segunda-feira, 25 de julho de 2022

Não temos ideia de como chegamos a acreditar no que acreditamos

Luiz Felipe Pondé*

As reformas foram anunciadas pelo Ministério da Cultura grego na última semana — Foto: Aris MESSINIS / AFP 

Foto: Aris MESSINIS / AFP

O filósofo britânico A.N. Whitehead (1861-1947) suspeitava de que os avanços numa civilização são processos que podem destruir as civilizações em que eles se instalam.

Estaríamos diante de um efeito colateral indesejável dos avanços nas civilizações?

A verdade é que suspeitas como essas podem ser colocadas diante da crença ingênua de que, se entendermos racionalmente as coisas —supondo que isso seja compreendê-las nas suas relações causais na realidade—, saberemos como "fazê-las melhor".

Descobrimos que existem componentes sociais e históricos na identidade sexual —exemplo de avanço no entendimento da realidade— e daí concluímos que sabemos como manipular tais componentes e organizá-los melhor do que estavam organizados até então.

Descobrimos que há furos na fundamentação das crenças religiosas —outro exemplo de avanço no entendimento da realidade— e daí concluímos que destruindo a religião faremos pessoas mais felizes e melhores. 

Inventamos a ciência moderna —outro exemplo de avanço no entendimento da realidade— e daí concluímos que cientistas são pessoas mais inteligentes e livres de viés cognitivo como outros mortais.

Mergulhemos mais fundo na história. A filosofia foi inventada na Grécia antiga —grosso modo, a partir do século 5 a.C.—, daí concluímos que esse fato fez bem para Grécia de então e produziu um melhor entendimento da realidade e melhores ações nos gregos a partir de então.

Não parece ser a opinião de Gilbert Murray (1866-1957), historiador da religião e literatura grega antiga. Murray tem um conceito que me parece muito operacional para explicar por que experimentos como a modernidade ou a pós-modernidade não dão tão certo quanto seus adeptos imaginam que dão —ou mesmo eventos como a democracia, o teatro grego e a filosofia não implicaram em nenhum grande "avanço" na vida grega antiga. Vejamos.

Na sua obra "Five Stages of Greek Religion" (cinco estágios da religião grega), Murray descreve o processo contínuo e cheio de rupturas da religião grega antiga mostrando que, ao longo dos séculos, a religião grega foi se desfazendo e refazendo num processo não passível de ser reproduzido racionalmente nem repetido intencionalmente.

Eis o "conglomerado herdado" que caracteriza toda forma de ancestralidade cultural —e por cultural aqui conta-se moral, religião, política, sociedade. O termo nos leva à ideia de tempo geológico para significar que processos de constituição de conglomerados culturais herdados levam milênios para se dar e nunca terminam de se constituir. E mais: ninguém sabe sua chave de funcionamento, porque ela não existe.

Por isso que quando acreditamos que estamos num processo de destruição de crenças, superstições, preconceitos e obsessões coletivas para reconstruir racionalmente uma cultura damos com os burros n’água, como a crença moderna no progresso do mundo.

O aluno de Murray, E.R. Dodds (1893-1979) suspeitava de que o surgimento da filosofia grega foi um caso como esse. Começando a corroer o conglomerado herdado do ancestral grego —a religião, a moral, os costumes, as crenças, os sonhos—, a filosofia racionalista grega não conseguiu colocar "nada no lugar".

Em momentos de grandiosidade de uma civilização, seus habitantes podem experimentar a desmedida de crer que podem construir conglomerados herdados ao sabor dos seus gostos.

Nestes gostos de hoje estão os delírios de uma espiritualidade de consumo que brinca de remendar o conglomerado antigo-medieval destruído pela experiência moderna.

As sociedades não se constituem a partir de processos de engenharia social. Um conglomerado herdado é uma montanha de camadas que se superpõe em tempo geológico sem que ninguém tenha a capacidade de saber como se deu. Os deuses, os valores, os comportamentos, os afetos vão sendo "criados" ao sabor do acaso histórico das sociedades e em cada época eles parecem ser obviamente coerentes e reais para as pessoas habitantes de cada época.

Não temos a mínima ideia de como chegamos a acreditar no que acreditamos nem valorizar o que valorizamos.

* Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e "Política no Cotidiano". É doutor em filosofia pela USP. 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2022/07/nao-temos-ideia-de-como-chegamos-a-acreditar-no-que-acreditamos.shtml

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