sábado, 16 de julho de 2022

Nem todo homem. Mas sempre um homem

 *

Nem todo homem. Mas sempre um homem 
Intervenção em frente ao Palácio de Belas Artes, 
na Cidade do México, homenageia vítimas de feminicídio 
(Foto: Marcela Donini)

Na noite de 5 de julho, a escritora mexicana Cristina Rivera Garza recebia o prêmio Xavier Villaurrutia pelo livro El Invencible Verano de Liliana. Um momento importante como toda cerimônia de premiação, mas com um componente emocional extra para ela, porque a obra vencedora conta os últimos anos de vida da sua irmã, vítima de um feminicídio ocorrido em 1990, quando Liliana tinha 20 anos. 

Rivera Garza tem mais de uma dezena de livros publicados e tantos outros prêmios, e é professora e fundadora do doutorado em Escrita Criativa em Espanhol na Universidade de Houston (EUA). Celebrava, naquela noite, a distinção por um trabalho que destacou como uma coautoria com a irmã; dela usou anotações em diários e bilhetes, nos quais se animou a mergulhar só 30 anos depois do fato.

Um comentário inesperado levou Rivera Garza a improvisar seu discurso de agradecimento. A crítica veio do escritor Felipe Garrido, que também tem uma longa lista de obras e prêmios, mas que, naquela noite, era um coadjuvante – papel que aparentemente não o contentou, nem para ele nem para o personagem que assassina Liliana, ponto principal do seu questionamento. Para Garrido, o autor do crime e suas motivações ocupam um “lugar muito secundário” na obra de Rivera Garza. Depois de comentários que incluíram uma lista de autores homens que deveriam ser lidos para “iluminar” a leitura de El Invencible Verano de Liliana, recebeu da escritora premiada a seguinte resposta: “Temos que voltar os olhos sempre para elas, e não para seus assassinos. Já vemos os assassinos em todos os lugares”.

Afinal, nem todo homem, mas sempre um homem.

Alternativa ao absurdo

No México, são mortas por sua condição de gênero, em média, 11 mulheres por dia. No Brasil, o índice fica em 3,67. Ontem a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul divulgou o balanço de crimes do semestre. Não foi a primeira vez que os dados de feminicídio apresentaram aumento enquanto outros indicadores caíram. Quem ainda se surpreende com o descompasso desconhece que a motivação por trás dos crimes de gênero é bem diferente daquelas que ajudam a explicar outros homicídios, e está basicamente fundada no machismo. Não é ciúmes, não é amor em excesso, não é loucura. É o pior crime que o patriarcado provoca.

Recentemente, diferentes episódios de violência contra a mulher têm tomado o noticiário brasileiro, já repleto de outros absurdos. Um ciclo violento que, como já apontei aqui neste espaço, nos desgasta. A socióloga Sabrina Fernandes escreveu, nesta semana, sobre como é necessário resistir a esse choque para que possamos encontrar alternativas de luta, alternativas ao absurdo.

Em uma conferência realizada no ano passado na Universidade Nacional Autônoma do México, Rivera Garza falou justamente sobre a raiva como motor para a luta feminista. Uma luta coletiva na qual “mais do que nos reconhecermos, nos desconhecemos, ou seja, nos reconhecemos como outras, como aquelas que seríamos antes da chegada da desgraça do patriarcado”. Sua fala foi publicada em um livreto chamado Ya para siempre enrabiadas.

As mexicanas feministas já vêm transformando indignação em ação. Diferentes intervenções nas ruas da Cidade do México homenageiam vítimas do feminicídio, um movimento que leva para o espaço público um crime que, em sua maioria, ocorre em lares ou contextos privados. Uma delas está em frente ao Palácio de Belas Artes, e exibe cruzes onde se lê os nomes de algumas vítimas.

Foi justo neste espaço que, ainda durante a cerimônia de premiação, Rivera Garza sugeriu ampliar a visibilidade à memória dessas mulheres que perderam a vida por sua condição de gênero. A proposta da escritora inspira-se no projeto do artista Günter Demming, que homenageia vítimas do holocausto em diferentes países europeus instalando pelas ruas paralelepípedos com placas de latão que levam os nomes e breves biografias dos mortos entre 1933 e 1945. Já são mais de 75 mil

Um convite

Que tal pensarmos juntas em uma iniciativa para não deixar cair no esquecimento as mulheres vítimas de feminicídio no Estado? Escrevam pra mim: marcela@matinaljornalismo.com.br

Venham sem medo, chicas, porque na Escola da Raiva, como nos ensina Cristina Rivera Garza, sempre tem recreio.

* Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/newsletter/carta-da-editora/nem-todo-homem-mas-sempre-um-homem/

Nenhum comentário:

Postar um comentário