segunda-feira, 29 de abril de 2019

O papel das ciências humanas

Jean Pierre Chauvin* 

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De tempos em tempos, nós, que pesquisamos e discorremos sobre objetos relacionados à cor, ao som e à forma, precisamos vir a público para desdizer medidas estreitas e reafirmar o papel das humanidades, ou ciências humanas, ou soft sciences, perante um mundo cada vez menos favorável à diversidade e cada vez mais standard, como supuseram Herbert Marcuse e Edgar Morin[1], entre as décadas de 1960 e 1970. Decorre daí a ironia máxima: os terráqueos ocupam hemisférios metrificados, mas sem maior espaço para a poesia, o exercício da sensibilidade e a reflexão. Na hipervalorizada Era da Comunicação, cabe um pouco de quase tudo; porém anda bem menor a preocupação com a linguagem.

Isso talvez aconteça porque determinadas matérias, classificadas como conteúdos “das humanidades”, sejam concebidas e percebidas não como importantes em si mesmas, mas como apêndices ou, quando muito, ferramentas de apoio a outras áreas do conhecimento. Por exemplo, é comum relegar pesquisadores de letras, inseridos em grupos de estudos multidisciplinares, a papéis considerados secundários, dentre eles, a incumbência de redigir breves enunciados ou de revisar o texto alheio (em todos os aspectos que ele comporta: conteúdo, expressão, gênero, tópica, estilo, ortografia, sintaxe, coesão, coerência, forma etc.).

Evidentemente, não se está a sugerir que os profissionais de ciências humanas rejeitem o diálogo com outras áreas do saber; é justamente o contrário. Aliás, se o trânsito entre áreas do conhecimento estivesse interditado, não teríamos vários médicos a fazer literatura, como Manuel Antônio de Almeida, João Guimarães Rosa ou Moacyr Scliar. Isso sem contar o advogado Oswald de Andrade, o farmacêutico Carlos Drummond de Andrade ou o engenheiro Euclides da Cunha.  Também houve aqueles que atuaram como engenheiros do verso, como João Cabral de Melo Neto, franco admirador das estéticas de vanguarda e da arquitetura concebida por Le Corbusier:

 “O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre”[2].

Um tanto resignados ou amortecidos, frequentemente somos vistos como profissionais de menor calibre, cujo trabalho teria pouca relevância e se pautaria pela falta de seriedade (não salvamos vidas, não projetamos moradias, não consertamos carros ou eletrodomésticos). Em determinados contextos, costuma-se caracterizar as disciplinas que lecionamos como itens de “perfumaria” acadêmica. Essa discussão, banalizada desde que se passou a veicular a hipótese de que vivíamos no mundo pós-histórico, pós-verdadeiro e pós-ideológico – em aderência ao chamado “pós-moderno” – é bem mais antiga do que se pensa.

No Ocidente, a controvérsia estava na base da filosofia socrática, cinco séculos antes de Cristo. Bastaria ler o que diz o Górgias de Platão, a contrapor sofistas e filósofos. No diálogo, a personagem Sócrates descreve a retórica como procedimento vicioso praticado por sofistas. Arte supérflua, ele aproxima a retórica da cosmética e da culinária: o domínio de suas técnicas permitiria temperar qualquer assunto com colorido e sabor, sem que a verdade estivesse assegurada. Esse componente binário, característico no pensamento platônico, será reabsorvido pelo Cristianismo, desde sua disseminação no mundo romano, séculos depois.

Seria ocioso relembrar o papel fundamental dos Studia Humanitatis, tomada a Cícero por Coluccio Salutati, no século XIV, em contraposição ao paradigma que norteava o ensino eclesiástico. Tampouco valeria relembrar o papel da gramática, da retórica e da lógica, no Trivium – fundamentos do ensino jesuítico, entre 1540 (ano de fundação da Companhia de Jesus, por Ignácio de Loyola) e 1759, quando a ordem religiosa foi expulsa no reino português, em maior parte graças às maquinações de Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro superpoderoso de D. José I. Em termos que dizem respeito à educação, recorro a Roxane Rojo, para relembrar os vínculos entre o que propunha muito antes de nós:

“Pensar as mudanças curriculares como determinadas por mudanças sociais mais amplas implica um tratamento transdisciplinar que dialoga com um primeiro saber de referência, que é a história da escola e, em especial, a história das disciplinas escolares. No caso da disciplina de língua portuguesa no Brasil, ela é oficialmente introduzida nos primeiros currículos oficiais para o ensino secundário somente em 1838, de maneira bastante tímida, convivendo com a formação clássica do trivium – gramática, retórica e lógica ou filosofia – de maneira quase instrumental. Isto é, indiciando um ainda tímido movimento de formação nacional, o português é introduzido como disciplina dos anos iniciais do currículo do Colégio Pedro II, com o intuito de preparar – de maneira mais fácil, pois em língua nacional – o estudo do trivium que se exercia em latim”.[3]

Em nosso tempo, a implantação de plataformas e currículos on-line estimulou a que se aplicassem pressupostos, métodos e objetivos, quase sempre oriundos das ciências biológicas e exatas, às humanidades. Não se trata de nos posicionarmos contrariamente aos avanços da ciência, às teorias da astrofísica ou à evolução da terapêutica médica; mas de reivindicar a importância das categorias de tempo, ação e espaço em suas múltiplas formas de imitação, registro ou representação: fundamentos do trabalho realizado pelo cientista humano.

Um manuscrito italiano redigido no século XV terá maior ou menor relevância que um tratado de medicina do século XIX, ou um manual atualíssimo de autoajuda, coalhado de lugares-comuns, a encadernar felicidades fáceis e simplistas do nosso tempo? Coincidência ou acaso, as perguntas mais óbvias não costumam ser enunciadas.

Por exemplo: “Por que a historiografia e o ensino de história costumam ser alvejados pelos regimes totalitários?”; “Por que uma parte da escola brasileira ainda subestima o papel da geografia, da filosofia e da sociologia, na trajetória dos estudantes?”; “Por que grande parte dos alunos lê resumos, em lugar das obras literárias recomendadas pelos vestibulares?”. Tento responder: em parte porque o lucro e, com ele, a ética da recompensa tomaram o lugar dos conteúdos e métodos que deveriam ser reservados a estimular a atuação de seres humanos melhores.

A esse respeito, convido a(o) internauta a realizar uma breve pesquisa. Adivinhará quais os cursos mais bem avaliados na Universidade de São Paulo? Ora, ora. Justamente aqueles que têm as “humanidades” por objeto, causa e efeito. Resulta daí a pergunta fundamental: qual será a importância das ciências humanas numa sociedade que está a se desumanizar?

A resposta deveria ser óbvia; mas, a julgar pela extinção da ideia ancestral de alteridade, que respalda a imposição tirânica de padrões e move a indiferença com relação aos colegas de dor e ofício, daqui para frente precisaremos relembrar, mais amiúde, os múltiplos papéis das humanidades e a trajetória empenhada de seus dignos representantes, dentro e fora da sala de aula.

Reduzir o conhecimento ao utilitarismo acrítico; avaliá-lo estritamente, conforme a maior ou menor aplicabilidade ou rentabilidade financeira anunciada pelo diploma parecem ser sintomas de uma mentalidade megaindividualista que endeusa as tecnologias e aplica parcialmente a ética corporativa, mas que perdeu a capacidade de conviver com o outro e que, no âmbito acadêmico, desaprendeu como e por que estabelecer conexões mais espontâneas (e menos desumanas) entre disciplinas, produtos e pessoas.



[1] Cf. Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, 4ª ed., trad. Giasone Rebuá, Rio de Janeiro, Zahar, 1973; Edgar Morin, Cultura de massas no século XX – neurose e necrose, 11ª ed., trad. Maura Ribeiro Sardinha; Agenor Soares Santos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2018. 

[2] João Cabral de Melo Neto, Obra Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, pp. 69-70.

[3] “Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao trivium?”, in Ignês Signorini (org.), (Re)discutir texto, gênero e discurso, São Paulo, Parábola Editorial, 2008, pp. 78-9.
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*  é professor de Cultura e Literatura Brasileira da ECA-USP
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/o-papel-das-ciencias-humanas/ 24/04/2019
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RODRIGO TURIN: POR QUE ESTAMOS MAIS ACELERADOS, SEGUNDO ESTE HISTORIADOR.


 Foto: Kevin Ku/Unsplash
 O peso da tecnologia nas impressões sobre o tempo 

Em entrevista ao ‘Nexo’, Rodrigo Turin comenta impactos da chamada ‘aceleração social do tempo’, que influencia o número de horas que as pessoas passam trabalhando até a vontade de não fazer absolutamente nada na internet

É domingo. Em tese, é um dia livre para “passar o tempo” como quiser.

 O tempo é um só: a métrica de contagem é igual para todos (segundos, minutos, horas, dias e assim por diante).

O que muda são as impressões sobre o tempo, que variam de acordo com uma série de fatores, como condições de trabalho, estilo de vida, gênero, idade e relações sociais. Essas percepções vêm atraindo atenções de especialistas de diferentes áreas, como sociologia, psicologia, neurociência, linguística, filosofia e design.

“Com os avanços tecnológicos recentes, nossa compreensão sobre como percebemos e estimamos o tempo deve abrir novos horizontes”, anuncia o texto da segunda edição da conferência internacional Timing Research Forum, no Instituto de Neurobiologia da Universidad Nacional Autónoma do México, marcada para outubro de 2019.

Quanto tempo perdemos ‘perdendo tempo’

Com o ritmo acelerado das novas tecnologias digitais, algumas atividades cotidianas podem ser vistas como “perda de tempo”.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, esperar o semáforo fechar para atravessar a rua pode demorar até 17 minutos na zona leste (segundo registro do jornal Folha de S.Paulo, em 2017) e pode levar 7 minutos para o trem chegar na linha prata do metrô (de acordo com dados consultados pelo Nexo em 2016). Os paulistanos passam 2 horas e 43 minutos por dia se deslocando na cidade, segundo estudo do Ibope Inteligência de 2018 – isso corresponde a 36 dias ao ano perdidos no trânsito.

Em abril de 2011, cruzando diferentes levantamentos e a expectativa de vida de 71,3 anos no Brasil, de acordo com o IBGE, a revista Mundo Estranho estimou que os brasileiros passam 23 anos, 9 meses e 7 dias dormindo; 1 ano e 10 meses estudando; 3 meses e 3 dias fazendo sexo; e 27 dias e 2 horas esperando o elevador.

Em fevereiro de 2017, o jornal britânico Daily Mail publicou uma reportagem que, a partir de diferentes levantamentos e considerando a expectativa de vida de 80 anos no Reino Unido (cerca de 29 mil dias), indicou que os britânicos passam o equivalente a 26 anos ininterruptos dormindo, 12 anos no trabalho, 3 anos nas redes sociais, 2 anos de ressaca, 588 no trânsito e 117 dias fazendo sexo.

Segundo o relatório “Digital in 2019”, realizado pela agência americana We Are Social e divulgado em janeiro de 2019, os brasileiros passam 9 horas e 29 minutos por dia na internet. A média global é de 6 horas e 42 minutos.

Mas o que é perda de tempo? Há uma linha tênue entre desperdício de tempo e descanso de verdade, que é facilmente confundido com distrações, comenta a jornalista Heidi Stevens, em coluna de setembro de 2015 no jornal americano Chicago Tribune.

“Nós somos inundados por estatísticas e histórias de como somos superocupados e dormimos pouco. [...] Não é de se admirar, então, que procuremos – e encontremos – maneiras de relaxar, frequentemente com ocupações que não acrescentam muito às nossas vidas, como ver fotos do namorado de faculdade no Facebook, jogar Candy Crush e assistir ‘Friends’ na Netflix. Mas isso é bom ou ruim?”, questiona a autora, que defende a importância de descansar, o “downtime” (tempo de inatividade, em português).

No livro "How To Do Nothing", lançado em abril de 2019, a artista americana Jenny Odell propõe dedicar atenção para como nos relacionamos com o mundo, com os outros e nós mesmos. Segundo a autora, a maneira de conseguir essa mudança de consciência é se dar o tempo de fazer nada, literalmente nada relacionado à lógica de produção capitalista: desde observar pássaros até contemplar um jardim, exemplifica a jornalista Marie Sollis, em resenha publicada no portal Vice.

Diferenças entre “perder”, “passar” ou “aproveitar” o tempo são subjetivas e variam segundo a atual aceleração social do tempo – a leitura deste texto, por exemplo, leva cerca de 17 minutos, o que pode ser considerado “muito” ou “pouco”, “útil” ou “inútil”, a depender da perspectiva do leitor.

O que é aceleração social do tempo

A impressão de que o tempo está passando mais rápido, mais acelerado, pode ser estudada nas humanidades a partir do conceito de “aceleração social”, que se refere ao aumento de atividades realizadas em um período de tempo acompanhando as transformações da sociedade. Trata-se, segundo o historiador Rodrigo Turin, de uma “experiência histórica”.

Desde a Revolução Industrial (1760-1860), na Inglaterra, e a Revolução Francesa (1789), iniciou-se um sentimento de aceleração marcado pela busca do “progresso”. As transformações tecnológicas, com o surgimento das fábricas, do telégrafo e do trem, por exemplo, “encurtaram” as noções de tempo e espaço. As rupturas políticas, com o fim da monarquia e a instauração da República, incutiram a ideia de mudar a realidade radicalmente – o próprio conceito de revolução.

Segundo Turin, atualmente estamos vivendo uma nova onda de aceleração, impulsionada pelas tecnologias digitais e pelo sistema financeiro internacional. Essa aceleração agora encontra expressão em palavras como “eficiência”, “flexibilidade” e “produtividade”.

É por isso que nós nos sentimos culpados pela sensação de “perder tempo”, por exemplo, nas redes sociais. Para Turin, a internet pode ser um convite à procrastinação e, ao mesmo tempo, um fator de pressão para produtividade.

Nas grandes cidades, o ritmo acelerado inspirou a oferta de uma série de serviços para “economizar tempo”, como aplicativos de entrega de “tudo” -–até uma cápsula de café, como exemplifica a página do aplicativo Rappi, disponível no Google Play. Assim, a aceleração abriu margem para da chamada “uberização”, expressão do autor britânico-canadense Tom Slee para o fenômeno de precarização das atuais condições de trabalho.

“A relação entre aceleração do tempo e precarização do trabalho é algo cada vez mais estrutural na sociedade. Estamos chegando ao limite fisiológico e psicológico”, disse Turin ao Nexo.

Professor da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e autor de “Tessituras do Tempo” (Ed. Uerj), o historiador pesquisa o assunto no pós-doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Leia abaixo a entrevista concedida ao Nexo por e-mail.

Estamos vivendo um tempo mais ‘acelerado’?

RODRIGO TURIN Sim, estamos vivendo um tempo mais acelerado. Mas é importante especificar a natureza dessa aceleração. As sociedades modernas são essencialmente “aceleracionistas”, isto é, elas se estruturam a partir da produção de um movimento de crescimento e de diferenciação. É o que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss chamou de “sociedades quentes”, por oposição às “sociedades frias”, que se organizam de modo a privilegiar a estabilidade.

A aceleração, portanto, não é algo pontual na nossa sociedade, mas seu próprio fundamento. Todas as nossas instituições e nossa linguagem espelham esse imperativo da aceleração. Precisamos sempre estar em busca do “progresso”, inovando, intensificando o crescimento econômico, tecnológico, cultural. Nas últimas décadas, com as novas tecnologias, as mudanças nas formas de trabalho, a hegemonia do capital financeiro global, esse imperativo aceleracionista ganhou novas dimensões.

A percepção de que a velocidade aumentou se deve ao modo como essas transformações afetam nosso cotidiano. Com os aparelhos tecnológicos, temos acesso a um maior número de informações em “tempo real”, isto é, no momento mesmo em que estão acontecendo. Somos bombardeados constantemente com novas notícias e produtos, sem que tenhamos o tempo necessário para processá-los. As próprias tecnologias parecem já nascer obsoletas, sendo substituídas em intervalos cada vez mais curtos. Torna-se difícil se manter sincronizado com a velocidade dessas mudanças, por isso a sensação de que estamos sempre atrasados. Assim, a aceleração social pode ser entendida como uma contração do presente, promovida pelo aumento de atividades a serem realizadas dentro dos mesmos intervalos de tempo que, no fundo, não se alteram (as 24 horas do dia, por exemplo).

A aceleração estrutura nossa sociedade, mas afeta os indivíduos de formas diferentes, dependendo da classe social, da idade, do gênero e da raça. A aceleração tende a afetar mais as mulheres, por exemplo, do que os homens. Ao entrar para o mercado de trabalho, as mulheres acabam acumulando outras tarefas, como afazeres domésticos e cuidado dos filhos. Essa divisão de tarefas segundo o gênero, construída historicamente, não foi apagada com a inclusão das mulheres no mercado de trabalho. Por isso elas tendem a sentir mais os efeitos da aceleração que os homens.

Por que muitas vezes temos a sensação de estar ‘perdendo tempo’, por exemplo, na internet?

RODRIGO TURIN A sensação de estar “perdendo tempo” se deve à incorporação de um princípio ético que vincula o tempo à dimensão do ganho, da produtividade. O lema “tempo é dinheiro” sintetiza essa ideia.

“Perder tempo”, portanto, nos deixa com a sensação de culpa, como se estivéssemos violando esse imperativo ético. Atualmente, com a intensificação do ritmo de vida, cada vez menos há a divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer, que possibilitava um espaço legítimo para o ócio, o “não fazer nada”.

As demandas aceleradas do mercado de trabalho, associadas às novas tecnologias, fazem com que tenhamos que estar sempre disponíveis, conectados. A internet tem um papel fundamental nisso, pois é o meio principal no qual essa otimização do tempo ocorre. Mas a internet tem igualmente um efeito dispersivo. Navegamos com diferentes páginas abertas, um link nos leva a um novo vídeo, um amigo nos encaminha uma nova reportagem, e assim vamos nos dispersando nesse espaço virtual. Segundo a acadêmica alemã Aleida Assmann, o “presente” na internet dura cerca de 5 minutos. Esse é o tempo médio, por exemplo, que um internauta ocupa assistindo um vídeo do YouTube. Vídeos ou textos maiores do que isso tendem a ser menos consumidos, pois a atenção do internauta já vai ser direcionada a outro objeto.

A procrastinação é, portanto, um dos modos de habitar a internet. Ao mesmo tempo em que o meio virtual permite e mesmo nos cobra uma produção acelerada, ele também nos dispersa com atividades aparentemente inúteis, que adiam ou atrasam aquela produção. O indivíduo entra na internet para resolver uma tarefa específica, mas quando percebe já está navegando em uma página aleatória postada nas redes sociais.

A internet acelera e dispersa, capturando constantemente nossa atenção para diferentes coisas. E isso não é gratuito. Um dos objetivos principais das grandes redes sociais, como o Facebook, é fazer com que os usuários passem a maior quantidade de tempo possível em suas plataformas. Um dos mecanismos que torna isso possível é justamente o fato de elas servirem como uma espécie de “centro de redistribuição”, no qual as informações são atualizadas e repassadas pelos próprios usuários. Nesse sentido, pode-se dizer que a procrastinação na internet é um comportamento induzido e que não deixa de ter um caráter produtivo – pelo menos para as plataformas da internet que oferecem os produtos. Por outro lado, talvez possamos dizer também que a procrastinação serve como uma forma de micro-resistência dos sujeitos, um modo de desobedecer aos prazos, escapar do imperativo da aceleração e, enfim, perder tempo. Afinal, há um limite psíquico para o imperativo da aceleração.

Também recorremos a ferramentas digitais para ‘não perder tempo’, como aplicativos de entrega rápida de diversos produtos. É um paradoxo?

RODRIGO TURIN Esses aplicativos sintetizam o encontro entre a nova fase do capitalismo global e as tecnologias digitais, implicando outras relações de trabalho e de consumo. Eles permitem a criação de uma série de serviços direcionados, supostamente, a nos “poupar tempo” – novamente, a metáfora do tempo como dinheiro.

Por um lado, eles nos dão a impressão de uma maior facilidade e rapidez, nos liberando tempo. Por outro, esse tempo liberado tende a ser “gasto” ou “investido” em novas tarefas, intensificando ainda mais o ritmo de produção e de consumo. É um ciclo de aceleração.

Cada vez mais serão criadas diferentes demandas de serviços, que serão rapidamente atendidas por novos prestadores. Esse ciclo de aceleração implica também uma precarização do tempo, em diferentes sentidos. Primeiro, em função da desregulamentação das relações de trabalho promovida por esses aplicativos. Baseados na figura do indivíduo como empreendedor de si, eles não oferecem a segurança das leis trabalhistas, como férias, por exemplo. Devido à concorrência e ao valor baixo dos serviços, esses indivíduos precisam se ocupar durante mais tempo com suas atividades.

Segundo, do lado do consumo, a precarização se dá seja pela aceleração que produz (tendemos a ocupar o tempo com novas atividades, metas e prazos), seja pelo empobrecimento da relação que mantemos com as pessoas e com o espaço. Ao invés de ir à rua, de percorrer o bairro, conhecendo o farmacêutico ou o garçom, ficamos em casa ou no escritório, sendo atendidos por trabalhadores momentâneos e precarizados. Pode parecer um detalhe, mas essa forma de distanciamento, ou mesmo de alienação, frente aos outros e ao espaço, produz grandes efeitos sociais, como a falta de empatia ou a perda de sentimento de coletividade.

Estamos mais ativos ou mais preguiçosos?

RODRIGO TURIN Não acredito que estejamos mais preguiçosos. Pelo contrário, estamos cada vez mais ativos.

Estudos mostram que dormimos cada vez menos, viajamos cada vez mais, trabalhamos mais horas. Mais do que preguiça, o que talvez caracterize a sociedade atual seja a exaustão. Exaustão de trabalho, de imagens e informações, de tragédias que parecem acontecer cada vez mais rapidamente sem que tenhamos tempo para respirar.

Mas essa exaustão atinge de modos diferentes os grupos sociais. A exaustão de um motorista de ônibus no Rio de Janeiro, que faz bico como motorista de Uber nos finais de semana, certamente não é a mesma exaustão do executivo que passa a semana na ponte aérea, conectado com as variações do mercado financeiro global. Eles têm condições e motivações diferentes.

De todo modo, a relação entre aceleração do tempo e precarização do trabalho é algo cada vez mais estrutural na sociedade. Estamos chegando ao limite fisiológico, psicológico e climático. Alguns podem apostar na fase de um pós-humano habitado por inteligências artificiais, capazes de acelerar indefinidamente. Não me parece uma boa aposta. Eu diria que a questão fundamental hoje é tratar o tempo como um tema central da nossa agenda política, questionando que tipo de tempo queremos como sociedade. Qual o tempo de uma boa vida?
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Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/04/27/Por-que-estamos-mais-acelerados-segundo-este-historiador?utm_campaign=anexo&utm_source=anex