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domingo, 31 de julho de 2022

Frei Patrício: ‘Ou nós resgatamos o sentido sagrado da família ou teremos um mundo sempre mais desnorteado’

 


28 de julho de 2022 Por Fernando Geronazzo
Frei Patrício: ‘Ou nós resgatamos o sentido sagrado da família ou teremos um mundo sempre mais desnorteado’ 
Luciney Martins/O SÃO PAULO

Um dos maiores escritores sobre a espiritualidade dos santos carmelitas, Frei Patrício Sciadini, OCD, está em visita ao Brasil para o lançamento do livro “Santos Luís & Zélia Martin – Pais santos gerando santos”, publicado pelas editoras Angelus e Sagrada Família. Na obra, o Sacerdote carmelita fala a respeito do exemplo de santidade dos pais de Santa Teresinha do Menino Jesus, canonizados pelo Papa Francisco em 2015, durante o Sínodo sobre a Família, que teve como fruto a exortação apostólica Amoris laetitia. 

Religioso carmelita, nascido na Itália, Frei Patrício veio para o Brasil após sua ordenação sacerdotal e se naturalizou brasileiro. É autor de mais de 50 obras sobre o assunto. Pregador de retiros e formações para congregações e novas comunidades, desde 2010 vive no Egito, onde é Reitor da Basílica de Santa Teresinha, no Cairo. Em entrevista ao O SÃO PAULO, ele fala sobre a realidade dos cristãos no Egito e das motivações que o levaram a escrever sobre o santo casal. 

O SÃO PAULO – Como tem sido sua experiência no Egito? 

Frei Patrício Sciadini – Este país é maravilhoso, das pirâmides, da multiplicidade de ritos, da convivência com os muçulmanos. São muitos os motivos que abrem o nosso coração a uma visão universal e ecumênica. Tem sido uma experiência muito bonita de atenção às vocações, à vida comunitária. Lá, nós temos dois hospitais e uma creche. Eu nunca havia pensado em um dia trabalhar em um hospital. Depois, descobrimos que, com boa vontade, temos todos os dons para fazer tudo pelo Reino de Deus. 

Como é a presença dos cristãos nesse país? 

Devemos olhar o Egito como um dos berços onde o Cristianismo se desenvolveu. Toda a cultura dos chamados padres alexandrinos, como Orígenes e Cirilo, deu um rosto ao Cristianismo. Também a vida consagrada contemplativa começou no Egito, com Santo Antão. Depois, esse rosto foi se diluindo lentamente com a expansão islâmica, mas as raízes permanecem. Hoje, podemos dizer que há no Egito a presença de um Cristianismo pluricultural, por meio dos vários ritos (latino, caldeu, maronita, siríaco, copta, entre outros). Em uma população de 105 milhões de habitantes, 15 milhões são cristãos coptas ortodoxos, que não estão em plena comunhão com a Igreja de Roma. Já os coptas católicos, somados aos demais ritos em comunhão com Roma, totalizamos cerca de 250 mil almas. Portanto, uma minoria. Percebemos, contudo, que, pelo fato de sermos poucos, há maior preocupação em manter viva a nossa identidade, fidelidade para vivenciar e testemunhar publicamente a nossa fé. Atualmente, temos uma convivência pacífica com os muçulmanos, apesar das diferenças de crença, havendo, inclusive, obras sociais realizadas em conjunto. 

Inclusive, existe um costume próprio de os cristãos se identificarem no Egito, certo? 

Sim. No Egito, os cristãos, desde a infância, após o Batismo, costumam tatuar uma pequena cruz em um dos pulsos. Por exemplo, se pegam um táxi e, na conversa, um percebe que o outro é cristão, logo mostram o sinal e se reconhecem como irmãos no meio de um povo em que são minoria. Uma vez estando no Egito, eu também decidi fazer esse sinal, pois vivo no meio deles. Quando falamos em Igreja sinodal, de comunhão, participação e missão, isso também significa assumir os sinais que dizem muito para esse povo. 

Qual é a realidade das vocações no Egito? 

Quando eu cheguei, posso dizer que a realidade vocacional no Egito era um pouco abaixo de zero. Mas, recordando a ideia do Papa Emérito Bento XVI, reforçada recentemente pelo Papa Francisco, de que a evangelização se faz por atração e não por proselitismo, percebemos que isso também pode ser dito sobre a pastoral vocacional. Na medida em que nos tornamos conhecidos em um ambiente, alguns jovens se sentem atraídos por essa forma de vida. Na pastoral vocacional carmelitana, um “carro-chefe” é, sem dúvida, Santa Teresinha do Menino Jesus. Temos uma basílica muito bonita dedicada a ela, muito amada e admirada não só pelos cristãos como também por muçulmanos. Isso tem favorecido para que, lentamente, surjam vocações. É claro que não podemos pensar num grande número, mas o suficiente para continuarmos a nossa missão. No período em que estou no Egito, já tivemos quatro ordenações sacerdotais e, atualmente, há dois seminaristas estudantes de Filosofia, um estudando Teologia e mais dois que caminham para a experiência religiosa. 

O senhor está no Brasil para lançar um livro sobre os santos Luís e Zélia Martin. Qual a motivação para essa obra? 

Sou carmelita e, portanto, o Carmelo é minha família. Logo, os pais de Santa Teresinha, em certo sentido, também são meus pais. Hoje, creio que a pastoral das pastorais na Igreja é a familiar. Ou nós resgatamos o sentido sacral da família ou teremos um mundo sempre mais desnorteado. O Papa Francisco tem feito um belo trabalho por meio da [exortação apostólica] Amoris laetitia. É preciso redescobrir a família como pequena igreja. Eu escrevi este livro para que todos os pais saibam como Santa Teresinha e suas irmãs foram educadas por seus santos pais. 

Como o senhor descreve a vida desses santos? 

O bonito da vida de São Luís e Santa Zélia é ver como Deus preparou o encontro deles e, desse encontro, nasceu um caminho comum para a felicidade. É preciso reconhecer que ambos possuíam características e personalidades bastante diferentes, mas quando as pessoas se amam, todas as diferenças são superadas. O verdadeiro casal não deve ser o marido cópia da mulher e vice-versa. Cada um deve ter a sua personalidade. Depois, também notamos como, após a morte de Zélia, Luís assume sozinho a educação e o cuidado das filhas. Ele cultivou a vocação das filhas e nunca as impediu de responder ao chamado de Deus. Ele superou o egoísmo pessoal, ao contrário de muitos pais que pensam que geram os filhos para si mesmos. 

Que conselho o senhor dá aos pais para a transmissão da fé e dos valores cristãos aos filhos? 

Meu conselho é muito simples: o exemplo. Palavras voam, exemplos convencem. Os pais devem ser os primeiros a testemunhar a alegria da fé, de serem cristãos. Uma das coisas que mais me entristecem é quando vejo, nas primeiras comunhões, que os filhos comungam enquanto os pais não comungam nem se confessam. A primeira reflexão que o filho faz diante desse fato é que aquilo que está celebrando não é importante. É preciso que os pais reassumam a responsabilidade própria da maternidade e da paternidade. Obviamente, essa tarefa exige tempo, sacrifício, disponibilidade e uma série de outras exigências. 

E quanto aos pais que, apesar dos esforços, veem seus filhos seguirem por caminhos distantes da fé? 

Esses devem ler a parábola do “filho pródigo”. O filho foi embora, mas a porta do coração do pai ficou aberta. A semente semeada sempre fica e nunca se perde. Chegará o momento em que esse filho se dará conta e retornará porque crê que a porta estará aberta. O pecado ou estrada errada dos filhos não destroem a paternidade. Deus não nos renega porque somos os seus filhos.

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Una lectura desde Teilhard de Chardin

 

[Por: Armando Raffo, SJ]

“Yo soy el Alfa y la Omega… aquel que es, que era y que ha de venir, el Todopoderoso.” (Ap.1,8) No es claro el significado específico que tiene la afirmación del Apocalipsis que intitula esta reflexión. En primera instancia pareciera aludir al principio y el fin del universo. Sin embargo, el libro comienza afirmando que se trata de una revelación de Jesucristo para comunicar a los suyos “lo que pronto ha de suceder” y, en ese contexto, termina recordando que él es el Alfa y la Omega, que es, que era y que será.

Aunque es claro que el libro no se refiere al universo tal y como lo concebimos en nuestros días, es decir, como la creación entera en evolución, sí parece evidente que alude a algo así como “Yo soy el sentido en plenitud”. Si bien el relato del Génesis deja claro que Dios creó todo de la nada, también lo es que no concibe la realidad creada en clave evolutiva y menos que el ser humano tenga alguna responsabilidad en ello. La conciencia de un proceso dinámico de toda la realidad en la que al ser humano le cabría algún tipo de una responsabilidad es muy reciente. 

Todo parece indicar, pues, que el Alfa y la Omega al que se refiere la expresión del Génesis apuntaría al sentido completo de la vida; a aquello que debe guiar el principio y el fin de la vida de las personas. Tan es así que cuando el libro concluye repite ese mismo concepto del comienzo: “Yo soy el Alfa y la Omega, el Primero y el Último, el Principio y el Fin” (22,13), e, inmediatamente, alaba a los que laven sus vestiduras, es decir a los mártires. Aquellos que fuesen fieles en medio de la tribulación y la muerte, serían los que participarían del árbol de la Vida. 

En El libro del Apocalipsis estaría, pues, indicando la centralidad de Cristo como parámetro perfecto para guiar la vida de las personas, más allá de los contextos vitales en que se encontraran. Se pretende subrayar lo definitivo de la persona de Cristo con respecto al sentido de la vida. Se trataba y se trata, aunque con otra perspectiva, de apoyarse en Cristo para encontrar el sentido que toda persona procura dar a la vida y ser parte del “árbol de la Vida”. 

Como sabemos, en aquella época se pensaba en términos estáticos y acabados. Recién a partir de los estudios de Darwin y su teoría de la evolución de las especies, empezamos a tener una idea de lo que podríamos llamar la evolución del universo y que hoy ya concebimos en expansión. No hace tanto que los científicos han postulado la idea del “big-bang”, como un punto de partida que tendría una especie de condensación de materia inimaginable y que, en determinado momento, habría iniciado su expansión y evolución.  

Teilhard de Chardin fue uno de los señeros cristianos que intentó formular la fe cristiana teniendo en cuenta la visión científica del universo en evolución. A partir de esa perspectiva entiende la espiritualidad cristiana desde parámetros novedosos para la época y, en buena medida, para la nuestra. Una frase del propio Teilhard deja ver la importancia y el significado profundo que entraña concebir el universo en evolución: “Desde que han despertado a la conciencia explícita de la evolución que los empuja, los hombres se ponen a mirar, todos juntos, algo idéntico en el porvenir. Y con eso mismo, ¿acaso no empiezan a amarse?”[1] Esa afirmación descubre una dimensión de la realidad que, necesariamente, ha de desplegar una responsabilidad y una espiritualidad que se expresen en dicho proceso. 

La cita del propio Teilhard abre una ventana que da lugar a concebir la espiritualidad cristiana con otra responsabilidad en tanto se sabe parte y responsable, en alguna medida, de la propia evolución del mundo y de las relaciones humanas que desde esa nueva perspectiva deberían propiciarse. De alguna manera, el ser humano como conciencia de la evolución está invitado a asumir una responsabilidad nueva con respecto a sus semejantes y al universo en cuanto tal. 

Desde esa perspectiva viene a tono usar una imagen que ayuda a ver las implicancias de asumir el reto que Teilhard descubre desde su fe y a la luz de la evolución. Se trata de una imagen sencilla pero que nos ayuda a intuir lo que Teilhard vislumbraba desde su condición de antropólogo creyente. Se trataría de imaginar que la humanidad vendría por muchísimos años ocupada en peleas y discordias de distinto tipo en la bodega de un barco que se movería según las corrientes marinas hasta que a alguno de los pasajeros se le ocurrió subir a cubierta y, después de tanteos, notar que a través del timón podría orientar el rumbo de la embarcación. Teilhard intuyó que a la humanidad le cabria una responsabilidad notoria con respecto a la misma evolución. En esa dirección se orientaba Teilhard cuando dijo: “… es suficiente para la verdad aparecer una sola vez, en un solo espíritu para que nada pueda ya nunca más impedirle invadirlo todo en inflamarlo todo.”[2] 

No en vano, Agustín Udías afirma que Teilhard “… realiza una continua producción de su pensamiento filosófico y religioso, tratando de repensar la formulación de la fe cristiana desde una visón científica de un universo en evolución, detrás del cual se encuentra también el desarrollo de una espiritualidad nueva muy personal fruto tanto de su experiencia científica como de una verdadera experiencia mística.”[3] La verdad para Teilhard es lo que él llamaba “lo Crístico” en cuanto que uniría o promovería la síntesis de las exigencias cósmicas del Verbo encarnado y las potencialidades de un universo en evolución. Esa verdad debería alumbrar una nueva responsabilidad que implicaría, también, una espiritualidad que no mira ya hacia el cielo para aludir a lo divino, sino al dinamismo profundo y a la vez trascendente de la historia que impulsa el Verbo encarnado. Por eso Telhard llega a hablar de la encarnación como la síntesis de lo “pan-humanizante  y pan- cristificante”[4].

Notas

[1] Citada por Émile Rideau, La pensé du Pére Teilhard de Chardin,, Paris, p.109

[2] Udías, Agustín. Los últimos escritos espirituales de Teilhard de Chardin: “El corazón de la materia a lo Crístico”, Manresa, Vol 94, n° 371, abril-junio, 2022, p.192

[3] Ibid, p.183

[4] Teilhard de Chardin, Ouvres 13, 1976, p.191, citado por Agustín Udías en la revista Manresa, vol. 94- N° 371 (Abril-Junio 2022), p191.

Imagen: https://president.georgetown.edu/wp-content/uploads/sites/37/2018/12/1.jpg

Fonte: https://amerindiaenlared.org/contenido/21847/una-lectura-desde-teilhard-de-chardin/

Postado por Zelmar Guiotto às 19:20 Nenhum comentário:

Na Covid, Deus dá lição de biologia

Hélio Schwartsman*

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 31 de julho de 2022, mostra um homem branco de barba e cabelos castanhos longos, usando calção de banho preto, deitado sobre uma espreguiçadeira, com um drink na mão esquerda, tomando sol. 
 Ilustração de Annette Schwartsman - Annette Schwartsman
 
O vírus nos mostra o poder da seleção 
natural mediante variação

Não acho que Deus exista, mas admitamos, para fins de argumentação, que ele seja real e interfira no mundo. Existem vários modos de fazê-lo. Há desde o superativismo divino, no qual nem uma pedra rola sem autorização do criador, até o deísmo, pelo qual o demiurgo criou o universo com suas leis naturais e foi descansar num longo "shabbat", que já dura 14 bilhões de anos.

A pandemia de Covid-19 traz dificuldades para os partidários da primeira concepção, já que nos obrigaria a ver Deus como um cara malvado. Se tudo depende de decisão do criador, então ele é o culpado pelos 6 milhões de óbitos até aqui registrados. Não daria nem para condenar Bolsonaro por suas omissões, já que elas seriam parte do plano divino.

A segunda concepção oferece um papel mais bacana para o demiurgo. No deísmo, ele pode ser visto como o melhor professor de biologia de todos os tempos. O universo que ele criou evidentemente já continha as leis da evolução. O que a epidemia fez foi escancará-las, revelando a todos que é Darwin e não interpretações fundamentalistas da Bíblia que está certo.

De fato, o v írus exibe diante de nossos olhos o poder da seleção natural mediante variação. Com pouco mais de dois anos de circulação, ele já produziu um alfabeto grego quase inteiro de variantes que se tornaram cada vez mais infecciosas e substituíram as versões anteriores, como prevê a teoria. Uma sublinhagem da ômicron, a BA.5, teve sua taxa bruta de reprodução, o R0, estimada em 18,6, o que a torna tão transmissível quanto o sarampo, algo que poucos epidemiologistas acreditavam que veriam em vida.

As taxas de hospitalização e óbito das novas variantes não acompanharam a de infecção. Os biólogos discutem se há mesmo uma tendência geral dos vírus de evoluírem para formas menos agressivas, mas o principal responsável por esse fenômeno no caso da Covid foram as vacinas, uma invenção indiscutivelmente humana.

* Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2022/07/na-covid-deus-da-licao-de-biologia.shtml

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sábado, 30 de julho de 2022

'Um Herói', de Farhadi, mostra como sorte destrói as melhores intenções

 João Pereira Coutinho*

Um Herói, de Farhadi, estreia após acusação de plágio - 27/07/2022 -  Ilustrada - Folha

Filme iraniano surge como um dos melhores do ano com uma narrativa simples e poderosa

Amigos próximos sabem que a sorte é uma das minhas grandes obsessões. Não apenas no sentido prosaico de ter sorte na vida, no jogo, na amizade, no amor. No sentido moral da expressão. Será que a forma como avaliamos o caráter de alguém tem em conta a sorte que a pessoa teve ou não teve?

"Ele é honesto", "ele é falso", "ele é talentoso", "ele é fraco": até que ponto as nossas avaliações não são determinadas pela sorte do agente?

Essas preocupações, mais ou menos desarticuladas, encontraram a sua expressão filosófica no clássico ensaio de Bernard Williams, "Moral Luck", sorte moral, que li anos atrás.

Imaginemos Gauguin, escrevia o autor. Sim, aquele burocrata que abandonou tudo –carreira, mulher, filhos– para ir pintar no Taiti.

Se Gauguin tivesse falhado, ele seria visto como um egoísta e irresponsável que abandonou os seus deveres como cidadão e pai de família.

Para além do talento, Gauguin teve sorte. E essa sorte enobrece-o aos nossos olhos (ou, pelo menos, aos olhos da maioria).

Será que Kant estava fundamentalmente errado quando afirmava que a essência da moralidade era imune à ideia de sorte? E que só a intenção do agente importa?

Acontece que a sorte não serve apenas para enobrecer a ação; a sorte também pode ser má sorte, destruindo as melhores intenções que qualquer decisão possa ter.

Um bom exemplo disso é o extraordinário filme de Asghar Farhadi, "Um Herói", já nas salas.

(Curioso: quando olho para os melhores filmes deste 2022, tenho um japonês, "Drive My Car", um francês, "Ilusões Perdidas", e um iraniano, "Um Herói". O cinema americano desapareceu do radar.)

Mas o filme de Farhadi é talvez o melhor dos três por revisitar o conceito de "sorte moral" com uma narrativa simples e poderosa.

Rahim Soltani (o excelente Amir Jadidi) está na prisão por dívidas. O seu sócio fugiu com o dinheiro e o credor não perdoou Soltani.

Mas a sorte sorriu ao pobre homem: a sua mulher encontrou uma bolsa com moedas de ouro e Rahim terá parte do dinheiro para começar a pagar a dívida. Assim que o credor o permita.

O credor não está interessado em receber parte do valor, no entanto; exige o valor inteiro. Rahim pondera: valerá a pena insistir? Ou a atitude mais justa é devolver as moedas ao seu legítimo proprietário e esperar por dias melhores?

Não sabemos as razões profundas que levam Rahim a devolver as moedas. Sede de protagonismo? Um despertar de consciência? Arrependimento? O que sabemos é que ele toma a "decisão correta".

Ao fazê-lo, o seu gesto transforma-o em herói. E todos querem participar nesse heroísmo –os diretores da prisão, as associações beneficentes da cidade, a mídia, a família, os vizinhos.

É o primeiro momento de sorte moral: ao devolver as moedas, Rahim conseguiu a reabilitação social e até financeira que perdera com a sua condenação. O futuro sorri para ele.

O problema é que a sorte moral não funciona apenas em sentido ascendente. Ela é especialmente perversa quando subverte as melhores intenções –e o brilhantismo do filme está na forma trágica, banal e trágica, como vai tecendo a queda de um homem.

A modernidade política sempre lidou mal com a ideia de sorte. Se tudo está nas nossas mãos, como prometiam os "philosophes" iluministas do século 18, como admitir que a contingência ainda tem uma palavra no destino das nossas vidas e das nossas sociedades?

Eu próprio, todos os anos, testo os meus alunos com uma pergunta de algibeira: o que é a felicidade? Há respostas para todos os gostos. É ter saúde. Dinheiro. Amor. Fama. Amigos.

Nunca nenhum me respondeu com a sorte –o conceito que está na raíz da própria palavra felicidade ("felix"). A sorte sempre foi a pedra no sapato da cultura racionalista, para quem a razão basta na construção de todas as utopias.

Um erro e uma ilusão. Controlamos menos do que pensamos. E, como na história de Rahim, talvez a única forma de sobrevivermos aos humores do destino é mantendo no lugar a nossa consciência.

* Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa. 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2022/07/um-heroi-de-farhadi-mostra-como-sorte-destroi-as-melhores-intencoes.shtml

Postado por Zelmar Guiotto às 19:27 Nenhum comentário:

KAFKA 1

 Teresa Bracinha Vieira*

  


“CARTA AO PAI”


É como quando uma pessoa tem de subir cinco degraus baixos e outra pessoa apenas um degrau, mas que é tão alto quanto os outros cinco juntos; a primeira pessoa não irá superar os cinco degraus, como ainda mais cem, mais mil, terá levado uma vida longa e muito extenuante, mas nenhum dos degraus que subiu terá tido um tão grande significado como para a segunda pessoa teve o único degrau, o primeiro, enorme, impossível de subir para as suas forças, para o qual não consegue subir e muito menos ultrapassar.

E ainda neste livro afirma Kafka:

Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo (…), chefe, tio, avô. Só que como pai foste forte de mais para mim (…) tive de aguentar o embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso.

Quantas vezes, o pavor de termos tido na nossa vida, um homem ou uma mulher enormes, severos e de supostas palavras meigas, mas incapazes de um amor bondoso e solto, nos impede de lutar pelos sentires que ansiamos?

De nós quiseram obediência e múltiplos deveres, independentemente da dor que sentimos e sentiremos, de que, para eles, representámos pouco, sempre pouco face ao amor que lhe dedicámos, não obstante a sua tirania abusada sobre nós.

Falo de seres de corporalidade de sentires abafante, castrante mesmo, no modo de uso de nos quererem.

Julgo que esta carta ao pai que Kafka escreveu, pode ser uma carta a qualquer ser que muito amamos, e, em quem depositámos uma confiança ilimitada e nos deu como resposta uma inexpressão concluída.

As absolutas insensibilidades entre pais e filhos, entre maridos e mulheres, entre irmãos, ou entre amigos, surgem, sobretudo, devido à necessidade que têm certas pessoas de utilizar uns sobre os outros.

A carência que estas pessoas têm de utilizar um vexame complacente que é um real poder que ajuíza o mundo dos outros, tem como finalidade a prova de que só exista a espécie de amor deles, e que o agradecimento por tal sentir seja sempre inequívoco sob pena de.

Observar regras, submissões, sentir a perceção total do desamparo, e acreditar que no final só as mães darão mão, é máquina oleada e falsificada.

Depois, depois, não há reconciliação possível. O sentimento de culpa bem manejado, faz carreira de êxito face à incapacidade de se soltarem duvidas.

São afinal gente inimiga do amor, são aqueles que nunca libertam sem negócio.

Muito desesperada se torna a vida quando com estes seres se partilha pão ou cama, sobretudo, se se procura o sentido da família ou um outro distinto amor.

Tardiamente se descobre que os elementos de violência destas gentes, não são, nem foram, inocentes, pois que afinal não queriam que deles escapássemos, já que no seu controlo sobre nós, residia o único modo de quererem a vida.

Pais e esposos e mulheres e irmãos e amigos, também fazem carreira à custa alheia. 

Afinal, quantas vezes, a espécie de sossego chega tarde, muito tarde, num jogo de paciências de interpretação já muito amputada.

Esta “Carta Ao Pai” escrita por Kafka, descreve esferas de influências de sentires onde não faltam provas de que a culpa é um obscuro caminho de mando, que leva a calar coisas difíceis de confessar até no jogo da circunstância.

*Professora Universitária.

 Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/kafka-1-1295576


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sexta-feira, 29 de julho de 2022

As transições opostas do século 21

Por Boaventura de Sousa Santos*, para Outras Palavras.

Imagem: Luke Barosky

Ambas ocorrem simultaneamente. A democracia cede a “novas” ditaduras. Mas em vez da ideia positivista de “progresso” surge a de justiça social e ambiental. Só uma destas transformações perdurará. Quem quer a segunda precisa frear a primeira

Ao longo dos últimos cem anos falou-se muito de transições entre tipos de sociedade e entre civilizações, e construíram-se muitas teorias da transição. Segundo o antropólogo francês Maurice Godelier, a transição é a fase particular de uma sociedade que encontra cada vez mais dificuldades em reproduzir o sistema econômico e social sobre o qual se funda e começa a reorganizar-se sobre a base de outro sistema que se transforma na forma geral das novas condições de existência. As transições mais estudadas nas ciências sociais foram as seguintes: da idade medieval para a idade moderna, do feudalismo para o capitalismo, do capitalismo para o socialismo, da ditadura para a democracia. Nas últimas décadas, com o colapso da União Soviética, têm sido muito estudadas as transições do socialismo de tipo soviético para o capitalismo.

Os sinais dos tempos obrigam-nos a pensar em dois tipos de transição ainda pouco estudados: a transição da democracia para ditaduras de tipo novo; e a transição epocal do paradigma moderno da exploração sem limites dos recursos naturais (a natureza nos pertence) para um paradigma que promova a justiça social e ecológica, tanto entre os humanos como entre os humanos e a natureza (pertencemos à natureza). A primeira transição aponta para uma profunda crise da democracia, enquanto a segunda aponta para a crise profunda dos modelos de desenvolvimento econômico-social que têm dominado nos últimos cinco séculos. São transições de sinal contrário porque, se a primeira transição se consumar, é difícil imaginar que a segunda possa ocorrer. É bom ter isto presente, uma vez que, quem quiser que a segunda transição ocorra, tem de lutar para que a primeira não ocorra. Explicarei por quê.

A crise da democracia

O modelo de capitalismo que hoje domina é cada vez mais incompatível com a democracia, mesmo com a democracia de baixa intensidade em que vivemos, uma democracia centrada em democratizar as relações políticas e deixando que continuem a imperar os despotismos nas relações econômicas, sociais, raciais, etnoculturais e de gênero. Refiro-me à prioridade dos mercados sobre os Estados na regulação econômica e social; à transformação em mercadoria de tudo o que puder gerar lucro, incluindo o nosso corpo e a nossa mente, as nossas emoções e sentimentos, as nossas amizades e os nossos gostos; relações internacionais dominadas pelo capital financeiro e pelos super-ricos.

O crescimento global das forças de extrema direita é o mais visível sintoma da crise profunda da democracia. Mas há outros: a facilidade com que a guerra de informação impede o pensamento e excita as emoções que incitam ao conformismo ou à revolta contra os falsos agressores; a recorrente eleição de governantes medíocres incapazes de governar e de pensar estrategicamente; o contra-reformismo conservador dos tribunais e a impunidade dos poderosos; a criação artificial de um ambiente de crise permanente cujos custos são sempre suportados pelas classes sociais mais vulneráveis; é o comportamento dos partidos de extrema direita que quanto mais antidemocrático e violento mais lhes permite subir nas sondagens. Não se pode excluir a possibilidade de o agravamento da crise socioeconômica levar ao colapso das instituições democráticas. O que aconteceu no Sri Lanka no passado dia 9 de julho é um aviso perturbador: inconformados com a carestia de vida e o colapso da economia, a multidão invadiu o palácio presidencial e o presidente, incapaz de resolver os problemas do país, fugiu para o estrangeiro.

A desfiguração da democracia é cada vez mais patente. Tendo como original objetivo garantir o governo das maiorias para benefício das maiorias, a democracia está a ser convertida num governo de minorias para benefício das minorias. Se no início da invasão da Ucrânia se fizesse um inquérito à opinião pública europeia sobre a continuidade da guerra ou a imediata negociação da paz, estou certo que a resposta a favor da paz seria avassaladoramente majoritária. No entanto, aí está a continuidade da guerra com a sua incontestável e, até agora, única certeza: os grandes derrotados são o povo ucraniano e os restantes povos europeus. Nada disto vai ocorrer em vão. Será bom tomar nota desde já que foram os governos mais autoritários (Hungria, Turquia) e os partidos de extrema-direita os que menos entusiasmo mostraram pela vertigem bélica e antirrussa que os neoconservadores norte-americanos conseguiram impor na Europa através de uma guerra de informação sem precedentes. É assim que, em nome da democracia, se promove a autocracia.

As novas ditaduras que se vão anunciando no horizonte não proíbem a diversidade política partidária; eliminam antes a diversidade ideológica entre as diferenças partidárias. Não eliminam a liberdade; reduzem esta a um menu de liberdades autorizadas. Não hostilizam o exercício da cidadania; induzem os cidadãos a hostilizá-lo ou a ser-lhe indiferente. Não reduzem a informação; aumentam-na até à exaustão pela repetição sempre igual e sempre diferente do mesmo. Não eliminam a deliberação política; fazem com que ela seja tanto mais dramática quanto mais irrelevante for a deliberação, deixando para entidades não democráticas as “verdadeiras” decisões, sejam tais entidades Bilderberg, Google, Facebook, Twitter, BlackRock, Citigroup, deep state, etc.

A crise ecológica e o extrativismo

As regiões do mundo que mais intensamente sofrem com a crise ecológica são a África, algumas ilhas do Pacífico e alguns países do sul da Ásia (Bangladesh), mas onde ela tem sido mais vivamente discutida é na Europa e na América Latina. Perante a atual onda de calor e suas consequências, o Secretário-Geral da ONU declarou recentemente que a humanidade está perante uma escolha existencial: “ou ação coletiva ou suicídio coletivo”. Já em fins de maio de 2020, a temperatura ao norte do Círculo Polar Ártico chegou a 26ºC. Um pouco mais ao sul, na Sibéria – aquela região do mundo que se usa como referência de algo muito frio – as temperaturas atingiram 30°C. O gelo do Oceano Glacial Ártico conheceu em 2020 o maior declínio já registrado em apenas um mês.

Entretanto, está em construção um novo continente, o continente dos plásticos em pleno Oceano Pacífico, estendendo-se da Califórnia ao arquipélago do Havaí. Ao longo de muitos milhares de anos, os seres humanos têm-se concentrado nas regiões tropicais e temperadas da Terra. A manter-se o atual ritmo de aquecimento global, entre 1 e 3 bilhões de pessoas estarão nos próximos 50 anos fora do nicho climático onde se concentra atualmente a maioria da população mundial – a zona sul-oriental do continente asiático. Um dos países mais gravemente atingidos pelas cheias associadas às monções é Bangladesh, com cerca de um quarto do seu território inundado, uma situação que afeta mais de 4 milhões de pessoas.

A injustiça ambiental é hoje uma das mais sérias e talvez a menos discutida. O dióxido de carbono (CO2) responsável pelo aquecimento global permanece na atmosfera por muitos milhares de anos. Calcula-se que 40% do CO2 emitido pelos humanos desde 1850 continua na atmosfera. Assim, embora a China seja hoje o maior emissor de CO2, a verdade é que, se tomarmos como referência o período 1750-2019, a Europa é responsável por 32,6% das emissões, os EUA, 25,5%, a China, 13,7%, a África 2,8% e a América Latina, 2,6%. Torna-se cada vez mais evidente que a ação coletiva pedida por Antonio Guterres não pode deixar de ter em conta esta dimensão da injustiça histórica (quase sempre sobreposta à injustiça colonial).

Os modelos de desenvolvimento industrial em vigor desde o final do século XVIII assentam na exploração sem limites dos recursos naturais. As suas duas versões históricas – o capitalismo e o socialismo soviético (entre 1917 e 1991) – foram muito semelhantes na sua relação com a natureza. O produtivismo foi o outro lado do consumismo, e ambos assentaram no crescimento econômico infinito. A Europa recorreu ao colonialismo e ao neocolonialismo para se apropriar dos recursos naturais de que carecia e que abundavam em outras regiões do mundo. Nestas, as elites econômicas e os Estados encontraram na intermediação da exploração nos recursos naturais uma das principais fontes do seu poder econômico. Até hoje.

Na América Latina, este modelo econômico é atualmente designado por neoextrativismo para o distinguir do extrativismo que dominou durante o período do colonialismo histórico. Neste continente, está aberto o debate sobre a transição deste modelo de desenvolvimento para outro, ecologicamente sustentável, designado por bem viver, uma expressão trazida ao debate pelo movimento indígena. É ele que mais se tem distinguido na luta por uma outra concepção de natureza assente na ideia de que a natureza é a fonte de toda a vida, incluindo a vida humana, devendo, por isso, ser respeitada, sob pena de cometermos o “suicídio coletivo” de que fala Guterres. Uma das principais linhas de fratura no interior das forças políticas de esquerda é entre aqueles que querem manter o modelo neoextrativista para gerar recursos que melhorem as condições de vida da maioria da população empobrecida, e aqueles para quem este modelo não só destrói a já precária sobrevivência das populações das regiões onde são explorados os recursos, como também perpetua o poder das elites rentistas, agrava ainda mais a desigualdade social e produz o desastre ecológico.

Na Europa, o debate parece limitar-se às modalidades da transição energética. Não está no horizonte a alteração dos modelos consumo. É uma ecologia dos ricos que se satisfaz com carros elétricos, desde que cada família de classe média continue a ter dois carros, esquecendo, aliás, que as baterias dos carros elétricos usam recursos minerais não renováveis (lítio). Para a perspectiva dominante, é anátema diminuir o consumo não essencial ou propor uma economia de não-crescimento.

Referi acima que a crise da democracia e a crise ecológica estão ligadas. A guerra da Ucrânia, ao implicar o aprofundamento da crise da democracia, implica também o aprofundamento da crise ecológica. Basta ter presente como a crise da energia fóssil provocada pela guerra fez evaporar todos os bons propósitos da transição energética e das energias renováveis. O carvão regressou do exílio e o petróleo e a energia nuclear estão a ser reabilitados. Por que é que perpetuar a guerra é mais importante do que avançar na transição energética? Que maioria democrática decidiu nesse sentido?

 *Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Fonte:  https://desacato.info/boaventura-as-transicoes-opostas-do-seculo-21/ 29/07/2022

Postado por Zelmar Guiotto às 17:39 Nenhum comentário:

Por que é difícil ser mulher no Brasil

Por Tatiana Salem Levy

Foto: Cris Bierrenbach   — Foto: Cris Bierrenbach/Valor

Foto: Cris Bierrenbach — Foto: Cris Bierrenbach/Valor

Se não fossem os detalhes da comida e das tradições, 
o romance coreano “Kim Jiyoung, nascida em 1982” 
poderia ter sido narrado por uma brasileira

27/07/2022

As últimas semanas deixaram escancarado como é difícil ser mulher no Brasil. O caso da menina de 11 anos, vítima de estupro, que foi mantida num abrigo em Santa Catarina para evitar que fizesse um aborto legal; o vazamento da história privada da atriz Klara Castanho, que, ao se descobrir grávida após um estupro, decidiu entregar o bebê à adoção e, mais recentemente, as imagens chocantes do médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra violando uma de suas vítimas durante o parto evidenciaram quão vulneráveis nós estamos neste país.

Quase não temos direitos sobre nossos corpos. Quando o temos, mal podemos exercê-lo. A juíza Joana Zimmer induziu a menina de 11 anos a não fazer o aborto — que ela desejava e que lhe era garantido por lei. Queria que ela “aguentasse mais um pouco” e depois entregasse o bebê à doação. Muitos brasileiros pensam assim. Contraditoriamente, são esses mesmos brasileiros que condenam Klara Castanho por ter entregue o bebê que resultou do seu estupro aos cuidados de pais adotivos.

Há sempre uma forma de culparem a vítima. Mas no caso da parturiente estuprada a coisa ficou mais complicada. Vão culpá-la de quê? De estar com a roupa errada? De estar no lugar errado? De não ter reagido? E também ficou mais dolorosa. Não conheço uma mulher que tenha dormido bem no dia em que viu aquelas imagens. Ficamos todas perturbadas. Podia ter sido com qualquer uma de nós. Pode ser com qualquer uma de nós. Em qualquer lugar, a qualquer hora, até mesmo no nosso parto.

No livro “Medusa no palácio da justiça ou: Uma história da violação sexual” (Tinta-da-China), Isabel Ventura conta que na cultura greco-latina Medusa é uma górgona muito feia, temida por todos, pelo seu poder de matar quem a olha. Na versão de Ovídio, ela teria sido vítima de estupro. Relata Isabel: “Antes de ser decapitada por Perseu, a górgona  era uma das donzelas do templo de Atena, e a sua beleza granjeara-lhe diversos admiradores, entre os quais, o deus do mar, Poseidon, que a iria violar no interior do templo da deusa da guerra. Furiosa com a profanação do solo sagrado, Atena dirige a sua fúria para Medusa, condenando-a à solidão”.

 

Ora, a metamorfose de Medusa simboliza a punição  das vítimas de violência sexual. Medusa foi estuprada por Poseidon — e quem é punido não é ele, mas ela. Inverte-se, ao menos desde a mitologia grega, o papel de vítima e de carrasco. Faz-se da vítima a ré, transferindo para ela a responsabilidade pela sua vitimação.

O estupro é uma das muitas camadas da violência contra as mulheres — está quase no topo da pirâmide, ficando atrás apenas do feminicídio. Sendo assim, deve ser compreendido — se é que pode ser compreendido; digamos, portanto, analisado, pensado, abordado — a partir de um ponto de vista mais amplo, ao qual podemos chamar de cultura do estupro. São tantos por dia, que não podemos olhar para eles como atos isolados ou anomalias. Fazem parte de uma cultura, da nossa cultura, estruturalmente machista e misógina, que educa seus meninos a se considerarem proprietários dos corpos femininos. Uma vez proprietários deles, por que não usá-los a qualquer hora, em qualquer circunstância, do modo que lhes apetecer?

Não sendo um incidente isolado, o estupro faz parte da mesma cultura de meninos que passam a mão nos corpos das meninas nos ônibus, nos shows, nas salas de aula, sem o consentimento delas; da mesma cultura na qual homens têm salários maiores do que os das mulheres; da mesma cultura na qual as mães fazem muito mais pelos filhos do que os pais; da mesma cultura na qual mulheres são assediadas no trabalho — e por aí vai, sem falar no momento específico que vivemos, no qual o próprio presidente da República não só incita, mas também comete gestos violentos contra as mulheres.

Uma cultura que atravessa os milênios, mas também as línguas, os países. Quando meu último romance, que narra um estupro no Rio de Janeiro, foi publicado em outros lugares, levei um susto com a reação das mulheres: igual à das brasileiras, o mesmo medo, a mesma raiva, até em países onde os índices de estupro e feminicídio são muito menores do que no Brasil.

Senti igual espanto ao ler o romance “Kim Jiyoung, nascida em 1982” (trad. Alessandra Esteche, Intrínseca), da sul-coreana Cho Nam-Joo. O livro narra algumas partes da infância, da adolescência, do início da vida adulta, do casamento e da maternidade de Kim Jiyoung. Se não fossem os detalhes da comida, das tradições, a sua história bem poderia ter sido narrada por uma brasileira — ou por uma marroquina, uma colombiana, uma norte-americana... Não é só aqui, nem só no mundo ocidental, que as meninas são criadas, desde cedo, a se sentirem culpadas pelo assédio que sofrem.

Quem narra a história é o psiquiatra da protagonista, no outono de 2015, quando Jiyoung tem 33 anos e sofre de comportamentos estranhos. Ela age como se fosse outras mulheres, a sua mãe, a sua filha (uma bebê de um ano), uma amiga da faculdade que já morreu. Então, como se tivesse ouvido da paciente a sua história desde a infância, o psiquiatra a narra em ordem cronológica, acentuando as dificuldades de ter nascido mulher.

Na pequena infância, há diferenças estruturais entre a cultura coreana e a nossa. A mãe de Jiyoung já tinha chorado quando nasceu sua primogênita, Kim Eunyoung, e chora também quando nasce a segunda. Ao engravidar pela terceira vez de uma menina, decide abortar. Na década de 80, o governo coreano havia “implementado uma política de natalidade chamada ‘planejamento familiar’ para manter o crescimento populacional sob controle. Por isso, o aborto em razão de problemas médicos era legal havia dez anos. Verificar o sexo e abortar as meninas era prática comum, como se elas fossem um problema médico”.

Cinco anos depois, chega o irmão mais novo, que passa a ser tratado como um reizinho. Ganha sempre o melhor prato de comida, as melhores roupas; não precisa fazer nada pela casa, tem o estudo garantido... Mas Oh Misook é uma mãe um pouco diferente das outras e assim vai conseguindo educar as meninas até elas entrarem na faculdade e conseguirem o primeiro emprego.

Mas nada é fácil. Quando inicia a escola secundária e começa a andar de ônibus e metrô sozinha, Jiyoung descobre que “mãos suspeitas roçavam sua bunda e seus seios. Alguns desgraçados loucos se esfregavam nas coxas e nas costas das mulheres, (...) mas elas não emitiam nem um grito horrorizado. Tudo o que podiam fazer era se retirar. Na escola não era melhor. Alguns professores homens estendiam a mão e beliscavam a pele macia de seus braços, davam tapinhas em sua bunda ou passavam as mãos sobre o fecho do sutiã em suas costas”.

Numa noite em que Jiyoung é perseguida por um menino desde o ponto de ônibus até quase a sua casa, é ela quem leva o esporro: “Por que o seu cursinho é tão longe? Por que você conversa com estranhos? Por que sua saia é tão curta?”. Depois do pânico, de ter que pedir ajuda para uma senhora desconhecida, ainda levou bronca do pai... Desde cedo, aprendendo que a culpa é da vítima, se ela for mulher, e o crime de ordem sexual.

Na superfície, a vida parece estar mudando — o que permite Jiyoung estudar e trabalhar. Mas os empecilhos estão sempre presentes. Conseguir um trabalho é muito mais difícil para ela do que para os homens. Seu salário é inferior. Ela se casa com um homem que cuida do lar melhor do que ela, mas acaba sendo pressionada pela família dele para ter filho logo. Quando o bebê nasce, um dos dois tem que parar de trabalhar, abandonar a carreira; um dos dois vai ficar exausto, trocando fraldas, sem dormir, e ainda vai receber dezenas de críticas; um dos dois vai levar a culpa se a criança não for bem-comportada, boa aluna etc. Adivinhem quem? Adivinhem quem vai surtar porque teve a vida usurpada? Quem vai se sentar na poltrona do psiquiatra vivendo o papel de todas as mulheres do mundo?

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/tatiana-salem-levy-por-que-e-dificil-ser-mulher-no-brasil.ghtml

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