osservatore Romano
 
Piero di Domenicantonio

Mesmo em casa, em Buenos Aires, onde a pandemia o obrigou a permanecer em isolamento, Adolfo Peréz Esquivel - oitenta e oito anos, Prêmio Nobel da Paz em 1980 - não parou por um momento, continuando a se dedicar à causa de sua vida: estar ao lado daqueles que não têm voz para reclamar pão, paz e justiça. "Mesmo nestes dias estamos trabalhando muito”. “Tentamos ajudar as pessoas que o Papa Francisco chama de "descartadas". Em Tartagal, na província de Salta, a mais de 200 quilômetros de Buenos Aires, estamos apoiando as comunidades indígenas dos Wichís. Eles precisam de água potável e nós queremos ajudá-los a construir um poço, mas não sabíamos por onde começar. Então, por acaso, chegou um telefonema de Alfredo, um ex-aluno meu que há anos não nos falávamos. ‘Eu sei como fazer poços de água", disse ele, "se quiser posso ensiná-los’.

Que sorte, hem?
Não, eu não acredito na casualidade

Adolfo Peréz Esquivel conheceu muitas crises durante sua vida. E ele sempre as enfrentou "pegando na massa" e pagando pessoalmente quando a vida e a dignidade dos mais fracos estão em jogo. Porém, também para ele a pandemia da Covid-19 representa um evento inédito que ele tenta ler à luz de seu apaixonado compromisso civil e de sua fé "franciscana".
Como está sendo enfrentada a pandemia na América Latina?
Esquivel: A Covid-19 se espalhou por todos os países da América Latina com sérias consequências. Os ambientes sociais mais afetados são os mais pobres, onde há falta de água, higiene e alimentação. Refiro-me às villas misérias, favelas, callampas, tugurios: a pobreza muda de nome em todos os países, mas em todos os lugares ela tem o mesmo rosto. O governo argentino está tentando dar ajuda e tem tomado medidas especiais de saúde nos bairros mais pobres. Mas, apesar da grande solidariedade social, os esforços nunca são suficientes. O presidente disse: "uma economia pode ser recuperada, uma vida não pode". A vida do povo tem prioridade". Isto tem ajudado a conter e diminuir o andamento da propagação do vírus através de medidas de higiene, controle sanitário e isolamento. Mas essas mesmas medidas têm tido sérias repercussões nas atividades comerciais, culturais, educacionais e religiosas, onde a alta concentração de pessoas gera medo de contágio. A "Comisión Provincial por la Memoria", à qual presido, monitora a situação nas prisões e delegacias através do "Comité contra la Tortura". Prisões superlotadas são como depósitos humanos e em tais condições ninguém pode sair bem delas. O fato de estarem cumprindo uma pena e sendo privados de sua liberdade não deve significar que os prisioneiros percam seus direitos como cidadãos. Tem havido tumultos em várias instituições penais, justamente por causa da falta de atendimento à saúde e da repressão exercida pelos guardas prisionais em face dessas demandas.

Além da emergência sanitária há a social.
Esquivel: Em todo o continente latino-americano, como no resto do mundo, as consequências da pandemia para a saúde representam um forte condicionante para o desenvolvimento econômico e social: milhões de mortes e um alto índice de desemprego e pobreza. A situação é agravada pela forte pressão exercida sobre o povo por causa da "dívida externa". É uma situação que pode levar o mundo a uma "pandemia de fome". Este perigo deve ser enfrentado e deve-se preparar em tempo. Estamos no fim de uma era da humanidade. É preciso, portanto, reconsiderar os caminhos a seguir, levando em conta o que as consequências da pandemia. Precisamos saber o que fazer no "dia seguinte" e começar a construir novos paradigmas de desenvolvimento humano.

O que está acontecendo com os povos indígenas da Amazônia?
Esquivel: As comunidades indígenas da Amazônia lançaram um apelo urgente por causa da violência que estão sofrendo e pela destruição do meio ambiente causado pelos incêndios da floresta assim como a devastação da fauna e da biodiversidade. Eles têm denunciado a perseguição que sofrem dos latifundiários, muitos dos quais contratam quadrilhas armadas para tomar a terra e expulsar os povos indígenas, condenando-os à fome e à extinção.

O Papa Francisco disse várias vezes que ninguém se salva sozinho.
Esquivel: O Papa apela à consciência e ao coração dos poderosos e diz que "ninguém se salva sozinho". Para construir uma sociedade onde o direito e a igualdade sejam válidos para todos, é necessário difundir a cultura da solidariedade.

Solidariedade entre os homens, mas também com a natureza. É este o sentido da iniciativa da Constituinte para a Terra que o senhor promove?
Esquivel: A Constituinte para a Terra, criada por iniciativa de Raniero La Valle, responde à necessidade da humanidade de gerar novos caminhos para refundar o "contrato social", baseando-o em um novo constitucionalismo mundial que garanta o respeito aos direitos fundamentais, como a saúde, a educação, a paz e o meio ambiente. O Papa Francisco explica isso bem na Encíclica Laudato si’, ao lembrar a responsabilidade de cada um como guardião da casa comum, enfatizando a urgência de restaurar o equilíbrio entre a Terra Mãe e os bens destinados ao desenvolvimento do ser humano. Devemos ter em mente que o homem não é o patrão da natureza: somos parte dela e devemos respeitá-la, cuidar dela para o bem de toda a humanidade. A comunidade internacional, no final da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu através da ONU códigos de conduta, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pactos e protocolos, a fim de estabelecer regras de convivência entre as pessoas e os povos. Infelizmente, há países que não os respeitam. Basta pensar na grave situação vivida por pessoas sujeitas à violência, refugiados fugindo de seus países, vítimas de conflitos armados, fome e mudanças climáticas. Muitos homens, mulheres e crianças perdem suas vidas no mar, que se tornou a vala comum de milhares de refugiados que deixam suas terras em busca de novos horizontes de vida e esperança. O Estatuto de Roma de 1998 criou o Tribunal Penal Internacional, responsável por julgar aqueles que cometem crimes contra a humanidade. É hora de reformar esta instituição para que ela também possa processar crimes contra a natureza, uma vez que atualmente não existe um quadro jurídico que regule os crimes ambientais. É urgente proteger bens como a água, rios e mares, florestas, fauna e biodiversidade, que são a grande riqueza que a Mãe Terra nos oferece e que hoje mais do que nunca estão em perigo.

Para proteger nossa saúde, todos esses meses experimentamos o que significa ser privados de certas liberdades. O que essa experiência pode nos ensinar?
A pandemia da Covid-19 nos apresentou situações sem precedentes em nível planetário. Atualmente não existem vacinas ou antídotos para derrotar a Covid-19. Países com grandes recursos econômicos e científicos também são vítimas da pandemia. As únicas formas identificadas até agora para conter a propagação da pandemia têm sido a distância e a tomada de medidas higiênicas em casa e em outros lugares que frequentamos. Tudo isso não deve ser visto como uma perda de liberdade, mas como algo necessário para nos proteger e proteger os outros.

A Covid-19 tem exposto as limitações e fragilidades dos nossos modelos de desenvolvimento. Como podemos evitar cometer os mesmos erros?
Esquivel: Diante de sociedades marcadas pelo individualismo e pelo consumismo, diante de megalópoles com altíssima densidade populacional e problemas estruturais entre ricos e excluídos, os pobres, é preciso promover uma cultura de solidariedade e de partilha de bens com os mais necessitados. Não devemos esquecer que o problema dos outros é um problema para todos.

Qual é a sua oração neste período conturbado?
Esquivel: Precisamos da oração para caminhar pela vida. É por isso que eu invoco o nosso Pai para me conceder a força do espírito. As outras preces que me acompanham são a de São Francisco: "Senhor, fazei de mim um instrumento de paz", e a dos irmãos da fraternidade de Charles de Foucault: "Meu Pai, eu me coloco em tuas mãos".

Há esperança para o futuro?
Esquivel: Um poema de Antonio Machado diz: "viajante, não há caminho, o caminho se faz caminhando". Minha esperança está nos jovens que devem descobrir a si mesmos e descobrir os caminhos da vida, da espiritualidade, dos valores. Eles devem saber que entre as luzes e sombras da existência há sempre a esperança de construir um outro mundo mais justo e fraternal. É necessário trazer à tona os rios subterrâneos, aqueles que não fluem para a superfície, mas que existem e que em certos momentos da história dos povos adquirem força e emergem, arrastando no seu fluxo tudo o que encontram. Portanto, os jovens, homens e mulheres, devem deixar de ser espectadores. Eles devem tornar-se protagonistas de suas vidas e construtores de sua própria história. O Papa Francisco os desafiou dizendo: "hagan lío", "façam-se ouvir". Os jovens devem ser como os rios subterrâneos que emergem com a força da vida e da esperança.
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Fonte:  https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2020-05/entrevista-esquivel-nobel-paz.html

CRUZAMOS A LINHA DA DEMOCRACIA


 — Foto: Lula

Cientista política diz que na democracia não se governa apenas para os seus: “Vivemos um dos momentos mais tristes da nossa história”


Por Adriana Abujamra — Para o Valor, de São Paulo

29/05/2020


Já era noite em Nova York. A cientista política Ilona Szabó lia; a filha, Yasmin, dormia; e seu marido, o também cientista político canadense Robert Muggah, estava ao computador. Lá pelas tantas, ele deu um salto e anunciou num fôlego só: “Empacote tudo, vou buscar o carro, a gente vai para o Canadá”.

Muggah acabara de descobrir que as fronteiras entre os dois países seriam fechadas. Ilona o convenceu a partirem no dia seguinte, bem cedo. Só na estrada o casal teve tempo de explicar para a filha o motivo da correria e buscar, por telefone, um lugar para se hospedar em uma cidadezinha próxima a Toronto, onde vivem os pais do cientista político.

Àquela altura, meados de março, os Estados Unidos eram o epicentro da pandemia de covid-19. Quase ninguém queria recebê-los. Apenas um locatário se prontificou, mas o contrato acabaria no fim deste mês. “Foi traumático. Nossa vida estava toda acertada em Nova York. Estamos aqui de quarentena, sabe-se lá até quando. Não faço ideia do que vamos fazer depois”, diz Ilona, rosto lavado, camisa preta, sentada de costas para a porta do escritório improvisado em um dos dormitórios. A maior parte de seus pertences ainda está em caixas e malas. 

 Ilona e Yasmin, em casa, no Canadá: “Carregava comigo o ‘soft power’ brasileiro, criava empatia. Mas agora há decepção com o Brasil”, diz a cientista política — Foto: Reprodução

Ilona e Yasmin, em casa, no Canadá: “Carregava comigo o ‘soft power’ brasileiro, criava empatia.
Mas agora há decepção com o Brasil”, diz a cientista política 
— Foto: Reprodução

Um de seus maiores desafios tem sido conciliar o trabalho com a agenda escolar da filha. Com 6 anos, Yasmin não tem autonomia nem paciência para aguentar horas a fio de aulas on-line. Já o cuidado com a casa não é novidade. Prescindir de ajudantes é praxe em muitos países fora do Brasil. Ilona já morou em seis antes do Canadá - Letônia, Suécia, Suíça, Noruega, Colômbia e Estados Unidos. Bastava dizer de onde vinha para fazer sorrir o ser mais sisudo. Não mais.

Os comentários que ouve hoje são de espanto: pela maneira com que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem lidado com a crise sanitária, com os direitos humanos e o meio ambiente. “Carregava comigo o ‘soft power’ brasileiro, criava empatia. Mas agora há uma decepção com o Brasil. Essa perda imaterial é brutal.” Ilona saiu do Brasil no ano passado, de forma menos brusca do que a fuga para o Canadá, mas nem por isso menos traumática.

A cientista política tem 42 anos, é mestre em estudos de conflito e paz pela Universidade de Uppsala, na Suécia, e é autora de dois livros: “Drogas, a História que Não Te Contaram” (2017) e “Segurança Pública para Virar o Jogo” (2018), ambos publicados pela Zahar. É fundadora e diretora-executiva, com o marido, do Instituto Igarapé, que se dedica a políticas públicas para a redução da violência. A entidade atua no Brasil e também em países da América Latina, dos Estados Unidos, da Europa e África.

Nos termos de Bolsonaro, porém, a cientista política é “abortista” e “defensora da ideologia de gênero”, como disse no pronunciamento que fez após o estrondoso pedido de demissão de Sergio Moro, em abril, e novamente na semana passada, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a divulgação dos vídeos da reunião ministerial de 22 de abril. No encontro, o presidente defendeu o armamento da população. “Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais. (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado.”

“Tudo indica que ele [Bolsonaro] está armando sua base e incitando a paranoia, para recorrer ao apoio dela no caso de [...] tentativa legítima de afastá-lo"

Para Ilona, não deixa de ser irônico. “Desde o retorno da democracia, nunca vimos um líder mais ditatorial do que o próprio Bolsonaro”, afirma ela. “Seu conceito niilista de liberdade, que prega o vale-tudo, foge a qualquer civilidade. Tudo indica que ele está armando sua base e incitando a paranoia, para recorrer ao apoio dela no caso de qualquer tentativa legítima de afastá-lo do poder. Entre os seus apoiadores mais radicais, já se fala em guerra civil. Bolsonaro promove o caos para então instaurar medidas de exceção.”

A insistência do presidente em se referir a ela como “abortista”, diz Ilona, é uma tentativa de personalizar todas as causas anticonservadoras em uma pessoa só e, assim, usá-la para agitar três segmentos do seu eleitorado: os religiosos, homens de uma geração que se sente ameaçada pelo avanço das mulheres na sociedade e os armamentistas.

No ano passado, ao participar de um evento no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, Ilona teve a chance de conversar com Sergio Moro, como sempre fez com todos os ministros da Justiça desde Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Moro ficou conhecido pelo combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Achei que eu poderia contribuir tecnicamente, já que segurança pública não era seu forte.”

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Ilona e Sergio Moro no Fórum Econômico Mundial, em Davos — Foto: Reprodução

Pouco depois do evento na Suíça, Ilona recebeu um e-mail formal do então ministro. Era um convite para integrar uma vaga de suplente no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Dias depois, Ilona foi a Brasília para uma conversa. A diretora do Igarapé é conhecida por posições contrárias à flexibilização do porte de armas e redução da maioridade penal e é defensora da legalização das drogas. Ou seja, uma agenda progressista, oposta à de Bolsonaro.

Mesmo ciente de que não seria fácil, ela aceitou. Considerava vital garantir espaço de diálogo com o governo. A caminho da reunião, sua nomeação foi publicada no “Diário Oficial”. Logo um expoente do lobby das armas tuitou, qualificando a escolha como “absurda”. Em minutos a notícia viralizou. Quando sentou-se à mesa com Moro, a “hashtag” “#Ilona Não” estava entre os assuntos mais comentados do Twitter. “Foi uma reunião tensa, estranha, tomada por essa história”, diz, antes de dar um gole em uma garrafinha de água que tem ao lado da cadeira.

Naquele momento, sua premência era discutir o excludente de ilicitude - que isenta agentes de crimes cometidos em determinadas situações, como em legítima defesa - e suas implicações práticas. Em um país onde a polícia já mata muito, aumentar esse poder discricionário lhe parecia um desastre. No meio de sua explanação, o então ministro recebeu um recado de Bolsonaro pedindo que fosse ao seu gabinete. Moro interrompeu a reunião antes do previsto, desculpou-se e saiu da sala. No dia seguinte, por telefone, explicou a dificuldade em sustentar sua indicação e a desconvidou.

 Ilona em seminário sobre segurança promovido pelo  Futura e “Extra” — Foto: Publius Vergilius/Fundação Roberto Marinho
Ilona em seminário sobre segurança promovido pelo Futura e “Extra” 
— Foto: Publius Vergilius/Fundação Roberto Marinho

“A intolerância naquele momento ficou muito clara. Dali em diante foi só ladeira abaixo.” Integrante do Conselho de Segurança Pública e Defesa Social, Ilona foi informada, por WhatsApp, de que o colegiado não estaria mais aberto à participação civil. O presidente baixou uma série de decretos para afrouxar controles sobre armas e munições, seis deles em um único dia. Ignorou o que a maioria dos especialistas mostra: o aumento do número de armas em circulação leva a mais crimes.

Em resposta às críticas, Bolsonaro chamou-a de “abortista”, como tornou-se praxe. “Tem gente que me diz: ‘Você trabalha com temas polêmicos’. A agenda que defendo de controle de armas, e falo com a maior tranquilidade, é a mesma que o Exército defende. Pergunta se os generais estão felizes com o que está acontecendo.”

Mesmo quem concorda com seus argumentos, observa, evita se pronunciar com receio de sofrer represália. “Não posso nem nomear com quem converso, não quero colocar ninguém em apuros”, diz, rindo. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo, antes de ser demitido por Bolsonaro foi atacado tanto pela ala ideológica quanto por apoiadores mais radicais do governo por recebê-la. 

 Evento promovido pelo Instituto Igarapé, em que é diretora — Foto: Reprodução
Evento promovido pelo Instituto Igarapé, em que é diretora — Foto: Reprodução

No ano passado Ilona passou a sofrer ataques e ameaças, que extrapolaram as redes sociais, como e-mails com fotos de corpos. A sede do Igarapé funcionava em uma casa numa rua tranquila do bairro de Botafogo, no Rio. Com uma equipe majoritariamente feminina, sair à noite depois do expediente passou a ser temerário. “Discurso de ódio incita a a violência. Você nunca sabe. Tem o caso da [vereadora] Marielle [Franco, assassinada em março de 2018], tem as milícias.”

Para minimizar os riscos, trocaram a casa do instituto por uma sala em um prédio, e Ilona passou a evitar dar entrevistas ou falar publicamente sobre temas polêmicos. “Naquele momento ficou muito difícil. É tanta intimidação, tanta loucura. A gente faz um trabalho independente, não há nenhuma instituição na retaguarda para nos proteger.” Quando recebeu uma bolsa de estudos da Universidade Columbia, em Nova York, não teve dúvida: fez as malas e se mudou para lá com o marido e a filha.

Difícil entender, afirma, como muitas pessoas - da sua família inclusive -, mesmo vendo “por tudo que tem passado”, seguem na defesa do presidente. “É como se estivessem intoxicadas, contaminadas por ódio, doentes da alma. Tenho pensado muito nisso, em como resgatar a humanidade das pessoas.”

 Cientista política participa do seminário Reage, Rio!, em 2018 — Foto: Marcos de Paula/Agência O Globo
Cientista política participa do seminário Reage, Rio!, em 2018 
— Foto: Marcos de Paula/Agência O Globo

“Olha quem está aqui!”, interrompe a conversa para aconchegar Yasmin, que acaba de entrar. Embora se considere “péssima cozinheira”, Ilona tem dado uns palpites na cozinha aos fins de semana. A filha diz que outro dia fez com a mãe um bolo de cenoura com “muita, muita cobertura de chocolate” e outras receitas mais saudáveis, como um inusitado brownie de abacate. Tivesse a tela cheiro, seria possível sentir o aroma do almoço sendo preparado pelo marido, o titular do fogão. Depois de mais um pouco de conversa, a menina se despede. “Fecha a porta para a mamãe, amor”, diz Ilona. “Minha filha veio para me salvar, sabe? A gente vai endurecendo, perdendo a leveza, e ela me traz de volta o lúdico”.

Desde que saiu do Brasil, outras pessoas de sua equipe passaram a cuidar mais de perto da agenda da segurança pública, e Ilona começou a se aprofundar em novos temas, como espaço cívico e mudanças climáticas. Sua avaliação é que o espaço cívico - esfera entre o Estado, empresas e família em que cidadãos e entidades da sociedade civil se organizam, debatem e agem- está se fechando no Brasil. Ela tem colhido depoimentos de pessoas que passaram por situações semelhantes à sua para fazer uma espécie de tipologia das situações encontradas no país.

“Não há dúvidas de que cruzamos a linha democrática. Em uma democracia você não governa apenas para os seus, não cala seus críticos, não ameaça a saúde e bem-estar de sua população, isso é inaceitável. Vivemos um dos momentos mais tristes da nossa história.”

Do ponto de vista prático, prossegue, gesticulando de forma mais enfática, pode-se argumentar que as instituições continuam funcionando, já que o STF barrou várias medidas tomadas pelo presidente. O problema, diz, é que até as ações serem julgadas, as medidas permanecem válidas, gerando insegurança jurídica.

No dia seguinte à reunião de 22 de abril, em que Bolsonaro defende o armamento da população e com uma grave crise sanitária no Brasil, o governo editou portaria autorizando cada cidadão a comprar mais de 6 mil munições por ano (300 unidades por mês, a depender do calibre do armamento). O limite era de 200 cartuchos. Como o decreto é recente, não há números exatos, mas Ilona diz acreditar que a norma abriu brecha para provocar um pico de compras de armas e balas, interrompida apenas quando o Supremo barrou a medida. Quando ela perdeu a validade, parte do estrago já pode ter sido feito.

O presidente também participou de manifestações contra as instituições. A população está se armando. O acampamento do grupo de apoiadores de Bolsonaro, os “300 do Brasil”, foi chamado de “milícia armada” pelos procuradores.

Ilona lembra que em meados do ano passado escreveu um artigo em que apontava um paralelo entre o Brasil e a Venezuela. O país vizinho não desarmou seus cidadãos. Na verdade, o presidente Hugo Chávez (1954-2013) iniciou a criação de milícias civis, de cerca de 1 milhão de pessoas, para “proteger” seu governo. O fechamento do espaço cívico, diz a cientista política, é prioridade para governos autoritários aumentarem seus poderes, como ocorreu nas Filipinas, Hungria, Polônia e Rússia. 

“Acredito que o Brasil é hoje uma democracia eleitoral, e não liberal, no sentido dos direitos plenos. Estamos em um ponto de inflexão. Ou as instituições reagem agora, ou voltar atrás depois será complicado.”

Ilona tem projetos para lançar um podcast, escrever um livro e produzir um documentário, misto de experiência pessoal e pesquisa. Seu intuito é falar para além da bolha dos que pensam como ela e despertar nas pessoas o desejo de atuar. Diz que sua atuação cívica veio aplacar o incômodo de viver numa sociedade desigual.

Filha de um engenheiro naval e uma jornalista, recebeu o nome Ilona Szabó em homenagem à avó materna, que veio da Hungria para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seus avós gerenciavam um hotel que recebia gente de toda parte, esportistas, atores, diretores, ícones da música nacional e internacional. Circular entre aquelas pessoas de todo canto, além de ter uma mãe que havia morado no exterior e falava várias línguas, despertou na menina o desejo de conhecer o mundo.

Com 17 anos, conseguiu uma vaga de intercâmbio para estudar nos EUA. Como já falava inglês e conhecia a cultura americana, decidiu escolher outro país. Girou o globo e, para surpresa do pai, que derrubou os talheres no chão, apontou para a Letônia, no Leste Europeu. De Nova Friburgo (RJ), cidade pacata, diz, aterrissou na capital da música. “Entendi o que era gótico, funk, fiz amigos gays. Abri a cabeça.” Na casa onde viveu, a calefação não funcionava direito e a comida era racionada. Além do frio, Ilona enfrentou um país em transição devido o colapso do bloco soviético. Nas ruas, havia dois idiomas: russo e letão, que aprendeu em quatro meses.

De volta ao Brasil foi morar no Rio para estudar. Achava estranho sua turma viver rodeada por favelas sem nunca ter ido até lá. Quando convenceu uma amiga, funcionária de uma secretaria do governo, a levá-la àquelas comunidades, teve a chance de conviver com meninos da Fundação Casa, centro de atendimento a jovens infratores. Eles tinham sonhos parecidos com os seus, mas não as mesmas oportunidades de concretizá-los. A experiência, diz, foi fundamental para entender onde queria atuar.

Ilona dava aulas de inglês para pagar as contas e conseguiu com uma de suas alunas uma vaga em um banco de investimento. Os colegas se referiam a ela como “aquela menina estranha que morou na Letônia e gosta de favela”, diz, rindo. Um dia leu um artigo do antropólogo inglês Luke Dowdney, fundador da ONG Luta Pela Paz, em que comparava crianças soldados a crianças do tráfico. Estava decidida a conhecê-lo. Mesmo já tendo conseguido uma bolsa de mestrado em estudos de conflito e paz na Universidade de Uppsala, na Suécia, falou com muitas pessoas e o encontrou em uma festa na casa de uma conhecida.

Após a conclusão do mestrado e de um curso de pós-graduação que emendou na Noruega, os dois foram finalmente trabalhar juntos no Viva Rio. Em 2005, Ilona foi alçada para coordenar uma das maiores campanhas de desarmamento da história do Brasil, para a qual foram criados centenas de postos de coletas de armas civis. 

Ilona e o então deputado federal Jair Bolsonaro foram convidados para um debate. Ela mal conseguiu falar. Diz que foi interrompida a todo instante pelo parlamentar. Quando veio o referendo sobre portes de armas no Brasil, em 1993, a Associação Nacional de Rifles da América foi agressiva no uso de propaganda no Brasi.

“Não tenho problema em conversar com quem pensa de forma diferente. Gosto de um bom debate, feito de dados e argumentos, mas o que passei lá [em 2005], e o que a gente vê hoje, é escracho. Entendi o que era propaganda e vi a opinião pública sendo manipulada.” Até seu professor de ioga bradou que queria garantir seu direito de carregar uma pistola na cintura. “Na hora pensei, lascou-se”.

Em 2011 Ilona e Muggah fundaram o Igarapé. Como o canadense veio para o Brasil? “Importei o Bob”, brinca. Antes do casamento, impôs uma condição: que ele se matriculasse em aula de dança. “Sou forrozeira, pé de serra, adoro samba de raiz.” Inclusive, diz, esse é um de seus segredos para manter a sanidade na quarentena.

A porta se abre e sua filha avisa que o almoço está servido. “Já vou, paixão.” Depois que a menina se afasta, lembra que o Igarapé completará dez anos em 2021. Fazendo retrospectiva de seu percurso, avalia que a experiência em banco antes de entrar para o setor social foi essencial. “Sou idealista, mas extremamente pragmática, entendo como gira o mundo. Os projetos de construção de política pública do Igarapé são feitos com todos os ‘stakeholders’ à mesa.”

Para conter a degradação da Amazônia, não será diferente. “Em um momento em que o governo federal está jogando contra, oferecendo prêmio aos grileiros - que roubam terras públicas, em geral associados a crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e até assassinatos -, é vital que bancos e fundos assumam seu papel.”

Ela avalia que a meta de zerar o desmatamento ilegal é chave para a imagem do Brasil no exterior, para a retomada de investimentos estrangeiros e acordos comerciais.

Na ruidosa reunião ministerial de 22 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu aproveitar a pandemia para afrouxar normas ambientais e “ir passando a boiada”. A fala de Salles repercutiu também na imprensa internacional. “Se, com as queimadas do ano passado, nossa imagem e o impacto para os negócios já foram ruins, neste ano, provavelmente, veremos embargos de grande dimensão. O país sofrerá muito mais, num momento em que a economia está muito fragilizada. Ou lideramos a luta contra as mudanças climáticas, com total apoio do setor empresarial e financeiro, ou o Brasil será um país intocável para investidores estrangeiros e acordos comerciais.”

O objetivo de seu trabalho, diz, é mapear os crimes ambientais, a dinâmica com o crime organizado e apontar ferramentas tecnológicas e informações necessárias para que o setor econômico possa ter certeza de que não está financiando desmatamento ilegal. “Falar sobre modelos econômicos sustentáveis não é papo de ‘bicho-grilo’. Economia predatória não é mais aceitável”. 

Estudos recentes, prossegue, mostram a relação entre o avanço do desmatamento e a transmissão de doenças infecciosas. Mapearam centena de vírus na Amazônia. O desequilíbrio florestal pode desencadear novas pandemias. Se tem algo positivo na crise sanitária atual, diz, é que a questão do clima pode ser trazida a valor presente. “As pessoas não davam muita bola, mas agora estão entendendo o que é perder o controle da vida e viver sob fortes restrições. As privações de agora são fichinha perto do que pode vir com um planeta superaquecido, e o relógio está correndo. Tenho uma filha pequena, não vou morrer dizendo para ela que não fiz o que era possível fazer.”

O desejável, prossegue, é que, quando a pandemia passar, as pessoas possam questionar seus hábitos. “Trabalho no setor social, não ganho mal, mas tenho que fazer escolhas. Sempre dei prioridade para consumir experiências, não coisas. Da vida a gente carrega o que viveu”, diz, já de pé, com o laptop na mão, e convida a reportagem para um passeio pela casa. Pelo trajeto apresenta Muggah, e logo chega à cozinha. Tão perto, tão longe, exibe o menu do dia: ravióli al burro e sálvia.
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domingo, 24 de maio de 2020

Professor da Universidade de Stanford, o pesquisador austríaco lança no Brasil livro sobre a história da desigualdade e fala sobre o impacto da covid-19 no mundo

Desigualdade
Em primeiro plano, a favela do Parque Real e a favela do Panorama; ao fundo, 
predios da Marginal Pinheiros Foto: Filipe Araujo/Estadão

Peste Negra reduziu desigualdades mas o coronavírus vai aumentá-las, diz historiador Walter Scheidel

André Cáceres, O Estado de S.Paulo
23 de maio de 2020

Peste, guerra, fome e morte. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse podem ter significados variados a depender da crença de cada um, mas para o historiador austríaco e professor da Universidade de Stanford Walter Scheidel essas condições significam uma coisa ao longo dos séculos: redução das desigualdades econômicas. 

Em seu mais recente livro, Violência e a História da Desigualdade - Da Idade da Pedra ao Século 21 (ed. Zahar), Scheidel defende que o nivelamento das rendas só se deu, em toda a história humana, por meio dessas grandes catástrofes, que ele chama de Quatro Grandes Niveladores — uma dos poucas exceções, de acordo com o pesquisador, foi a América Latina nos anos 2000, que reduziu disparidades por métodos pacíficos e democráticos, mas esse processo não se provou duradouro.  

Scheidel utiliza-se de farta documentação histórica para demonstrar como as guerras, epidemias, crises e revoluções foram eventos niveladores. Após a Peste Negra, por exemplo, o contingente de trabalhadores ficou tão reduzido que a mão-de-obra tornou-se valiosa ao ponto de reduzir as injustiças sociais durante vários séculos. Mas esse tipo de nivelamento não deve acontecer, segundo ele, após a atual pandemia de covid-19.  

Leia abaixo a entrevista que o historiador Walter Scheidel concedeu por videochamada ao Estadão:
Walter Scheidel
O historiador austríaco Walter Scheidel Foto: Roger Cremers/Zahar
Há alguma perspectiva de que a atual pandemia provocada pelo novo coronavírus traga efeitos similares de redução de desigualdades ao das grandes epidemias do passado?
Estou muito cético quanto a isso por várias razões. O maior motivo é que a atual pandemia será muito menos severa em termos de mortalidade do que as grandes pestes do passado. Mesmo no pior cenário, a mortalidade será muito menor, em termos de porcentagem da população, e deve afetar ainda menos a força de trabalho, porque a maioria das vítimas são pessoas mais velhas. Salários não devem subir como resultado dessa pandemia, porque a mão-de-obra não se tornará escassa. Então esse efeito não deve aparecer desta vez. Há uma grande quantidade de motivos para crer que a pandemia deve aumentar em vez de reduzir a desigualdade, pelo menos a curto prazo, o que já estamos testemunhando. Há certos grupos de pessoas que estão relativamente protegidas, seus empregos estão seguros, eles podem continuar a trabalhar, e outras pessoas que estão muito mais expostas em determinados setores ou perdendo seus empregos. Então o desemprego está mal-distribuído pela população, como resultado disso a disparidade deve aumentar. Você a vê entre crianças e estudantes, alguns capazes de estudar online e outros sem acesso a esses recursos, e isso deve aumentar as injustiças educacionais também. Na crise de 2008, os ricos perderam inicialmente porque o valor de seus investimentos decaiu, mas eles os recuperaram em um período razoavelmente curto de tempo. Já se vê tendências semelhantes nas bolsas de valores, que não estão indo tão mal, então há uma boa chance que, mais uma vez, os ricos se recuperem mais rapidamente que a maioria da população. Isso deve aumentar a desigualdade. Então ainda que haja algum potencial de nivelamento, isso depende de como políticos, legisladores e eleitores responderão a essa crise e seus efeitos. Qualquer tipo de ruptura tem o potencial de balançar as coisas, e um resultado possível disso é que mais pessoas abracem políticas progressistas de redistribuição de renda, oferecendo mais proteção social e acesso à saúde aos trabalhadores ou aumentando impostos para os ricos. Isso é uma possibilidade, e certamente haverá partidos políticos que tentarão converter a crise em uma motivação para esses programas, mas também haverá uma resistência conservadora considerável, e, no longo prazo, dependerá de quem tem a vantagem. Não é algo que será decidido este ano, mas deve se arrastar por vários anos. 

O mundo contemporâneo parece estar repleto de guerras, revoluções, crises e epidemias, mas por que não vemos esse efeito acontecer novamente hoje em dia?
Há muitas guerras, revoluções e epidemias hoje, isso é verdade em certa medida, mas se compararmos com grandes rupturas do passado, o que estamos vivendo atualmente no mundo não chega perto da magnitude do que já passamos. Apenas guerras muito grandes, como as mundiais, reduziram as desigualdades na Europa, América ou Ásia. O fato de a América Latina nunca ter passado por nada como as guerras mundiais ajuda a explicar por que sua disparidade ainda é muito alta. Nunca houve rupturas realmente violentas. O mesmo é verdadeiro para revoluções, não temos nenhuma grande revolução desde a maoista e suas derivadas em meados do século 20. Estados não entram mais em colapso. Eles eventualmente caem em certas partes do mundo, como a África Central e o Oriente Médio, mas em nenhum outro lugar, nem mesmo na Venezuela nesse momento, pelo fato de os Estados serem muito mais resilientes do que eles costumavam ser. E essa pandemia é muito menos severa do que a Gripe Espanhola há um século ou as grandes pragas do passado. Então eu acho que depende muito do quão grave e disruptivo um evento de crise é. Tenho pensado muito sobre isso, porque eu falo em meus livros sobre os quatro grandes niveladores, e eu acho que no mundo temos hoje quatro grandes estabilizadores, que previnem deslocamentos mais traumáticos (que poderiam ter um efeito de redução de desigualdade) de ocorrer. Um é que boa parte do mundo é muito mais rica do que era, o que evita colapsos sociais ou guerras civis, muito mais comuns no passado. O segundo são as redes de seguridade social, que, claro, estão desenvolvidas desproporcionalmente em diferentes partes do mundo, mas mesmo no Brasil há algum grau de segurança que não havia antes, e isso é ainda mais evidente em outros países, evitando que a pobreza chegue a níveis que façam as pessoas se radicalizarem. Também há a habilidade de bancos centrais criarem dinheiro para manter a economia girando, o que não era possível na década de 1930, por exemplo, durante a Grande Depressão, o que provocou um resultado muito diferente. E o quarto fator consiste na ciência moderna e na tecnologia, que ajudam a estabilizar a ordem existente, seja o fato de podermos trabalhar remotamente pela internet, o que não poderíamos fazer há dez ou vinte anos, ou o fato de sermos capazes de sequenciar o RNA do vírus em apenas algumas semanas e termos mais de uma centena de medicamentos ou tratamentos em teste pelo mundo. A ciência é hoje tão poderosa que tem o potencial de nos levar para fora dessa crise em relativamente pouco tempo. E se ela o fizer, então a ordem é novamente estabilizada. Então essa é uma resposta bem longa para a questão de por que não há grandes rupturas hoje como havia no passado. Sociedades, economias e tecnologias evoluíram de modo a manter a ordem existente. Quanto maior a estabilidade, mais a disparidade é favorecida, porque há menos pressão por mudanças. É isso que essencialmente vemos desde o fim da guerra fria, cada vez mais, então creio que a perspectiva de qualquer transformação radical por meio de grandes rupturas está ficando cada vez menos provável. 

O sr. menciona brevemente a América Latina dos anos 2000 como um caso bastante único de redução de desigualdades sociais sem grandes choques ou rupturas, mas boa parte das conquistas sociais obtidas no início do século foram se perdendo nos últimos anos. O que o caso latino-americano pode nos dizer sobre desigualdade social no século 21?
O caso latino-americano é fascinante, porque, como eu disse, não houve grandes choques na história recente, o que explica que a desigualdade, que é historicamente alta por conta do colonialismo e outros fatores, tenha se mantido elevada durante o século 20, enquanto reduziu em outras partes do mundo. E depois de 2000 vemos muitos países experimentarem uma redução pacífica de injustiças, o que foi muito interessante, porque parece um contraexemplo à minha tese, de que rupturas violentas são necessárias para que isso ocorra. O que houve na América Latina nesse período foi o resultado de uma combinação incomum de circunstâncias favoráveis. Houve alguma recuperação de crises econômicas anteriores, uma forte desregulamentação nos anos 1990, abrindo as economias para o mundo, mais investimento em educação, transformações políticas e a explosão das commodities na China, então as exportações cresceram e beneficiaram determinados setores da população. E todos esses fatores se alinharam na medida certa para reduzir a disparidade, não drasticamente, mas de forma significativa. E não estava claro naquela época se esse processo era sustentável e poderia se manter por muito tempo. E ele não pôde. Primeiro por causa da guinada econômica no início dessa década, e também por conta da reação política de forças conservadores para derrubar os proponentes de mudanças progressistas no Brasil e em outros países. E, é claro, houve locais em que os próprios progressistas se radicalizaram, como na Venezuela e no Equador, e houve reação política contra isso. Então há muitas razões para explicar por que esse processo não pôde ser sustentado pelos últimos anos, e agora a situação é ainda pior, porque a atual crise deve amplificar esses problemas. Eu não tenho esperanças de ver uma nova redução de desigualdades na América Latina em um futuro próximo, graças às consequências da crise do coronavírus. 

É possível haver no futuro mecanismos que favoreçam cenários pacíficos de redução de desigualdades?
É possível teoricamente, mas não parece acontecer muito na prática, então seria ao menos muito difícil. Não é que as pessoas nunca reduziram a disparidade por meios pacíficos, não está limitado ao exemplo latino-americano. Tem acontecido em pequenas proporções por todo o mundo. É possível, mas nunca ocorre em grande escala. Então, se o que você estiver procurando é uma redução maciça da desigualdade em um período curto de tempo, você vai precisar de um choque violento. Se você colocar suas esperanças em mudanças políticas pacíficas, a transformação será gradual e mais lenta, e por isso enfrenta um grande risco de ser desarmada por obstáculos como crise econômica, reação política e outros fatores que interferem nesse processo e o tornam muito mais difícil. Dito isso, há sociedades no mundo que são tão injustas hoje que não é preciso muito esforço para reduzir um pouco de sua disparidade. Se você vive na Suécia, não há muito o que se pode fazer, porque a desigualdade já é muito baixa. Mas se você vive no Brasil, na África do Sul ou nos Estados Unidos, há medidas que se pode tomar pacificamente que teriam um efeito real e não seriam terrivelmente radicais ou dramáticas. E a melhor chance que temos é que tais medidas sejam identificadas e implementadas. Certamente temos um modelo no que ocorreu na América Latina nos anos 2000. 

Existe um ponto de equilíbrio no nível de desigualdade de um país que, se atingido, impede ela de voltar a crescer a níveis prejudiciais?
Pode ser que o nível de equilíbrio varie entre países. Nem todos os países são iguais. Se você olhar para países nórdicos que são, ou costumavam ser, muito homogêneos em termos de sua população, poderia ter sido mais fácil há 50 anos estabelecer Estados de bem-estar social altamente redistributivos. Se você vive em sociedades como o Brasil, a África do Sul e os EUA, que são muito mais heterogêneos e diversos, onde há legados de racismo e todo tipo de iniquidade estrutural, o ponto de equilíbrio da desigualdade pode simplesmente ser mais elevado. Talvez não seja possível baixá-lo a níveis escandinavos por causa da maneira pela qual a sociedade está estabelecida. Não quer dizer que seja impossível reduzir disparidades, mas talvez seja necessário ajustar as expectativas do que é politicamente ou socialmente viável em cada contexto. Essa é uma ótima questão que ainda não foi estudada o suficiente, porque não basta apontar para a Dinamarca e perguntar por que não somos como eles, isso não ajuda em nada. Deve-se levar em consideração todas as variáveis. Então a pergunta é: “Qual é o nível realista de desigualdade para o Brasil dadas condições que não mudarão do dia para a noite ou em nossos tempos de vida? O que pode ser conquistado nesse contexto?” Certamente haverá algo a ser feito, apenas não na mesma escala de outros países.
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Fonte:  https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,peste-negra-reduziu-desigualdades-mas-o-coronavirus-vai-aumenta-las-diz-historiador-walter-scheidel,70003310465
 

sábado, 23 de maio de 2020

Requiem pela democracia

 Reunião ministerial de 22 de abril. Foto: Marcos Corrêa/PR

Mais uma vez, depois de tantas, as elites brasileiras preferiram correr o risco de cair na ditadura (quando não a desejaram desde o início) sempre que as classes populares manifestaram a sua aspiração a ser incluídas na nação, a nação que as elites sempre conceberam como sua propriedade privada. A leitura do transcrito da reunião do conselho de ministros do Brasil no dia 22 de abril é uma experiência dolorosa, assustadora e revoltante. O fato de ter sido dado conhecimento público desse vídeo e transcrito é um sinal eloquente de que a democracia ainda sobrevive. Ocorreu no seguimento da denúncia do ex-Ministro Sérgio Moro de que o Presidente tentara interferir com as investigações em curso na Polícia Federal do Rio de Janeiro contra um dos seus filhos por suspeita de graves condutas criminosas. Ao ordenar a divulgação do vídeo, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, inscreveu o seu nome no livro de ouro da breve e tormentosa história da democracia brasileira. Esperemos que o sinal de esperança que ele nos deu seja potenciador do despertar das forças democráticas de esquerda e de direita, o despertar de um sono profundo e inquietante, feito de ignorância histórica e de vaidade míope, um sono que lhes permite sonhar com cálculos eleitorais sem se dar conta da frivolidade de tais intentos quando a própria democracia está por um fio.

Os fascistas nem sequer escondem os seus intentos. O Presidente faz um apelo direto e inequívoco à luta armada. Mais do que um apelo, informa que está disposto a dirigir o armamento de civis à margem das forças armadas. E faz isso ladeado por generais! Está a confessar um crime de responsabilidade e um crime contra a segurança nacional. E nada a acontece. Ao lado do vice-presidente, está sentado impávida e parvamente o então Ministro da Justiça Sérgio Moro, o grande responsável pela destruição da institucionalidade democrática, para o que sempre contou com a cumplicidade das elites e dos seus media. O anúncio do Presidente não só é recebido com sorrisos complacentes de quem o ouve, como vários ministros se esmeram em soltar por conta própria as cloacas do ódio e do preconceito. Para além de outras aleivosias avulsas.

O que se lê é de tal modo torpe que é melhor ler para crer:

Presidente: “É putaria o tempo todo para me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa, oficialmente, e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f. minha família toda de sacanagem, ou amigos meus, porque não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha — que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode o chefe dele? Troca o ministro. E ponto final… Eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais”.

Ministro da Educação (extrema-direita) : “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF. E é isso que me choca… A gente tá conversando com quem a gente tinha que lutar. A gente não tá sendo duro o bastante contra os privilégios, com o tamanho do Estado e é o … eu realmente tô aqui aberto, como cês sabem disso, levo tiro … odeia … odeio o prutido (sic) comunista. Ele tá querendo transformar a gente numa colônia. Esse país não é … odeio o termo “povos indígenas”, odeio esse termo. Odeio. O “povo cigano”. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo”.

Ministro do Meio Ambiente (momento maquiavélico): “porque tudo que agente faz é pau no judiciário, no dia seguinte. Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspeto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas…Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação.”

Ministra da Mulher da Família e dos Direitos Humanos (evangelismo reacionário): “Neste momento de pandemia a gente tá vendo aí a palhaçada do STF trazer o aborto de novo para a pauta, e lá tava a questão de … as mulheres que são vítima do zika vírus vão abortar, e agora vem do coronavírus? Será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral? (dirigindo-se ao Ministro da Saúde) O seu ministério, ministro, tá lotado de feminista que tem uma pauta única que é a liberação de aborto… Porque nós recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro pra colocar nas costas do presidente”.

Ministro da Economia (feira de vaidades): “Eu conheço profundamente, no detalhe, não é de ouvir falar. É de ler oito livros sobre cada reconstrução dessa (Alemanha, Chile). Então, eu li Keynes, é … três vezes no original antes de eu chegar a Chicago. Então pra mim não tem música, não tem dogma, não tem blá-blá-blá”.

Nada disto é novo. Sobre o que disse o Presidente, basta referir que, depois das eleições de 1932, foi assim que se expressou Hitler, invocando a necessidade da ditadura para se defender da ditadura…da democracia. A reunião teve lugar no dia em que o Brasil ultrapassava a casa de 3.000 mortos pelo coronavírus. Este, no entanto, foi um tema ausente. Ou, ainda mais perversamente, pretendeu-se usar a preocupação mediática com a pandemia para fazer avançar a perda de direitos, os casinos, a privatização, o desmatamento da Amazônia e a eliminação das restrições ambientais. O sistema democrático brasileiro está em tamanho desequilíbrio que vive um momento de bifurcação, uma qualquer ação ou omissão política tanto o pode resgatar como afundar de vez.
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(*) Sociólogo, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Publicado originalmente no jornal Público, de Portugal.
Fonte:  https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/05/requiem-pela-democracia-por-boaventura-de-sousa-santos/