terça-feira, 19 de julho de 2022

Rei nu

CARPINEJAR*

 Roberto Carlos joga as tradicionais rosas sem nenhuma animação em show - Beatriz Damy/AgNews

Até Roberto Carlos perdeu a paciência. Até um rei calejado de palco, com seus 81 anos. Até quem se veste de azul e branco e é adepto da filosofia bicho-grilo. Até quem é a nossa unanimidade romântica das festas do fim do ano na televisão. Até quem tem um milhão de amigos e distribui rosas para a primeira fila na hora de cantar Como é grande o meu amor por você.

Em show no dia 13, na casa Qualistage, no Rio de Janeiro, ele mandou alguém do público calar a boca. O motivo da fúria foi banal: a pessoa apenas queria que o cantor se casasse com a sua mãe.

Ora bolas, é o sonho de todo filho que tem uma mãe solteira, viúva ou desquitada, fã de carteirinha que guarda recortes do famoso capixaba, desde a Jovem Guarda, debaixo do colchão e que tem como meta de aposentadoria juntar dinheiro para atravessar os mares num cruzeiro cantante com ele.

Trata-se do casamento de contos de fadas para qualquer bom rebento: virar príncipe tendo o Rei como padrasto.

Não havia motivo para que ele ficasse ofendido e oferecesse um esporro para ingênua e gentil aspiração.

Poderia responder com a sua risada. Ou mesmo brincar que é muito velho para aquela senhora.

Mas adotou, de modo desnecessário, a via do enfrentamento e do desconforto. É óbvio que o que foi dito não mantinha nenhum vínculo direto com o seu acesso. Não representou ofensa ou desmerecimento da sua personalidade, pelo contrário, corresponde a uma consequência natural da adoração da sua figura.

O que me põe a pensar que todos estamos a um passo do desequilíbrio. Se o Rei não aguenta mais, o que dizer dos seus súditos?

A pandemia mexeu com nossos nervos, e agora sentimos os efeitos colaterais do confinamento, das perdas e do receio da morte. Não tem como fingir que nada aconteceu. Ligamos o modo sobrevivência e nos enxergamos com dificuldades de relaxar de novo. Há um excesso de tensão em viver e exasperação no ar pelo medo do contágio. As restrições acabam e retornam, os hospitais lotam e recuperam a normalidade num piscar de olhos, tiramos e colocamos de volta as máscaras, e só não queremos a máscara de oxigênio em nossa boca.

Nem as celebridades mais blindadas conseguem disfarçar a impaciência. Vêm se mostrando humanas, falíveis e irritadas.

Há uma grande incidência de bate-boca de artistas com a plateia. Em junho, Carlinhos Brown interrompeu manifestação política de seu coro de seguidores, e Elba Ramalho, num show de São João em Salvador (BA), comprou briga com o comício improvisado de seus espectadores.

Não existe mais quem não precise de terapia. E não somente de uma individual, mas de várias ao mesmo tempo: de casal, familiar e de trabalho.

Talvez o país inteiro tenha que se deitar no divã. Para se curar do trauma e da vertigem de ter observado a cova tão de perto.

* Fabrício Carpi Nejar, ou Fabricio Carpinejar, como passou a assinar a partir de 1998, é um poeta, cronista e jornalista brasileiro. 

Fonte:https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=b4ad44acaba32d3012480d9e9ca782b6


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