Soldados desfilam em Brasília (Foto: Agência Brasil)
Forças Armadas conseguiram ampliar seu poder político no país nos últimos anos, e quem quer que seja escolhido para governar o Brasil a partir de 2023 vai precisar fazer concessões aos militares, avalia o pesquisador alemão Christoph Harig em entrevista. Apesar de a situação não ser saudável para a democracia, ele diz não ver risco de uma intervenção direta para reverter o resultado da votação
Por Daniel Buarque
Os militares brasileiros ampliaram seu poder político de forma tão significativa desde a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência que eles já podem ser vistos como os grandes vencedores das eleições deste ano, independentemente de quem seja escolhido para governar o país.
Para o pesquisador alemão Christoph Harig, especialista em estudos sobre relações civis-militares no Brasil, a reeleição de Bolsonaro manteria no poder o que ele chama de “governo dirigido por militares”. Por outro lado, caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vença o pleito, terá que fazer concessões às Forças Armadas para poder governar. Mesmo uma terceira via, segundo ele, pode ter que aceitar a influência de generais em seu governo.
“Aconteça o que acontecer, os militares continuarão a ter um papel realmente destacado na política brasileira, o que não é saudável para a democracia”, disse Harig, em entrevista à Interesse Nacional. “Isso tem sido um problema no Brasil desde a redemocratização, pois os políticos que talvez pudessem fazer mais em termos de expansão da prevalência civil se esquivaram do confronto. E agora os militares estão estruturalmente em uma posição muito mais favorável”.
Pesquisador do instituto de Relações Internacionais da universidade de Braunschweig, na Alemanha, Harig é doutor em estudos de segurança pelo King’s College London e vem analisando relações civis-militares no Brasil e estudado as relações entre as missões de paz lideradas por militares so país no exterior e as ações realizadas dentro do Brasil. Apesar do diagnóstico de fragilidade da democracia, ele diz não ver um risco de interferência direta das Forças Armadas em um golpe contra o resultado das eleições, e lembra que elas já aceitaram Lula como seu comandante-chefe e tiveram muitos ganhos institucionais durante o governo do PT.
Leia a entrevista completa abaixo
Daniel Buarque – Três meses antes das eleições, qual a sua percepção sobre o papel dos militares na política brasileira?
Christoph Harig – Os militares aumentaram seu poder de forma tão significativa durante este mandato presidencial e se colocaram em uma posição em que acho que são o vencedor definitivo da eleição, quem quer que vença a eleição.
O cenário “A” seria Lula vencendo a eleição, mas os militares estão tão poderosos que Lula não conseguirá realmente melhorar as relações civis-militares, ou implementar uma comissão de verdade ou realmente reduzir o poder dos militares. Um potencial governo Lula teria que negociar com os militares para encontrar um acordo em que ambas as partes fiquem felizes. Então mesmo que Lula conseguisse reduzir o número de generais no governo, os membros individuais das forças armadas vão continuar se beneficiando do salário adicional. Ele não será capaz de cortar todos os benefícios adicionais que o governo Bolsonaro trouxe para as forças armadas.
Se Bolsonaro vencer, obviamente eles continuarão sendo alguns dos mais importantes power brokers do país. Estamos vendo um governo dirigido por generais. Não diria que é um governo militar, mas é um governo essencialmente dirigido por generais, a maioria deles generais aposentados, mas com ligações estreitas com os militares na ativa.
Ambas as opções são muito preocupantes e, mesmo que no caso muito improvável de um candidato da terceira via vencer as eleições, não consideraria improvável incluir um general como companheiro de chapa também. Não é improvável que militares que se desentenderam com o governo tentem se apresentar como militares razoáveis, em contraste com Bolsonaro, apesar de proporem políticas semelhantes às do atual governo.
Aconteça o que acontecer, os militares continuarão a ter um papel realmente destacado na política brasileira, o que não é saudável para a democracia.
Daniel Buarque – Você não mencionou a possibilidade de Lula vencer e os militares não permitirem que ele tome posse. Não acha que é uma possibilidade?
Christoph Harig – Não acho que eles vão interferir para tomar o poder. E Lula já sabe que vai ter que negociar um acordo com os militares para mantê-los felizes e para eles não interferirem abertamente no seu governo. Os militares vêm interferindo abertamente na política há muito tempo. E para que isso pare, Lula precisa deixá-los felizes. E ele não tem muitas opções além de continuar os benefícios financeiros para eles. Uma alternativa potencial seria voltar a enviar tropas de manutenção da paz com grandes números, porque isso garantiria algum tipo de status, renda adicional, e isso poderia manter os militares felizes.
Daniel Buarque – Você mencionou as missões de manutenção da paz, e sua pesquisa indica que elas são parte de como os militares se tornaram tão relevantes na política brasileira. Analisando essa participação militar na política atual, que mudança fez com que os militares voltassem a ser tão relevantes na política brasileira?
Christoph Harig – As missões de manutenção da paz certamente não são o único fator, mas elas reforçaram a concepção do papel político dos militares como capazes de serem gerentes, e de serem superiores aos políticos tradicionais. Para alguns dos generais que estiveram no Haiti e lideraram a missão como comandantes de força, essa experiência reforçou sua autoconcepção ou suas concepções de papel de gestores políticos capazes, o que faz parte da concepção tradicional de papel dos militares no Brasil. Então não é apenas a participação em missões de manutenção da paz, mas o fato de que elas reforçaram a concepção problemática do papel dos militares em geral. Eles sempre se viram como guardiões da nação, um poder moderador que pode intervir na política quando as coisas dão errado –e para eles as coisas darem errado é ter um governo de esquerda.
Eles aceitaram Lula como seu comandante-chefe, mas você também tem que ver que no período democrático depois de 1985 eles nunca ganharam tanto institucionalmente quanto no governo Lula. E, no entanto, sua ideia de instalar uma Comissão da Verdade derrubou completamente o acordo com eles, porque, ali eles se sentiram atacados. Eles acreditavam que os acordos fechados nos anos 1980 garantia anistia a eles, e eles não consideram aceitável que alguém mude esse acordo.
Daniel Buarque – Estamos falando muito sobre os papéis dos militares no Brasil, mas teorias de papel social indicam que ele depende também de um reconhecimento externo. Qual você acha que é a percepção externa dos militares do Brasil? Eles são percebidos no exterior como interlocutores confiáveis?
Christoph Harig – Isso mudou um pouco ao longo da presidência de Bolsonaro. No início do governo de Bolsonaro, muitos conservadores no exterior achavam que os militares do governo seriam os interlocutores mais confiáveis do governo, mas com o tempo a realidade se instalou e eles percebem que, na verdade, eles na verdade representam os piores elementos do governo.
Se você considerar apenas a imagem externa dos militares, a forma como o general Eduardo Pazuello tratou da pandemia de Covid-19 fez muito mal à imagem deles na Europa. A maioria das pessoas na Europa não acompanha a política brasileira a fundo, então tudo que se vê são as notícias horríveis da pandemia, quando ficou claro que, na verdade, eram os generais que estavam arruinando tudo, e não era só Bolsonaro. Percebeu-se que eles não eram os moderados do governo, mas que estão basicamente administrando o governo, que é considerado um governo de extrema-direita na maioria dos países europeus.
Daniel Buarque – Como vê a relação entre Bolsonaro e os militares? É uma parceria equilibrada ou tem um usando o outro? Quem está se beneficiando de quem?
Christoph Harig – Essa é a pergunta mais complicada de todas, porque eu acho que você não consegue descobrir quem está usando quem. No início parecia muito improvável que os generais recebessem ordens de um capitão reformado. Mas é preciso lembrar também que Bolsonaro fez campanha na AMAN em 2014, quatro anos antes da eleição, e foi autorizado basicamente a falar como candidato. Então há essa percepção de que os generais o aceitassem como futuro presidente. Por outro lado, não concordo com a ideia de que foi um plano longo e cuidadoso dos militares para eleger Bolsonaro. Não acho que seja possível planejar com antecedência na política brasileira, construindo uma candidatura por mais de cinco anos.
O que os militares têm feito de forma competente durante seu governo é usar a mídia para seus próprios propósitos. Eles alimentam a mídia com algumas informações em que os militares sempre saem como os bons, como se estivessem controlando um presidente mais ou menos louco. Mas, se você olhar para os fatos, é Bolsonaro que está fazendo o que esses generais no governo querem.
E se estamos falando do projeto da nação para 2035, esse é um projeto de longo prazo que casa bem com os planos de Bolsonaro. Não acho que você possa separar os dois. Bolsonaro é parte de um governo comandado por generais no qual ele é a figura de proa.
Não acho que Bolsonaro consiga usar os militares para seus próprios propósitos. É muito mais o contrário. Os militares conseguiram usar o governo Bolsonaro para obter benefícios extraordinários, e especialmente os generais individuais, não os próprios militares, mas especialmente os generais individuais conseguiram orientar as políticas de uma forma que os beneficiou financeiramente. Se você olhar para a abolição do teto salarial para servidores públicos, por exemplo, isso é basicamente um exemplo de políticas feitas para generais como Augusto Heleno, que fazem parte do governo.
Daniel Buarque – Você mencionou antes a má-reputação construída pela administração da Saúde por Pazuello. Embora você tenha dito que os militares vão aparecer como os principais vencedores da eleição, seja qual for o resultado, não acha que eles também correm riscos por estarem associados a um governo que está gerando uma crise econômica e social?
Christoph Harig – Seria um risco para eles, se os políticos estivessem dispostos e aptos a usar sua posição pública para enfraquecê-los e mandá-los de volta ao quartel. Mas isso tem sido um problema no Brasil desde a redemocratização, pois os políticos que talvez pudessem fazer mais em termos de expansão da prevalência civil se esquivaram do conflito. E agora os militares estão estruturalmente em uma posição muito mais favorável do que no início do governo Lula. Em termos de melhorar as relações civis-militares, os governos Fernando Henrique Cardoso fizeram mais em termos de avanço das relações civis-militares. Lula teve uma situação menos favorável, mas tentou evitar conflitos. E colocá-los de volta no quartel significaria um conflito. E nenhum governo civil no futuro próximo seria capaz de fazer isso. Embora obviamente haja um risco para a reputação militar se o público em geral perceber as coisas pelo que são, que basicamente os generais fizeram parte da administração do país e da criação dessa crise econômica. Mas não sei se de fato o público em geral vê isso. Se pensarmos em Pazuello, por exemplo, com o fim da pandemia, as pessoas esquecem o que aconteceu e não vou me surpreender se ele for eleito para algum cargo público nas eleições. Não vejo esse clamor público contra os militares acontecendo.
Na maioria das sociedades democráticas, onde os militares não têm uma posição tão alta, haveria indignação se um comandante do Exército fizesse intimidação contra a Suprema Corte em redes sociais. Haveria indignação se generais e coronéis estivessem usando seus nomes militares para concorrer a cargos públicos, o que é basicamente proibido pelo código militar, mas eles estão fazendo isso, no entanto, porque ninguém está aplicando as leis.
Existem leis em vigor para colocar os militares em uma posição mais razoável em termos de relações civis-militares, mas ninguém as está aplicando porque os militares têm esse poder estrutural. Além disso, muitas elites políticas compartilham os objetivos dos militares e, portanto, as elites políticas que deveriam abordar essas questões não estão dispostas a fazê-lo porque basicamente têm os mesmos interesses e não querem os militares como adversários políticos –e isso novamente diz muito sobre seu poder estrutural na política.
Daniel Buarque – Neste contexto de seu poder estrutural, e no contexto de eles vencerem as eleições, quão viável é o documento “Projeto de Nação”, com propostas para serem implantadas no país até 2035, divulgado em maio?
Christoph Harig – Eles basicamente escreveram o que estavam pensando há tempos. Se você ouvisse o general Eduardo Villas Bôas nos últimos dez anos, ele sempre falou sobre tudo o que está ali. É a ideia de que o país perdeu seu senso de direção, a perda de um projeto nacional na democracia. O documento ‘Projeto de Nação’ está basicamente apenas escrevendo suas velhas ideias sobre a exploração econômica a Amazônia, ameaças do exterior, combinado com uma ideia mais favorável ao mercado de privatizar a saúde pública e querer que os alunos paguem por universidades públicas, etc., o que é motivado por sua hostilidade contra a educação universitária. Em todos os lugares a que vão, eles veem doutrinação, mas eles só veem doutrinação se for de esquerda. Por outro lado, o fato de terem aumentado maciçamente o número de escolas militares em todo o país, obviamente para eles isso não é doutrinação, porque eles se consideram os verdadeiros donos de uma postura não-ideológica, o que obviamente é bobagem, mas eles acham que sua posição defende os interesses do país e que os outros, os esquerdistas, querem minar seu próprio projeto para avançar o país.
Não acho que seja uma proposta de governo ou qualquer outra coisa assim, mas é algo que representa as ideias de uma parte significativa dos militares que gostaria de ver parte disso ou tudo implementado nos próximos governos. E com a posição estrutural que eles já têm no atual governo e que manterão no próximo, eles gostariam de ser capazes de implementar isso.
Daniel Buarque – Estamos falando muito sobre as forças armadas, mas muito do que tem falado no Brasil e fora do país nas últimas semanas é sobre a brutalidade policial. Vê alguma conexão entre os dois?
Christoph Harig – Os policiais são possivelmente encorajados pela retórica de Bolsonaro. Faz diferença o presidente dizer que quer defender a polícia contra a bandidagem ou se você tem um presidente que diz que é preciso reduzir a violência policial. Em forças policiais como a Polícia Rodoviária Federal, que está sob responsabilidade do governo federal, acho que faz diferença se você tem um presidente que basicamente encoraja eles.
Mas acho que a questão fica mais complicada quando se analisa as forças policiais estaduais. As polícias estaduais têm níveis muito variados de violência policial nas últimas décadas, mas a polícia de São Paulo também foi muito violenta sob governos do PT, porque o governo do Estado não queria que eles reduzissem a violência. Eu teria cuidado em colocar a culpa de tudo em Bolsonaro. A violência policial tem sido uma parte crucial da história do Brasil em todo o país. A cultura policial vê a violência como pelo menos necessária. Eles pensam que é a única maneira de combater o crime. Às vezes eles glorificam a violência, mas isso faz parte da história institucional, e acho que esse tipo de cultura institucional pode ser reforçada por Bolsonaro. É possível que policiais individuais se sintam encorajados pela postura do presidente e seu apoio a táticas policiais violentas.
Fonte: https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/christoph-harig-militares-ja-sao-os-grandes-vencedores-das-eleicoes-independentemente-do-resultado/
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