Crónica de Bento Domingues*
no PÚBLICO
Dentro
e fora da Igreja católica há que construir uma sociedade mais aberta às
margens, capaz de as trazer para o centro e de ver no seu sofrimento e
estigmatização o fermento da mudança necessária para sociedades mais
livres, dignas e felizes.
1.
São muitas as pessoas, crentes e não crentes, católicas e não
católicas, inquietas com a saúde do Papa Francisco. Para muitos, é ele a
figura pública, a nível mundial, cujos gestos, palavras e intervenções
se situam sempre ao lado das vítimas das muitas loucuras da nossa
história económica, social, política, bélica e religiosa. Toma
iniciativas, simples e arrojadas, destinadas a agregar energias e
esforços para estancar a brutalidade de todas as guerras e agora a
ameaça da guerra nuclear.
Não é um
profeta da desgraça. É uma sentinela da esperança, encorajando e
apoiando todos os movimentos que desenvolvem programas para defender,
restaurar e tornar mais habitável e bela a Casa Comum da família humana.
É normal que encontre resistências no mundo dos ricos e poderosos e na
perversa “teologia da prosperidade” que os apoia e justifica.
Entre
todas as iniciativas deste Papa, destaco a inédita auscultação, à
escala planetária, para que o Sínodo dos Bispos (2021-2023) se torne
Sínodo de toda a Igreja.
Já
li vários contributos de resposta a este grande desafio. Alguns já
figuram no jornal 7Margens. No geral, deixavam-me a sensação de se
centrarem nas questões internas do funcionamento da Igreja. Parecem
esquecer a Constituição Pastoral, Gaudium et Spes (GS), sobre a Igreja
no Mundo Contemporâneo, documento que só foi aprovado em Dezembro de
1965. A sua redacção foi difícil e, por três vezes, começou a partir do
zero, porque os dois primeiros textos foram totalmente rejeitados pelos
Padres Conciliares.
Deveria ser
evidente que este é um texto a refazer periodicamente porque o “Mundo
Contemporâneo” de 1965 não é, em vários aspectos, o mundo que estamos a
viver. O Papa Francisco já o tentou, em vários documentos, a começar
pelo Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho) e alargando cada vez mais
os seus cuidados com o mundo que falta fazer. Situou sempre as suas
intervenções a partir da actualidade mundial. No entanto, a GS
continuará como um marco que não pode ser esquecido porque situa a
Igreja dentro do Mundo, não à margem, evitando as expressões dualistas –
a Igreja e o Mundo – como se fossem realidades estranhas que procuram
dialogar ou ignorar-se. Deve ser claro que não são coincidentes, mas
mesmo que certos movimentos culturais, sociais e políticos procurem
ignorar ou atacar a dimensão religiosa das sociedades, a Igreja é que
não pode satisfazer-se com essa ignorância ou rejeição. É neste mundo
que vive a sua diferença, testemunha, se questiona a si mesma, interroga
e deixa-se interrogar pela sociedade em evolução. Mesmo as suas
expressões cultuais, litúrgicas, não podem ignorar as complexas
transformações culturais, como se estas nada tivessem a ver com as suas
expressões da fé. Isto exige um grande exercício de imaginação (Timothy
Radcliffe).
2.
Neste sentido, encontrei alguns contributos para o Sínodo que
conseguiram recolher a memória da GS e torná-la inspiradora para um
mundo muito diferente do tempo conciliar (1962-1965). Um desses
contributos vem assinado pelos participantes na sua elaboração e
apresenta-se como realização de crentes e não crentes [1]. É um
documento longo, do qual só posso dar algumas referências, mas
convidando à sua leitura integral.
Este
grupo manifesta, explicitamente, onde quer chegar: Ambicionamos
produzir um contributo analítico e propositivo a partir de uma
interpretação exigente dos três verbos assinalados pelo Papa Francisco
como condutores de reflexão: encontrar, mas também “estar, ser e devir
com”; escutar, mas também criar e manter espaços permanentes de diálogo,
participação e interacção; discernir, mas também transformar a Igreja –
“laboratório teológico” – numa Igreja universal de proximidade,
nomeadamente com os excluídos, os considerados “diferentes”, os que
estão nas margens, os que raramente são ouvidos, e também os que,
considerando-se “estar fora”, pretendem, com um olhar atento, “desafiar”
os de dentro.
Identifica, por
outro lado, os problemas e desafios das sociedades contemporâneas:
Falamos de todos os problemas e desafios relacionados com obstáculos e
condições de humanização das sociedades actuais. Isto é, de problemas
sociais, velhos e novos, que vão da persistência da condição de
subalternidade das mulheres nos processos de tomada de decisão e de
todas as formas estruturais de iniquidade, pobreza e exclusão, aos
processos de transição justa nos domínios digital, energético e
ecológico e aos desafios da relação entre a ética e o progresso
científico e tecnológico.
Do
epílogo deste longo texto, retenho: A reflexão que nos uniu na oferta
deste contributo à Igreja católica foi conduzida pela nossa partilha do
valor fundamental da humanização da sociedade. Nas nossas diversas
experiências individuais partilhámos a inquietação pela imperfeição das
instituições e da sociedade em que vivemos. A caminhada sinodal deu-nos
uma oportunidade de cruzarmos esse espanto com a nossa vontade comum de
contribuir para um mundo melhor.
Dentro
e fora da Igreja católica há que reforçar o respeito pela liberdade e
pela diversidade, na partilha da condição humana comum.
Dentro e fora da Igreja católica há que recusar um mundo desumanizado e com uma ética utilitarista que ameace a dignidade comum.
Dentro
e fora da Igreja católica há que construir uma sociedade mais aberta às
margens, capaz de as trazer para o centro e de ver no seu sofrimento e
estigmatização o fermento da mudança necessária para sociedades mais
livres, dignas e felizes.
Uma
Igreja católica que se abra a estes desafios, ouça as companheiras e os
companheiros de jornada e acolha e integre os que excluiu, marginalizou
ou não procurou, fará parte de um mundo melhor e será fermento de uma
mudança social, cultural e espiritual que o melhorará para além da sua
própria mudança interior. É nessa convicção que procurámos contribuir
para este exercício, respondendo ao apelo do Papa Francisco, que
sentimos ser dirigido ao mundo e não apenas à sua hierarquia ou à sua
Igreja.
3.
Neste mundo, ou nos salvamos todos juntos ou morremos todos juntos
porque está tudo ligado. Para o físico Carlo Rovelli [2], ser é, em
essência, interagir. Mostra que o mundo que temos não é o único
possível. O que temos, actualmente, é um jogo de poderes. Depois da II
Guerra Mundial, surgiu a noção clara de que não podia repetir o que
tinha acontecido no séc. XX. Guerra nunca mais!
A
mecânica do pensamento a partir da qual percebemos a realidade, em
termos de relações, deveria ajudar-nos a compreender melhor a política, a
nossa vida em comum, a organização do mundo. Isto significa,
simplesmente, que um país é mais forte se conseguir relações mais
sólidas com os outros. Tudo o que a espécie humana atingiu de importante
foi em colaboração. Nenhuma entidade constrói algo sozinha. A
Humanidade é um imenso esforço colaborativo.
A
pior perda que pode acontecer na história dos povos e das nações é a
perda da memória. Ao não se aprender nada com as brutalidades,
crueldades e destruições das guerras do passado, a vontade do poder de
dominação não hesita em desencadear novos processos de extermínio, com
novos meios de agressão.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO - https://www.publico.pt/2022/07/03/opiniao/opiniao/sinodo-igreja-tempo-2012263
[1] Cf. 7Margens, 23.06.2022; Cf. também o texto do Metanoia, 7Margens, 28/6/2022
[2] Revista do Expresso, 3/6/2022
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