segunda-feira, 25 de julho de 2022

“Democracia” sem justiça social

 Por Waldenyr Caldas*

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A democracia brasileira que hoje conhecemos precisa sair do papel, dos textos jornalísticos e acadêmicos, dos artigos e parágrafos constitucionais para chegar à população. Não deveria ser tema de discussão meramente protocolar como tem sido. Há que se pensar em uma práxis democrática que contemple toda a sociedade. Seria muito bom, ainda, que os políticos deixassem de lado o discurso empolado quando invocam a Carta Magna, ao se verem diante do microfone de algum veículo de comunicação de massa. Mas esta Constituição precisa chegar também à sociedade, exatamente como os candidatos aos cargos dos poderes Executivo e Legislativo preconizam ao povo em seus discursos, à procura de votos para se elegerem. Nesse momento sim, o verbo desses candidatos fala de uma democracia que todos nós desejamos. No entanto, depois de eleitos, eles mudam completamente seu comportamento e a rotina da desigualdade e da injustiça social permanece a mesma desde os tempos da chamada Velha República, como assinalam os historiadores brasileiros quando falam das lutas sociais em nosso país. Pedir voto ao eleitor é uma atitude que envolve promessas de campanha e é legítimo que se faça. Afinal, o candidato precisa mostrar-se ao eleitor, apresentar-se e falar de seus projetos para a nação.

É nesse momento também que o político se torna dócil, afável, humilde, atencioso, acessível e simpático, muito simpático. Cumprimenta as pessoas com apertos de mãos, abraça quem estiver perto, se deixa fotografar, põe crianças no colo, distribui o popular “santinho” eleitoral, entre outras coisas, que bem caracterizam o papel do político à procura de votos. Ao mesmo tempo, convenhamos: tem algo também de demagogia e de um populismo já bastante esgarçado, mas que funciona nesses momentos. Porém, essa legitimidade a que me refiro só se consolida, só tem o respaldo da sociedade, só tem seus efeitos práticos, quando o que foi prometido for efetivamente executado. Aí sim, o ato político se conclui. O eleitor votou esperando com isso, melhorar a vida da população em seu país, e finalmente foi respeitado ao apoiar com seu voto, a eleição do candidato que realizou suas promessas.

Mas, salvo exceções (e felizmente elas existem), para o desencanto de milhões de eleitores não é isso o que ocorre. O que resulta em grande número são as promessas “esquecidas” e as explicações fora de tempo por não as realizar, com muitos argumentos vazios e notoriamente inverídicos, algumas vezes até mesmo desonestos. Em outros termos, caro leitor, isto é um estelionato eleitoral que ludibria a boa-fé do eleitor e desrespeita os princípios básicos da ética política, já tão combalida há muito tempo, se é que algum dia ela foi realmente respeitada. Na dúvida, é melhor acreditar que sim. Afinal, a História nos mostra a existência de políticos conscienciosos que fizeram, do seu métier, a dedicação ao Estado e à sociedade objetivando melhorar a vida do seu povo.

Convém, portanto, fazer justiça a quem merece. É necessário “separar o joio do trigo”, como diz o breve e preciso aforismo popular retirado do Novo Testamento. Em nosso país, estamos às vésperas das eleições gerais que compreendem nada menos que cinco diferentes tipos de cargos a serem ocupados pelos eleitos. São eles: presidente da República e seu vice-presidente (em chapa única), governadores, senadores, deputados federais e deputados estaduais. Como se vê, esta é a melhor oportunidade para escolhermos e votarmos em quem realmente possa representar a sociedade no Congresso Nacional uma vez que, teoricamente, vivemos em uma democracia representativa. São 513 deputados federais e 81 senadores que vão legislar para o País, buscando aprimorar sempre as relações entre estado e sociedade e, por extensão, objetivando, evidentemente, melhorar a vida da população do seu país.

A Constituição, também conhecida como Carta Magna, apesar de nesses últimos três anos e meio ter sido desrespeitosamente vilipendiada pelos poderes Executivo e Legislativo, ainda serve como norte para que o povo tenha um suspiro democrático. Fraco, bem fraco mas, enfim, um suspiro. Neste momento ele está até sem voz, há três anos e meio. Apesar disso, a Constituição é a guardiã da ordem e da liberdade. Defendê-la da maledicência e da sistemática agressão do atual governo ou de qualquer outro, é nosso dever como cidadãs e cidadãos e aqui não há motivos para tergiversações. Para isso, entre outras coisas, é que serve o nosso voto nas próximas eleições gerais. A Constituição, sob qualquer pretexto, precisa, deve e será respeitada, a despeito da sombra sinistra, das turvas nuvens que pairam no ar, com insinuações de golpe em caso de derrota do atual governo. Não, não, isto não acontecerá, não há mais espaço para aventureiros acidentais, acredito.

Estão em pauta permanente os direitos e deveres constitucionais de todos nós para com o Estado e vice-versa. Teremos ainda a escolha de um presidente da República, chefe do Poder Executivo que, ao ser escolhido pelo sufrágio universal, governará nosso país por quatro anos. Este é um momento crucial para o Brasil. Nós, eleitores, precisamos estar muito atentos ao oportunismo político daqueles candidatos interessados apenas e tão somente no status de político federal, no aberrante desfrute do foro privilegiado (tecnicamente chama-se “foro especial por prerrogativa de função”), nas benesses do cargo político, nos seus proventos mensais e demais vantagens que lhes são oferecidas.
Em época de eleições, todas essas figuras oportunistas aproveitam para deitar falação sobre democracia de forma sempre pomposa, com um discurso eloquente, contundente, mas nada fazem objetivamente para melhorar as condições de vida do nosso povo. Com uma retórica bacharelesca para impressionar seus ouvintes, esses políticos têm no discurso demagógico o instrumento necessário para mais uma vez burlar a boa-fé do eleitor. Nesse momento, entra em cena o jogo do “vale tudo”, e o eleitor precisa estar muito atento para não ser trapaceado novamente pela impostura comportamental do candidato que procura passar a imagem de que é igual ao eleitor. Não é, nessas ocasiões é que o engodo substitui a verdade e a honestidade. Vamos ficar muito atentos.

Em face de situações como estas, é que os estudiosos de ciências políticas têm se dedicado a aprofundar suas análises sobre democracia. Os professores da Harvard University, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em seu livro Como as Democracias Morrem, nos dão um quadro bastante sombrio sobre o futuro da democracia. Para estes cientistas, as democracias não mais desaparecem com um abrupto golpe de estado. Não há violência, o belicismo militar não tem mais a função de depor governos legitimamente eleitos. A tomada do poder se daria em um processo mais lento de enfraquecimento dos “aparelhos ideológicos de Estado” (a expressão é de Louis Althusser), como, por exemplo, o Poder Judiciário, os media e o desgaste natural lento, mas constante dessas democracias, especialmente as mal administradas, mas não só.

Pois bem, mas o estudo desses cientistas políticos, que analisam exaustivamente as democracias tradicionais, aprofunda-se na eleição de Donald Trump e no que ela representou para a democracia do seu país. Ora, o resultado final e melancólico da gestão deste presidente todos nós já conhecemos muito bem. Ainda que em linhas gerais, é preciso registrar, mesmo de passagem, que a tradicional democracia norte-americana deu alguns passos para trás em direção ao autoritarismo, representando um sério risco para a governança de um país, cuja imagem internacional está (ou estava) estreitamente ligada às liberdades democráticas. O presidente do Comitê de Segurança Interna da Câmara, Bennie Thompson, além de acusar formalmente o ex-presidente Donald Trump de ter liderado uma tentativa de golpe contra o novo presidente, acrescenta ainda que “… a democracia continua em perigo. A conspiração para frustrar a vontade do povo não acabou. Há aqueles que têm sede de poder neste país, mas não têm amor ou respeito pelo que torna os EUA grandes.”

Não será mera coincidência se algo muito semelhante ocorrer em nosso país nas próximas eleições gerais. Não por acaso, existe uma grande identidade político-ideológica entre as gestões do ex-presidente Trump e a do atual presidente do Brasil. A convergência de opiniões e a forma de administrar o Estado se assemelham muito, justamente porque ambas têm em suas raízes os princípios ideológicos que nortearam o governo fascista de Benito Mussolini, de 1922 a 1943. Discorrer sobre este período de governo na nação italiana é desnecessário. Ele é sistematicamente estudado nas universidades brasileiras e os media têm lembrado muito deste período da história, justamente pelo que ocorre neste momento no Brasil. Percebe-se nos meios políticos, isto sim, grande preocupação se um dos candidatos de oposição vencer as eleições para a presidência da República.

Há um grupo de estudiosos, críticos e analistas políticos dos veículos de comunicação de massa que teme ocorrer algo muito semelhante ao que sucedeu nos Estados Unidos com a derrota de Donald Trump, mas, no caso brasileiro, com um resultado final imprevisível. Embora não seja necessário mencionar aqui todas as ameaças feitas até agora nessa direção, algumas veladas, outras explícitas mesmo, vale lembrar apenas dois exemplos emblemáticos, ambos ocorridos nas comemorações da Independência do Brasil, inicialmente em Brasília e depois em São Paulo. Na capital federal, na Esplanada dos Ministérios, por diversas vezes em seu discurso, o presidente ameaçou o STF – Supremo Tribunal Federal e minimizou a importância jurídica deste órgão para a democracia no Brasil, considerando-o desnecessário.

Foi em São Paulo, no entanto, que as ameaças do presidente bem lembraram o governo italiano de Benito Mussolini. Primeiramente, porque em seu discurso, enquanto esgoelava-se, disse que as eleições serão uma farsa e que só deixará o cargo de presidente “preso ou morto”. Logo em seguida, incitou o público que o ouvia a desobedecer às decisões da justiça. A essa altura, já era evidente o tom golpista em suas palavras. Ainda assim, talvez não satisfeito com seu verbo atravessado, fora do tom, tresloucado e desafiador até aquele momento, resolveu questionar a lisura das eleições por meio do voto eletrônico, com o objetivo de anarquizar, de causar mesmo a balbúrdia política no País. Disse ele que não vai “participar de uma farsa como essa patrocinada pelo TSE – Tribunal Superior Eleitoral.”

Mas, rigorosamente, caro leitor, não é nada disso. Como já dizia O Pasquim, famoso jornal de humor sobre política nos anos de 1970, “o buraco é mais embaixo”, e as intenções malévolas do presidente têm o mesmo endereço de hoje: permanecer na presidência da República, no Palácio da Alvorada, sob qualquer pretexto. Não sejamos pueris, acreditando que são apenas ameaças e comportamentos mal-intencionados. São sim, mas não só. Há algo de sub-reptício e, portanto, devemos estar atentos. Com esses argumentos e as atitudes de uma pessoa mal-educada, o presidente está querendo que a população brasileira desacredite nas instituições da justiça do seu país, com o objetivo precípuo de preparar um possível golpe político em caso de derrota, sob a alegação de que as eleições foram fraudadas e ele era o vitorioso, portanto foi roubado. Com esse argumento ele tentaria um golpe de Estado, como fez seu ídolo político, Donald Trump, mas que redundou em um grande fiasco.

O presidente, além de tudo, tem ainda seus asseclas que, na bem-humorada linguagem do nosso cotidiano, são chamados de “pau mandado”. Um deles é o deputado federal Daniel Silveira, apologeta contumaz do AI-5 promulgado em 13 de dezembro de 1968. Este foi o instrumento mais cruel de repressão que consolidou a prática desbragada da tortura durante os governos militares entre 1964 e 1985. Em um vídeo gravado em fevereiro de 2021, este deputado ofendeu ministros do Supremo Tribunal Federal, propôs a extinção deste importante órgão jurídico e pediu a volta daquele Ato Institucional. Não, não, está tudo errado e temos que reagir a esses delírios paranoides reacionários de forma civilizada e democrática. O presidente e seus asseclas veem o STF como um inimigo que os persegue e por isso gostariam de extingui-lo. Ora, ora, isso nada mais é do que um transtorno delirante decorrente de insegurança e da consequente mania de perseguição. Não é assim que podemos avançar e esperar por dias melhores. Para ajudarmos a nação a se reerguer, a retomar o caminho em direção à justiça social, a melhor oportunidade que temos (mas só isto não bastaria) está precisamente nas próximas eleições gerais em nosso país. Precisamos escolher com muito equilíbrio e convicção a quem confiaremos nosso voto.

Este já seria um grande passo em direção ao aperfeiçoamento da democracia e da vida em uma sociedade onde verdadeiramente poderia haver justiça social, ou seja, algo que nosso país nunca teve e não tem. Não é com quantias irrisórias de dinheiro que o governo federal tem distribuído, com intenções fundamentalmente eleitoreiras, que se faz uma sociedade justa. Os veículos de comunicação sistematicamente noticiam essas ajudas oportunistas que não solucionam, mas apenas amenizam a fome de milhões de brasileiros desempregados, humilhados e compelidos pela incompetência do Estado a viver na miséria. A criação do Cadastro Único para Programas Sociais é um arremedo, um engodo, e não soluciona este grave problema. Tanto é assim, que ele foi criado em 2001 e de lá para cá o problema permanece o mesmo, mas com alguns agravantes. Seu efeito é quase inócuo. Seria algo assim como dar um medicamento meramente paliativo para o enfermo com doença grave em fase terminal. Ora, ora, o povo não precisa viver de caridade, ele precisa é de empregos, isto sim.

De acordo com os dados do IBGE, temos nada menos de 27 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza. O relatório O Estado de Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, publicado em 6 de julho de 2022 pela ONU, aponta que a fome aumentou em nosso país. Antes da pandemia eram 37,5 milhões. Entre 2019 e 2021, este número chegou a 61,3 milhões de pessoas passando fome. É evidente que, por uma questão humanitária, mas também para minorar sua incompetência, o Estado pratica este ato de caridade porque, afinal, é o último recurso que se pode usar para que as pessoas não morram de inanição. Ainda assim, lamentavelmente, sabemos que isto acontece em nosso país.

Qualquer manual de macroeconomia nos mostra que ampliar o mercado de trabalho e distribuir melhor a riqueza que produzimos, principalmente, são soluções eficientes para atenuar as diferenças abissais das desigualdades sociais, e nesse aspecto vamos muito mal. E a grande ironia em todo esse quadro desolador para nós, é que o Brasil é o quarto maior produtor mundial de alimentos. Somos reconhecidamente uma potência no agronegócio. Basta ver, por exemplo, que em 2021 a participação desta atividade econômica no PIB do País foi de 27,4%.

Diante deste quadro, portanto, precisamos ter consciência de que só as eleições, só o direito ao sufrágio universal não nos leva a uma verdadeira democracia, nem à justiça social. Esta última é um dos fundamentos deste regime político. Não é difícil se constatar este fato. No Brasil, desde a Proclamação da República em 1889 para cá, já tivemos 37 presidentes e o atual é o 38°. Por exigência da liturgia de posse do cargo mais importante do Poder Executivo, todos esses presidentes juraram obedecer rigorosamente os 250 artigos da Carta Magna, mas isso não acontece. Na atual Constituição, no artigo 3°, parágrafo III, pode-se ler o seguinte: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.” As tentativas de presidentes anteriores em resolver essas questões resultaram irrelevantes, e apenas atenuaram por algum tempo o drama da pobreza extrema de uma parcela bem numerosa do povo brasileiro. Alguns presidentes até que avançaram um pouco nessa direção, mas apenas um pouco mesmo. É o caso, por exemplo, de Getúlio Vargas durante seu primeiro governo, que os historiadores chamam de “Estado Novo” (1937-1945). Foi nesse período que se criou a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho por meio do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, para fazer justiça ao trabalhador e lhe dar amparo legal. Rigorosamente, a CLT melhorou as relações entre o capital e o trabalho, mas no decorrer do tempo não resolveu e nem amenizou as desigualdades sociais, muito menos a injustiça social. Já entre os anos de 1995 a 2011, tivemos outro período de sensível melhora, mas, lamentavelmente, não prosseguiu.

Em 2018, o atual presidente em sua campanha para se eleger, assumiu o compromisso com todos os brasileiros de acabar com a fome da população muito pobre e à margem da sociedade. Prometeu eliminar a inflação que corrói nossos salários, e especialmente das populações pobres, nos assegurou que iria combater rigorosamente a corrupção e, finalmente, extirpar a violência que aflige a todos nós. Pois bem, nada disso aconteceu em seus três anos e meio de mandato até agora e, ainda que queira cumprir suas mais importantes promessas de campanha, não há mais tempo para fazê-lo. Ao contrário do que prometeu, como vimos, a fome em nosso país aumentou. A humilhação das pessoas em filas gigantescas à espera de receber alimentos doados por instituições filantrópicas é algo profundamente assustador, dramático e chocante de se ver. Na mesma proporção, uma coisa vergonhosa diante da apatia dos nossos dirigentes e de suas falsas promessas.

Não estou trazendo algo novo. Este fato é de domínio público, com direito às imagens dos canais de televisão de todo o País e do exterior exibindo esta tragédia. No entanto, é preciso agir. A inflação propaga-se a cada mês e nos atormenta cada vez que vamos comprar qualquer objeto ou produtos alimentícios. A corrupção cresceu ainda mais e ganhou status ministerial no MEC – Ministério da Educação e Cultura, e a violência foi premiada com o apoio oficial da presidência da República, ao serem publicados em 12 de fevereiro de 2021 os Decretos 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630 que facilitam o acesso a armas de fogo às cidadãs e aos cidadãos. Neste quesito a situação só não é mais aflitiva porque o STF – Supremo Tribunal Federal interveio considerando ilegais alguns decretos ainda mais cúmplices da violência armada apoiada pelo Palácio do Planalto.

Mas, para a decepção ainda maior de todos nós, o que temos do atual chefe do poder Executivo é a forma de interpretar os problemas mais sensíveis da população brasileira. Diferentemente de todos seus antecessores, a saúde pública para este senhor não tem a mesma importância. Muito embora não verbalize isso, seus atos comprovam que ele é assim mesmo. No auge da pandemia, quando a população estava atônita e desentendida, procurando alternativas para se livrar do coronavírus e muitas pessoas infelizmente morrendo, o presidente primou pela insensibilidade, uma espécie de “marca registrada” da sua personalidade. Além de demonstrar indiferença aos benefícios da vacinação em massa, se limitou a dizer que a pandemia “é uma gripezinha” e nada fez em favor da sociedade. Ao contrário, procurou sempre boicotar a vacinação para a população, até substituindo ministros da Saúde que com ele não concordavam.

O desprezo do presidente sobre os efeitos devastadores da pandemia nos passava a impressão de que ele estava tratando de um assunto prosaico e desimportante. Em certo momento, chegou a fazer chacota sobre os efeitos da vacina, ao comentar o fato de o Laboratório Pfizer não se responsabilizar pelos efeitos colaterais do seu produto. Certamente com a intenção de fazer gracinha e ser simpático aos negativistas que o apoiavam. Pois justamente, em face de eventual efeito colateral da vacina, ele disse a quem fosse se vacinar: “Se você virar um jacaré, é problema seu”.

É isto. Este breve comentário sobre o nosso regime político, e os próprios políticos, nos deixa ver que alguns termos e expressões como “Estado democrático de direito”, “democracia”, “estado democrático”, “liberdades democráticas” são colocados de forma aleatória, quase automática. A rigor, eles servem muito mais para promover a imagem pública desses cidadãos, que passam a ser vistos pela população como verdadeiros democratas, e isso sempre traz votos. No entanto, se democracia, entre tantas coisas boas, é ter o direito à liberdade de expressão, ao emprego, à educação, à justiça social, entre outros, então devemos pensar se no Brasil temos a democracia que preconiza a Constituição de 1988. É fora de dúvida que nossos direitos são respeitados no tocante, por exemplo, à liberdade de expressão. Este é um dos princípios fundamentais do Estado democrático. Para que a juventude de hoje tenha ideia do que foi o período do autoritarismo militar (1964-1985), onde não havia a mínima liberdade de expressão, este artigo jamais seria publicado nessa época. No entanto, devemos lembrar sempre que existem outros princípios igualmente basilares, para termos uma democracia que justifique este conceito, ou seja, o “poder do povo” ou o “povo no poder”.

Em uma análise ainda que rápida sobre nosso país, veremos que o desemprego sempre foi e permanece como uma realidade extremamente incômoda e, ao mesmo tempo, fator determinante de desigualdade social. A educação tem andado para trás. Basta ver, por exemplo, que, entre 187 países, somos o 79° no ranking do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, de acordo com dados da ONU. Embora o analfabetismo venha diminuindo, ainda temos 11 milhões que não sabem ler nem escrever. Este, claro, é outro fator de desigualdade social.

Agora, apenas para encerrar este artigo, devo dizer que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil desde há muito tempo têm apresentado um desempenho pífio, uma política amnéstica, onde as promessas de campanha após as eleições tornam-se rapidamente voláteis. A justiça social é o tema mais “nobre” em época de campanha eleitoral, mas é também o maior desafio e a maior ameaça para os países onde os políticos se julgam democratas. Um dos pilares da nossa Constituição, a justiça social foi colocada à sorte de cada um de nós, brasileiros. Os políticos, com raríssimas exceções, não levam a sério seu compromisso com este princípio fundamental da democracia. Não é possível, neste artigo, comentar todas as imperfeições do que se fala sobre nossa democracia. Mas, seja como for, até onde entendo o que é realmente este regime político, ou seja, o poder do povo, então não poderia haver tanta miséria como nos mostram os dados do IBGE e da ONU, já mencionados acima e lamentavelmente confirmados quando vemos pessoas morando nas ruas, sob viadutos, em praças públicas, apenas para citar alguns casos. Ora, se “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos diretamente, nos termos da Constituição”, então por que com este poder, uma parte tão expressiva deste mesmo povo vive em condições sub-humanas?

A essa altura, somos compelidos a acreditar que a tão preconizada justiça social é, na verdade, apenas uma peça de ficção na política brasileira, um engodo a mais em época de eleições. Não é concebível, também, que a Constituição do nosso país seja sistematicamente vilipendiada pelos próprios políticos, que deveriam dar o exemplo de cidadania e respeito. A Carta Magna de 1988, como sabemos, diz que os governantes têm o compromisso com o povo, de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.” Além disso, “construir uma sociedade livre, justa e solidária.” Pois é, mas nada disso acontece. É profundamente lamentável constatar que, até agora, as autoridades do País não respeitaram o juramento que fizeram, de cumprir o que determina a Constituição.

Nesse momento, o Brasil anda para trás e não é possível acreditar que somos um país efetivamente democrático, apenas por termos direito ao voto e à liberdade de expressão. Esta é apenas uma parte que forma o todo da democracia. Este regime político para ser realmente democrático, não deve e não pode ser fatiado, compartimentado, dividido em partes, não existe democracia pela metade, nem “democracia relativa”, como disse o ex-presidente Geisel aos jornalistas franceses, em 2 de maio de 1977, quando lhe perguntaram se seu governo no Brasil era democrático. Não temos um dos princípios basilares da Constituição: a justiça social. E a maior prova disso, além das constatações do IBGE e da ONU, está no contingente humano maltrapilho que perambula pelas ruas do país à procura de quem lhe faça caridade. Por exemplo, dando-lhe osso de boi e pele de frango para preparar a única refeição do dia. Emprego não há, moradia não há, alimento não há, dinheiro, evidentemente, não há. A dignidade humana também não há mais, ela foi ceifada pela injustiça social de um país onde os políticos não respeitam a Constituição, muito menos os princípios fundamentais da democracia. Mas, há que insistir, temos eleições gerais brevemente e é nossa grande oportunidade para melhorarmos o país. Assim, apenas para lembrar a expressão de Hannah Arendt em sua obra A Condição Humana, quando fala de democracia representativa e democracia direta, não precisamos todos nós sermos o homo politicus. Não precisamos fazer da política a grande razão de nossas vidas, mas, neste delicado momento em que vive o País, é da maior importância irmos às urnas com a plena consciência do nosso voto.

* Professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP - Imagem da Internet

Fonte:  https://jornal.usp.br/artigos/democracia-sem-justica-social/ 22/07/2020

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