quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

A culpa é da esquerda

Christian Ingo Lenz Dunker*

A culpa é um afeto pouco transformativo. Assim como criticar tornou-se o mesmo que desqualificar e agredir, autocrítica tornou-se sinônimo de admissão de culpa.

Agora que o castelo de areia criado pelo ódio e pela desinformação começa a ser varrido pelas ondas de corrupção e lama que vêm caracterizando as primeiras semanas do governo Bolsonaro, talvez tenha chegado a hora da autocrítica da esquerda. Qual parte lhe cabe nesse latifúndio de miséria, ignorância e regressão? Imagino que vários outros (bem mais qualificados em ciência política e no entendimento de processos institucionais, que efetivamente comandam o chão de fábrica da política) tenham muito mais e melhor a dizer do que eu. Mas aqui vai minha contribuição lateral para esse começo de conversa que teve bons e maus motivos para ser adiada.

Uma das razões para este adiamento decorre do fato de que fazer autocrítica é reconhecer que esta teria sido insuficientemente realizada até então. A tentação de deter o monopólio da crítica tem suas raízes na afinidade histórica entre a esquerda e a invenção de outros modelos de mundo, de vida e de Estado, caracterizando, ainda que provisoriamente, a direita como campo da conservação e manutenção de um determinado estado de coisas. Por isso, reconhecer o atraso nesta matéria não é apenas assunto de correção e ajuste de rota, mas discussão de essências, pertinências e prerrogativas no uso do qualificativo: esquerda. Afinal, o estado natural da esquerda é ou deveria ser a crítica.

A autocrítica, como reverso interno e necessário da crítica, tem também suas patologias. Assim como criticar tornou-se o mesmo que desqualificar e agredir, autocrítica tornou-se sinônimo de admissão de culpa. Desde que certa esquerda chegou ao poder, o afeto político ascendente, neste quadrante, tornou-se a culpa. Culpa por não ser suficientemente representativa e por não estar à altura daqueles a quem se representa. Culpa por representar imperfeitamente aqueles até estão excluídos ou minorizados. Culpa de frequentar universidades, de possuir um pouco ou um muito a mais de capital cultural, social ou econômico. Culpa de pertencer à classe média, de ser elite, ainda que operária, negra, feminista ou LGBTI+. Culpa por sentir que não se está fazendo nada de “realmente relevante” (o que seria isso mesmo?). Culpa porque as mesas de congressos não contemplam proporcionalmente indígenas, ou porque não nos dedicamos de forma mais radical e comprometida à redução do preconceito à da desigualdade social. Culpa porque não exercemos controle crítico do Estado, dos partidos ou grupos que nos são próximos, ou de causas ecológicas e de sustentabilidade. Culpa e sentimento de impostura por invadir o lugar de fala alheio.

A culpa tornou-se afeto característico do sofrimento de classe. Percebe-se, por meio de uma enumeração errática como esta, que isso abriu espaço para a emergência do gozo cínico, que instrumentalizará a culpa alheia dizendo que ela é apenas vitimização, “mimimi” ou ritual narcísico de desimplicação. Creio que Francisco Bosco estava tentando nos alertar para isso. A culpa é um afeto individualizante que trava a ação coletiva. Isso se vê também no fato de que em estado de massa ou de anonimato digital perdemos de vista a função inibidora da culpa, nos tornando assim falsamente corajosos e hipercríticos. O sujeito pode sair orgulhoso do debate ou da reunião de condomínio, por destruir aquele colega que pisou em falso naquela expressão inconveniente ou que se excedeu nos argumentos, mas a disputa em torno da culpa é assim: o que hoje você expurga em cima de outro, amanhã lhe será retribuído em dobro. A anestesia provisória, criada pela superioridade moral vai sendo corroída pela culpa, que precisa cada vez de mais atos de exibição purificadores. Nesse ciclo, quem vence é sempre a culpa. Dois dias depois do #EleNão, perdeu-se a chance de uma virada no discurso, quando embarcamos na conversa da culpa.

Uma determinada culpa existencial, de extração católica, acompanhou a formação da esquerda no Brasil desde a Juventude Universitária Católica (JUC) até as Comunidades Eclesiais de Base. Uma culpa raiz que não servia nem à evasão nem à punição moral. Uma culpa que nos fazia pensar com Antônio Cândido e Alfredo Bosi, com Paulo Freire e Darcy Ribeiro, com João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Gradativamente, o universo dessa “terra em transe” baseada na autocontradição e na angústia que vinha da tomada de consciência sobre o que significa Brasil, derivou para outra economia moral. Mais simples e pragmática, essa nova consciência sedimentou-se na ideia de que culpa é apenas transgressão da norma, e a norma é bem posta, com exemplos claros e distintos.  Aqui se diria que estou falando do neopentecostalismo, mas não é este o caso, pois trata-se de um movimento mais amplo e capilar. É a culpa dos professores impotentes porque lhes impingem mais e mais ideais, com menos e menos condições de cumpri-los. É a culpa dos trabalhadores massacrados por sua própria empregabilidade, dos apaixonados pelo compliance de suas corporações, das relações dietéticas e disciplinares com seus corpos, das relações veementes com seus desejos e palavras, dos axiomas de saúde que nos levam a uma série de pequenas resignações e ao recolhimento em uma vida funcional.

Bem antes de inventarem a Lava Jato – aliás, uma benfeitoria de Dilma – já estávamos culpados. Este é o ponto que quero trazer para a discussão. É certo que o chamado campo progressista, a esquerda ampla, partidária ou comunitária, organizada ou “meio intelectual meio de esquerda”, como formulou Antonio Prata, esquerda “caviar” ou popular, organizada em coletivos ou escrevendo textões nas redes sociais, enfim, todos nós (me incluo nisso) que nos engajamos nesse projeto de mudar a face miserável e faminta do Brasil nos vimos, durante todos estes anos,  diante de coisas que não considerávamos corretas (deixo a lista para a próxima coluna). Mas a atitude era de aposta. Olhávamos para o lado e víamos a barbárie de sempre no outro lado e dizíamos a nós mesmos: melhor assim, porque outra coisa não dá.

O preço por essa união à base do mal menor foi alto. Quando renegamos nossos desejos, quando deixamos de nos implicar com o que queremos, quando barganhamos nossa responsabilidade com relação às nossas aspirações, o resultado é um só: culpa. Para a psicanálise, este é um ponto inegociável: cedeu de seu desejo, pode esperar que a fatura da culpa virá, cedo ou tarde, clara ou obscura. Uma esquerda culpada só pode operar por divisões cada vez mais fragmentadas de si mesmo, buscando saber quem é mais culpado do que eu e eliminando impurezas até chegar à solidão solipsista final. Quando entrei nesta conversa, esquerda era transgressão, confronto e desafio de normas, como bem colocou Kleber Mendonça, na pele de Sonia Braga, em Aquarius. Trinta anos depois, nos acostumamos a jogar para não perder.

Em determinado momento da história, a direita parece ter descoberto essa fragilidade. A coisa começou pela imputação de culpa e imoralidade generalizada. Traição aos ideais éticos praticada pelos líderes. A resposta, ainda que vacilante, confiava na ideia de que a Lava Jato era parte da autocrítica e que, na roleta geral da culpa, a esquerda ainda tinha farto capital moral para gastar. O erro impercebido foi ignorar que do outro lado emergia um adversário que tinha outra gramática para a culpa. Um adversário que fazia política na base da teologia da prosperidade, e na equação de que: se tenho mais, mais me é devido. Isso não é meritocracia, mas autojustificação do poder. É claro que essa retórica exige massiva repressão da culpa. Se você pensou que isso se faz à base do reforço delirante da convicção de que a culpa é do outro e somente do outro, acertou.

Portanto, há um fragmento de verdade na acusação de que faltou autocrítica. Faltou autocrítica e sobrou culpa. Certamente isso influiu nos julgamentos decisivos nos quais começamos a perceber matizes de vingança e parcialidade, bem como personagens “imunes” a culpa. Há um fragmento de verdade no déficit de autocrítica, na impossibilidade de reconhecer erros e na resistência a voltar a trás. Esse fragmento não foi o pedalinho do Lula, mas a gramática da culpa que se viu revertida e assumida pela direita como máquina de guerra. Foi assim que pessoas imorais, indecentes e com ficha corrida na corrupção puderam elevar-se à condição de acusadores. Isso só foi possível porque o lugar do acusador já estava feito, polido e esperando seu novo ocupante.

Quando dizíamos, generalizando o consenso de uma conversa interna, que o outro era fascista, machista, misógino, preconceituoso e homofóbico, nos vimos, estarrecidos e desprevenidos, diante de um interlocutor que dizia: “Sou sim, sem culpa alguma! Aliás, a culpa é do PT!” O argumento transitivista, próprio a toda narrativa de sofrimento, abriu o flanco para ouvirmos: “Se você é feminista, eu posso ser machista! Se você tem direito de achar que a terra é redonda, minha opinião de que a terra é plana tem que ter o mesmo valor e importância!” Essa parasitagem de argumentos, essa instrumentalização retórica talvez não tivesse acontecido se o afeto político hegemônico na esquerda não fosse a culpa.

A culpa é um afeto pouco transformativo. Em geral, assim que achamos o culpado nos desimplicamos do processo. Confundimos culpa e responsabilidade. Ser responsável é reparar, manter-se fiel ao processo, interessar-se pela sua continuidade. Ser culpado é o que basta para punirmos o outro, ou a nós mesmos, pela nossa própria impotência e cair fora. A lógica da culpa serve para esquecermos de nossa responsabilidade e implicação, por isso ela tem uma função catártica: uma espécie de alívio imediato, mas seguido de um aumento gradual da carga de angústia. No longo prazo, é pela culpa que nos devora o superego, este glutão que sempre quer mais, que nos diz sempre que ainda não está bom e que não chegamos… ainda, na perfeição. Quanto mais respondemos ao superego, mais ele pede e mais nos sentimos inadequados, infelizes e impotentes. Gozam pelo superego estes que se apaixonaram pela correção e pela acusação dos impuros. Gozam com a força da lei e com a humilhação do outro o seu parceiro fantasmático. Uma nova nova esquerda pode beneficiar-se com um deslocamento de afetos, permitindo que a autocrítica se separe da imputação de culpa colocando em sua cúspide o desejo de transformação.

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* Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte:  https://blogdaboitempo.com.br/2019/01/31/a-culpa-e-da-esquerda/

DOENÇA

Luis Fernando Veríssimo* 
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Santo Agostinho escreveu que, entre as tentações do homem, nenhuma era mais perigosa do que a "doença da curiosidade". Era ela que nos levava a tentar descobrir os segredos da natureza, "que estão além da nossa compreensão, que em nada nos beneficiarão e que o homem não deve saber". Em outras palavras, o mesmo conselho que Deus deu a Adão e Eva no Paraíso, advertindo-os a não comer o fruto da árvore do saber para não contrair a doença. Eva - sempre elas - não se aguentou e comeu o fruto proibido. Resultado: perdemos o paraíso da ignorância satisfeita e estamos, desde então, tentando descobrir que diabo de universo é este em que nos meteram, esta bola girando entre outras bolas num espaço imensurável, sem manual de instrução. Santo Agostinho e outros tentaram nos convencer a aceitar os limites da fé como os limites do conhecimento. Tentar compreender mais longe só nos traria perplexidade e angústia e nenhum benefício. Mas a doença da curiosidade já estava adiantada demais.

A fase mais aguda da doença chegou com a inauguração, há 10 anos, num subterrâneo na fronteira da Suíça com a França, do tal acelerador gigante que jogaria prótons contra prótons em condições inéditas para tentar reproduzir a origem do mundo, liberar uma partícula subatômica que até então só existia em teoria e chegar mais perto de descobrir como funciona o universo. Quer dizer, os descendentes de Adão e Eva pretendiam levar a rebeldia do casal ao máximo e espiar por baixo do camisolão de Deus. Mas 10 anos e alguns bilhões de dólares depois, fora a importante descoberta da subpartícula presumida chamada bóson de Higgs, o acelerador não tem muito a festejar no seu 10º aniversário. Não vieram o prometido redimensionamento do espaço, a explicação dos buracos negros, revelações sobre a origem de tudo. Etc.

Quanto mais se sabe sobre o funcionamento do universo mais aumentam a perplexidade e a angústia das quais Santo Agostinho quis nos poupar. Pois não se pode compreender tudo - pelo menos não com este cérebro que mal compreende a si mesmo.

Mas os efeitos da fruta proibida ainda são fortes. E a doença da curiosidade não tem cura.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: ZH:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=c680a9953caa17631c79b966c3139467 
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quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

“No Rio de Janeiro a milícia não é um poder paralelo. É o Estado”


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Em entrevista, sociólogo que estuda as milícias há 26 anos explica as relações
entre legisladores e milicianos e diz que a família Bolsonaro
é herdeira política de deputados ligados a grupos de extermínio
nos anos 90

28 de janeiro de 2019
Mariana Simões

    É comum parentes de milicianos serem contratados por deputados, diz pesquisador
    Atuação ilegal de milícias vai desde taxas por extração irregular de areia até venda de combustível adulterado e lixões clandestinos – passando por aliança com tráfico de drogas

Na semana passada, a operação “Os Intocáveis” prendeu integrantes da milícia que opera em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um dos alvos da operação foi o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de chefiar a milícia de Rio das Pedras e integrar o grupo de extermínio Escritório do Crime – atualmente investigado pela morte de Marielle Franco. Sua mãe e sua esposa já trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Flávio também havia homenageado Adriano com a Medalha Tiradentes, a maior honraria concedida pela Alerj.

Mas a notícia não surpreendeu o autor do livro Dos Barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense, José Cláudio Souza Alves. Sociólogo e ex-pró-reitor de Extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio estuda as milícias há 26 anos. Em entrevista à Pública, ele resume, com veemência: “A milícia é o Estado.”

“São formadas pelos próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador. É um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente. Sem essa conexão direta com a estrutura do Estado não haveria milícia na atuação que ela tem hoje,” acrescenta.

Segundo José Cláudio, é comum familiares de milicianos serem empregados em gabinetes de deputados e vereadores. “Isso é muito comum. Esse vínculo lhe dá poder naquela comunidade. Ele vai ser chamado agora na comunidade: ‘Olha é o cara que tem um poder junto lá ao Deputado, qualquer coisa a gente resolve, fala com ele, que ele fala com a mãe e com a esposa e elas falam diretamente com o Flávio e isso é resolvido’”.

Nessa entrevista, ele explica a origem desses grupos e suas ligações com a política: “Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada”.

Leia os principais trechos.

Como nasceram as milícias do Rio de Janeiro?

Isso estourou na época da ditadura militar com muita força. Em 1967 surge a Polícia Militar nos moldes atuais de força ostensiva e auxiliar aos militares naquela época. E a partir daí há o surgimento dos esquadrões da morte. No final dos anos 1960, as milícias surgiram como grupos de extermínio compostos por Policiais Militares e outros agentes de segurança que atuavam como matadores de aluguel.

Esses esquadrões da morte vão estar funcionando a pleno vapor nos anos 1970. Depois começa a surgir a atuação de civis como lideranças de grupos de extermínio, mas sempre em uma relação com os agentes do Estado. Isso ao longo dos anos 1980. Com a democracia, esses mesmos matadores dos anos 1980 começam a se eleger nos anos 1990. Se elegem prefeitos, vereadores, deputados.

De 1995 até 2000, você tem o protótipo do que seriam as milícias na Baixada, Zona Oeste e no Rio de Janeiro. Elas estão associadas a ocupações urbanas de terras. São lideranças que estão emergindo dessas ocupações e estão ligadas diretamente à questão das terras na Baixada Fluminense. A partir dos anos 2000, esses milicianos já estão se constituindo como são hoje. São Policiais Militares, Policiais Civis, bombeiros, agentes de segurança, e atuam em áreas onde antes tinha a presença do tráfico, em uma relação de confronto com o tráfico. Mas ao mesmo tempo estabelecem uma estrutura de poder calcado na cobrança de taxas, na venda de serviços e bens urbanos como água, aterro, terrenos.

Há apoio da população às milícias?

A milícia surge com o discurso que veio para se contrapor ao tráfico. E esse discurso ainda cola. Só que com o tempo a população vai vendo que quem se contrapõe a eles, eles matam. E eles passam a controlar os vários comércios. Então a população já começa a ficar assustada e já não apoia tanto. É sempre assim a história das milícias.

Qual a história de Rio das Pedras?

Rio das Pedras é uma comunidade em expansão onde vivem nordestinos muito pobres. Existem terrenos lá que você não pode construir porque são inadequados, são muito movediços. Então só tem uma faixa específica de terra onde você pode construir. São terras irregulares, devolutas da União, ou terras de particulares que não conseguiram se manter naquele espaço. Então a milícia passa a controlar, toma e legaliza – às vezes até via Prefeitura mesmo, pagando IPTU desses imóveis. Como o sistema fundiário não é regulado, facilmente os milicianos têm acesso a informações e vão tomar essas áreas. E passam a vendê-las.

Rio das Pedras foi a primeira milícia do Rio?

Não é bem assim. Ao meu ver a milícia surgiu em diferentes lugares ao mesmo tempo, simultaneamente. Então tem Rio das Pedras, mas tem Zona Oeste do Rio e tem, por exemplo, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

Eu percebo dos anos 1995 a 2000, grosso modo, um período de emergência dessas ocupações urbanas de terras, ainda não no protótipo de milícias, mas com lideranças comunitárias próximas ao que seria um controle pela violência, um controle político mais autoritário.

Só que Rio das Pedras ela emerge mais rapidamente. Então ali começa esse vínculo da cobrança de taxa, que nas outras ainda não tinha. E são os comerciantes que pagam a eles.

É uma comunidade miserável, empobrecida, que está se constituindo a partir de uma rede migratória de nordestinos. E ela fica diante de um grupo de milicianos que estão sendo chamados para dar proteção, impedir que o tráfico entre. Mas na verdade é para proteger os interesses comerciais desses lojistas que estão se instalado lá em Rio das Pedras e estão financiando esses caras.

Hoje são quantas as milícias do Rio de Janeiro?

Eu tenho noção que são muitas. Por exemplo, são várias que atuam em São Bento e no Pilar, que é o segundo maior distrito de Duque de Caxias. Tem em Nova Iguaçu, tem em Queimada. Praticamente cada município da Baixada Fluminense você tem a presença de milícias. Seropédica, por exemplo, hoje é uma cidade dominada por milicianos. Eles controlam taxas de segurança que cobram do comércio. Aqui tem os areais, de onde se extrai muita areia – e muitos são clandestinos. Então eles também cobram dali. Moto-táxi tem que pagar 80 reais por semana para funcionar. Pipoqueiro paga 50 reais por semana. É uma loucura.

Dizem que é para a segurança, proteção, eles estão supostamente protegendo esse comércio. Mas depois controlam a distribuição de água, de gás, de cigarro, de bebida. E há histórias de assassinato de gente que não aceitou, por exemplo.

Além disso, eles são pagos para fazer execuções sumárias. Então há um mercado que movimenta milhões já há algum tempo.

Eles também lidam com tráfico de drogas, com algumas facções especificas. O Terceiro Comando Puro funciona aqui em algumas cidades da baixada a partir de acordos com milicianos. Eles fazem acordo com o tráfico e vão ganhar dinheiro também disso. Cobram aluguel de áreas. É a mesma relação que a polícia tem com o tráfico: só funciona ali se você pagar suborno.
Mariana Simões/Agência Pública

Segundo José Cláudio, sociólogo e pró-reitor de Extensão da UFRRJ, é comum familiares de milicianos serem empregados em gabinetes de deputados e vereadores

Na cobertura feita pelos jornais sobre a operação “Os Intocáveis”, eles citam o Escritório da Morte, um grupo de extermínio que é contratado para matar. Isso é comum?

Sim. Nunca ouvi falar de milícia que não tivesse a prática de execução sumária. Normalmente a milícia tem uma equipe ou um grupo responsável por execuções sumárias. O comerciante que não quiser pagar, o morador que não se sujeitar a pagamento do imóvel que ele comprou, qualquer negócio e discordância com os interesses da milícia, esse braço armado é acionado e vai matar.

A novidade da milícia é o leque de serviços que eles abrem além da execução sumária e da segurança. Aí é tudo: água, bujão de gás, “gatonet”, transporte clandestino de pessoas, terra, terrenos, imóveis. A milícia não fica agora fixa em grandes comerciantes ou grandes empresários. Ela pulveriza isso. Eles vão sofisticando também na administração do gerenciamento.

Em que outros negócios ilegais os milicianos atuam?

Lá em Duque de Caxias eles roubam petróleo dos oleodutos da Petrobras e fazem mini destilarias nas casas das pessoas. Tudo ilegal, com um risco imenso. Aí vendem combustível adulterado. Eles fazem aterros clandestinos no meio daquela região com dragas e tratores e vão enterrando o lixo de quem pagar. É mil reais por caminhão. Não importa a origem. Pode ser lixo contaminante, lixo industrial, lixo hospitalar. Eles fazem aterros clandestinos nesta região.

A milícia tem controle também sobre bens públicos, como aterros, e eles se apropriam desses espaços para fazer atividades ilegais…

A base de uma milícia é o controle militarizado de áreas geográficas. Então o espaço urbano, em si se transforma em uma fonte de ganho. Se você controla militarmente, com armas por meio da violência esse espaço urbano, você vai então ganhar dinheiro com esse espaço urbano. De que maneira? Você vende imóveis. Por exemplo, você tem um programa do governo federal chamado Minha Casa Minha Vida. Você constrói habitações. Aí a milícia vai e controla militarmente aquela área e vai determinar quem é que vai ocupar a casa. E inclusive vai cobrar taxa desses moradores.

Em outra área eles estão vendendo imóveis e estão ganhando dinheiro com essa terra, que é terra da União ou terra de particulares. Então esse controle militarizado desses espaços, é a base da milícia. Aí como eles sabem dessas informações? Eles sabem dentro da estrutura do Estado.

Você pode ter um respaldo político para fazer isso. Vou dar um exemplo para você. Em Duque de Caxias, um número razoável de escolas públicas não é abastecido pelo sistema de água da CEDAE. A água não chega lá. Como que essas escolas funcionam? Elas compram caminhões pipa de água. Quem é o vendedor? Quem é que ganhou a licitação para distribuição de água em um preço absurdo por meio desses caminhões pipa? Gente ligado aos milicianos. Então aí você tem um vínculo com os serviços públicos – e é uma grana pesada – a que passa pelo interesse político daquele grupo dentro daquela prefeitura que vai se beneficiar de uma informação e vai ganhar dinheiro com isso.

A Baixada e o Rio de Janeiro são grandes laboratórios de ilicitudes e de ilegalidades que se associam para fortalecer uma estrutura de poder político, econômico, cultural, geograficamente estabelecido e calcado na violência, no controle armado.

A milícia surgiu no Rio de Janeiro pela ausência do Estado?

Há uma continuidade do Estado. O matador se elege, o miliciano se elege. Ele tem relações diretas com o Estado. Ele é o agente do Estado. Ele é o Estado. Então não me venha falar que existe uma ausência de Estado. É o Estado que determina quem vai operar o controle militarizado e a segurança daquela área. Porque são os próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador, é um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente.

Eu sempre digo: não use isso porque não é poder paralelo. É o poder do próprio Estado.

Eu estou falando de um Estado que avança em operações ilegais e se torna mais poderoso do que ele é na esfera legal. Porque ele vai agora determinar sobre a sua vida de uma forma totalitária. E você não consegue se contrapor a ela.

Mas, por outro lado, quem elege os políticos milicianos é a população….

Não venha dizer que o morador é conivente, é cúmplice do crime. Esse pessoal elegeu o Flávio Bolsonaro, que agora se descobriu que ele tem possivelmente vínculos com esses grupos? Elegeu. Mas que condições que essas pessoas vivem para chegar nisso? Essas populações são submetidas a condições de miséria, de pobreza e de violência que se impõem sobre elas.

Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada.

Três gestões do PT no governo federal, 14 anos no poder, não arranharam essa estrutura. Deram Bolsa Família, vários grupos políticos se vincularam ao PT e se beneficiaram, mas o PT não alterou em nada essa estrutura. O PT fez aliança eleitoral, buscou apoio desses grupos.

Como você mencionou a história do Flávio Bolsonaro: o que liga o gabinete de um político a um miliciano, como foi no caso dele com a mãe e a esposa do Adriano Magalhães da Nóbrega?

O discurso da família Bolsonaro, a começar pelo pai já há algum tempo, e posteriormente o pai projetando nos filhos politicamente. Eles são os herdeiros do discurso de um delegado Sivuca [José Guilherme Godinho Sivuca Ferreira, eleito deputado federal pelo PFL em 1990], que é o cara que que cunhou a expressão “Bandido bom é bandido morto”, de um Emir Larangeira [eleito deputado estadual em 1990], do pessoal da velha guarda, do braço político dos grupos de extermínio.

Esse discurso se perpetuou e se consolidou. É claro que os milicianos vão respaldar esse discurso e vão se fortalecer a partir dele. É o plano de segurança pública defendida na campanha eleitoral do Bolsonaro. Ele diz o seguinte: Policiais Militares são os heróis da nação. Policial Militar tem que ser apoiado, respaldado, vai ganhar placa de herói.

E será respaldado pela lei, através do excludente de ilicitude. Está lá no programa do Bolsonaro. Então você tem setores que desde a ditadura militar sempre operaram na ilegalidade, na execução sumária, vão escutar esse discurso. É música para o ouvido deles.

Não é à toa que o Flávio Bolsonaro fez menções na Assembleia legislativa, deu honrarias para dois desses milicianos presos.

Para além desse discurso simbólico, você vê também uma ligação financeira dos milicianos com os políticos?

Você tem uma operação por dentro da estrutura oficial política. Por exemplo, em Duque de Caxias você tem registro geral de imóveis de terra que são da União. Tem milicianos que vão levantar no cadastro geral de imóveis da prefeitura, os imóveis que estão irregulares, sem pagamento há muito tempo de IPTU. Esse miliciano começa a pagar o IPTU, parcela a dívida, quita e pede para transferir para o nome dele aquele imóvel. A prefeitura transfere. É um processo simples isso. Aí depois aquele proprietário não vai ter nunca coragem de exigir aquele imóvel de volta, porque está controlado militarmente.

Sem esses elementos, sem esses indivíduos, sem essa conexão direta com a estrutura do Estado, não haveria milícia na atuação que ela tem hoje. É determinante. Por isso que eu digo, que não é paralelo, é o Estado.

E tem políticos que estão sendo eleitos com essa grana. A grana da milícia vai financiar o poder de um político como Flávio Bolsonaro e o poder político de um Flávio Bolsonaro vai favorecer o ganho de dinheiro do miliciano. Isso roda em duas mãos. É determinante então que essa estrutura seja assim. Ela só se perpetua porque é assim.

É comum casos como a mãe e a esposa de Adriano Magalhães de Nóbrega, que foram contratadas como assessoras no gabinete de Flávio Bolsonaro?

Sim. Isso é muito comum. Você cria um vínculo de poder e de grana com essas pessoas. Esse cara, a partir de sua esposa e de sua mãe, cria um vínculo imediato com o Flávio Bolsonaro e isso lhe dá força. Essas duas pessoas estão fazendo um elo imediato, pessoal, familiar do Adriano com Flávio Bolsonaro. Esse vínculo lhe dá poder naquela comunidade. Ele vai ser chamado agora na comunidade “Olha é o cara que tem um poder junto lá ao Deputado, qualquer coisa a gente resolve, fala com ele, que ele fala com a mãe e com a esposa e eles falam diretamente com o Flávio e isso é resolvido”.

Assim você está criando uma estrutura de poder, que é familiar. Veja bem: é o que eles defendem. Eles [os Bolsonaro] defendem a estrutura familiar. E se você investigar um pouco mais vai ser religioso também. São igrejas evangélicas, eles têm vínculo com essa estrutura. Então é uma estrutura perfeita, ela é tradicional, conservadora, ela tem a linguagem religiosa, que é linguagem de grande credibilidade.

Isso também demonstra uma forma de atuar dessas pessoas. Eles não atuam pelo ocultamento. O Adriano, Flávio Bolsonaro, o próprio Bolsonaro, os matadores da Baixada. Todos esses grupos que lidam com a violência, com a execução sumária, com o crime organizado, eles não atuam com baixo perfil.

No Brasil o que você tem é a superexposição. Eu chego e já digo. “Eu sou o cara, eu sou o matador, eu tenho vínculos com fulano, beltrano e sicrano. Eu ocupo este cargo”. Que é pra deixar bem claro se você for tentar alguma coisa é isso que você vai enfrentar.

É a base total do medo. E não é só do medo: é real.

Sobre esse capital político, eles têm o poder inclusive de manipular o voto da população durante o período das eleições? Existe uma rede organizada para isso?

Na verdade, as milícias vendem votações inteiras de comunidade. Aqui na Baixada como um todo, Zona Oeste. Fecham pacote. Eles têm controle. Eles têm controle preciso de título de eleitor, local de votação de cada título de eleitor, quantos votos vai ter ali. Eles são capazes de identificar quem não votou neles.

Mas não está havendo ações de desmontagem dessa estrutura, como se viu em Rio das Pedras?

Assim, a Operação Intocáveis pode estar dentro de um perfil mais de uma operação mais histórica. Mas eu tenho sido muito crítico a esse tipo de operação. Como a milícia é uma rede, uma rede muito grande, para cada um preso você tem 100 para entrar no lugar. Porque se você mantém a estrutura funcionando, economicamente, politicamente ela vai se perpetuar.

Ninguém toca nesses caras. Em geral, só estão tocando no tráfico. E tráfico não é o mais poderoso. Milícia é mais poderosa do que o tráfico. Milícia se elege, tráfico não se elege. A base econômica da milícia está em expansão, não é tocada, não é arranhada. Traficante não, vive morrendo e sendo morto e matando. Milícia é o Estado.

Inclusive tem isso. Você olha para a cara dos milicianos presos, há uma tendência a serem brancos. Não há uma tendência a serem negros. Vai aparecer um ou outro no meio, um moreno, pardo. E não são magros, são bem alimentados. Eu tenho certeza que a classe da qual pertencem os milicianos é uma classe diferenciada da classe do tráfico. Não são tão pobres assim. Não são tão negros assim. Não são tão periféricos assim.

Para além desse vínculo político de poder existe também algum elo financeiro? Como que os milicianos movimentam dinheiro através dessas conexões com políticos? Qual era, por exemplo, o papel do Queiroz ali no Gabinete do Flávio Bolsonaro?

Ah sim, você viu que ele tem uma movimentação suspeita alta. Tem 7 milhões. Aí você vai por dedução. Pode ser que esse cara fazia uma ponte. Ele era um assessor, mas ao mesmo tempo ele cumpria duas funções. Ele ganha um respaldo político do Flávio Bolsonaro. Ele faz o elo direito da milícia com esse gabinete. Dos interesses dessa milícia e dos que são servidos por essa milícia direito com esse gabinete. Ao mesmo tempo ele cresce na estrutura da milícia.

Não sei qual é o histórico dele. Mas de repente ele já estava na estrutura da milícia e já movimentando dinheiro. Então, por exemplo, se ele for uma frente, um cara que está na organização, por exemplo, de cobrança de taxa de segurança, ele está movimentando dinheiro. Muito dinheiro. Aí de repente ele vai movimentar parte desse dinheiro dentro da sua conta pessoal. É uma estrutura de organização que ele criou. Então esses 7 milhões pode ser isso.

Isso também pode ser apenas uma transação entre várias?

Isso é uma ponta. Isso é uma ponta de um iceberg. O que eu gostaria muito é que se investigasse isso. Você chegaria em algo muito maior.

Sobre o caso da Marielle. O caso voltou aos holofotes essa semana porque os milicianos, que foram presos na operação “Os Intocáveis” integravam o Escritório do Crime, grupo suspeito de envolvimento na morte da Marielle. No final do ano passado, o secretário de Segurança Pública do Rio, Richard Nunes, afirmou que o assassinato teria relação com grilagem de terras. Você acha que a morte dela se deu porque ela atrapalhava os negócios dos milicianos?

Tem dois vínculos. Há esse vínculo de incomodar e prejudicar o interesse deles. Ela tinha poder para prejudicar, puxar uma CPI, exigir uma investigação para obrigar o Estado e a mídia como um todo a se voltar para isso. Se ela reproduzisse o que o Marcelo Freixo fez em 2008, dentro da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, ela daria essa expressão. Ela tinha o respaldo do Marcelo, então há uma base política que sustenta Marielle, uma base não comprometida, não vendida. Então ela é uma figura que ameaça.

E o outro elemento é ela ser mulher. E ela ser uma mulher de uma atuação bastante intensa, verdadeira e não amedrontável. Ela encarava, enfrentava. Ela nunca se subordinou. E eles não suportam mulheres com esse perfil, essa é a verdade.

Marielle Franco, Patrícia Acioli, que foi assassinada também, e Tânia Maria Sales Moreira que foi promotora aqui em Duque de Caxias que era jurada de morte, mas morreu de câncer. Essas três, elas têm esse perfil. São mulheres com muita coragem, muita determinação, muita verdade do lado delas, elas não se subordinam, não se submetem. Esse tipo de mulher esses caras não suportam. Eles vão eliminar. Há uma misoginia total aí que eles não aceitam que qualquer mulher os trate assim.

Desde o início eu cantei a pedra: quem matou são grupos de extermínio e estão muito associados a milicianos. É a prática desses grupos.
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Fonte: https://apublica.org/2019/01/no-rio-de-janeiro-a-milicia-nao-e-um-poder-paralelo-e-o-estado/

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A LUTA PELAS ALMAS


Leandro Karnal

Resultado de imagem para DEus eo diabo - machado de assis

O cérebro humano continua mais complexo do que religiosos, políticos e professores imaginam

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

O obscurantismo do século 21

Cabeça nas nuvens

Tempos irracionais 

 Ninguém pode ter “opinião” sobre a existência da gravidade

Salvador Nogueira
Movimentos antivacinas, negação das mudanças no clima, terraplanistas. Tais retrocessos vêm da confusão entre o que é 
opinião e o que é fato.
O obscurantismo do século 21 é um fenômeno global. Para alguns arautos da irracionalidade, aliás, a palavra “global” nem faz sentido. É o caso dos terraplanistas [acreditam que o planeta Terra seja plano e não redondo], que seguem colecionando adeptos. Em outubro de 2018, um grupo de “pesquisadores” terraplanistas foi recebido por deputados estaduais na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, onde ganharam uma homenagem por seus “estudos” sobre a forma do nosso planeta.
O terraplanismo é folclórico. Rende risadas. Mas o fato de sandices como essa ganharem popularidade não tem a menor graça. Por duas razões. Primeiro porque trata-se de um sintoma de que parte significativa da população viva hoje desconhece fatos objetivos sobre o mundo – como a Lei da Gravitação, que os terraplanistas dizem ser uma farsa. Segundo, porque estamos descobrindo que quase ninguém sabe distinguir fatos de opiniões – você simplesmente não pode ter uma “opinião” sobre o formato da Terra ou sobre a existência da gravidade. Isso pertence ao reino dos fatos. O pior, de qualquer forma, é que isso definitivamente não se aplica só a conceitos como o formato da Terra.
Uma pesquisa do Pew Research Center, feita em 2018, entrevistou 5.035 americanos adultos selecionados aleatoriamente pela internet. Tudo que eles tinham de fazer era ler dez frases simples e apontar se eram afirmações factuais ou opiniões. Apenas 26% foram capazes de apontar corretamente as cinco factuais e só 35% conseguiram identificar corretamente as cinco que eram opinativas. Resumindo a ópera, três em cada quatro americanos não sabem separar fato de opinião. Poucos acreditariam que no Brasil a situação seja muito melhor. E isso explica muita coisa.
Ou você nunca ouviu alguém dizer por aí, pelas redes sociais,
quando encurralado pelos fatos, que
“essa é a minha opinião”,
como forma de encerrar um debate?
A partir do momento em que as pessoas se sentem à vontade para desconectar suas opiniões dos fatos objetivos, temos um problema grave. A Terra plana é entretenimento, mas e o movimento antivacinas? A Europa viu um aumento de 400% no número de casos de sarampo em um ano – de 5.273 em 2016 para 21.315 em 2017.
E mesmo quando defensores do movimento antivacinas são confrontados com esses números, e com a explicação clara de como vacinas funcionam e de como simplesmente não há evidência de que elas possam causar os males que se atribuem a elas, ainda assim eles podem se esconder por trás de teorias conspiratórias sobre a “malévola indústria farmacêutica”. E, claro, quando não houver outro recurso, parte-se para um “mas essa é a minha opinião”. Eita.
Ao longo do progresso fantástico realizado pela humanidade durante o século 20, fomos nos esquecendo do que era a vida antes que a ciência entrasse para valer no nosso cotidiano. Sem vacinas e antibióticos, a mortalidade infantil era altíssima. Durante o século 19, ela era de 30%; a cada três crianças nascidas, uma morria antes de completar cinco anos. Na Alemanha chegava a 50%.
Então a ciência entrou em cena, com três contribuições essenciais:
 
* a percepção de que saneamento básico era essencial para evitar infecções,
* o desenvolvimento dos antibióticos e
* a criação das vacinas.
O ser humano passou milhares de anos tentando proteger sua prole com rezas, chás e superstições de todo tipo, mas o que deu certo foi entender como as doenças funcionam e combatê-las com armas eficazes.
Ao longo do século 20, pela primeira vez na história, vimos um declínio acentuado na mortalidade infantil. Em 2015, ela era, em termos globais, de 4,3%. Ou seja, a cada cem crianças, apenas quatro morriam antes de completar 5 anos. E isso numa média tirada do mundo inteiro. No Brasil, no mesmo ano, era só de 1,7%. Na Suécia, dado de 2014, 0,3%.
Outro tema adorado pela turma do “mas essa é a minha opinião” é a mudança climáticaPouco importa que:
 
a) a Nasa e quem mais for apresente fartas evidências do aquecimento global.
b) Pouco importa que os registros de temperaturas, feitos com termômetros (pouco afeitos a ideologias), apontem que a temperatura média do planeta já subiu 0,9°C entre 1880 e 2017.
c) Pouco importa que 17 dos 18 anos mais quentes nos 138 anos de registros tenham acontecido depois de 2001, ou que
d) 2016 tenha sido o ano mais quente de todos os registros.
O sujeito espera a primeira brisa gelada soprar para dizer “cadê o aquecimento global?”. É dramático, e se trata de um problema que está ganhando proporções cada vez maiores. Não é mais o seu primo doido no WhatsApp. É o Ministro das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] que atribui às medições feitas pela Agência Espacial dos Estados Unidos o status de “complô ambientalista globalista esquerdista sei-lá-mais-o-que-ista”.
Da mesma forma, vemos o descalabro nas políticas de saúde. Basta lembrar a quantidade de dinheiro que o SUS (Sistema Único de Saúde) gasta em “práticas alternativas”, também conhecidas como “tratamentos sem qualquer evidência de eficácia”. É homeopatia, acupuntura, aromaterapia, bioenergética, cromoterapia, florais; tudo pago com dinheiro público. Em 2017, foram R$ 17,2 bilhões nisso.
É o tal negócio:
o sujeito pode acreditar no que quiser. É direito dele.
Mas ninguém pode aplicar crenças pessoais no âmbito da gestão pública.
E estamos chegando num ponto em que agentes públicos se sentem à vontade para ditar políticas de acordo com premissas completamente desconectadas da realidade objetiva. Tudo não passaria de um escândalo embaraçoso, não fosse um detalhe: essas atitudes nunca tiveram tanto apoio popular.
Como é possível? Hoje, qualquer um de nós tem mais informação disponível nas mãos, com um celular e uma conexão 4G, do que tinha o presidente dos Estados Unidos na Casa Branca nos anos 1960.
É um disparate imaginar que, diante do tamanho poderio tecnológico 
de que dispomos, estejamos ficando, na média, cada vez mais 
desinformados e ignorantes.
No entanto, é verdade.
E só vamos desarmar essa arapuca se encontrarmos uma base comum de fatos objetivos com os quais todo mundo possa concordar. Essa base só pode ser uma: a ciência. E não porque ela seja moralmente ou ideologicamente superior. Mas porque ela se aceita como falível. Porque está fundamentada na dúvida, não na certeza. E a certeza inabalável, imune aos fatos, é o caminho mais curto para o retrocesso.
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Fonte:  https://super.abril.com.br/opiniao/o-obscurantismo-do-seculo-21/

A lei está do nosso lado

Paulo Ghiraldelli Jr.

O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, em cerimônia de sua posse, em Brasília - Eduardo Anizelli - 2.jan.19/Folhapress

Temos o direito e o dever de ensinar o marxismo

O ministro da Educação do governo Bolsonaro é colombiano. Talvez não tenha tido tempo, nem interesse, em ler a Constituição do país em que vive, o Brasil. Nela há um item importante que parece que ele desconhece: "Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber". Todavia, duvido que o ministro da Educação não tenha imaginado isso a respeito da nossa Carta Magna, pois há algo bem parecido na Constituição da Colômbia.

Desse modo, suas falas dizendo que o serviço do MEC é combater o "marxismo" ("cultural"?), tudo leva a crer, são inconstitucionais. Nós, professores, temos o direito de ensinar o marxismo e temos o dever de, em caso de sociologia, fazê-lo junto com o ensinamento de outros clássicos, especialmente Weber e Durkheim.

Mas temos o direito, também, de pautar nossas ações pelo marxismo --pois é um corpo de ideias que já pertence às análises mais diversas, e está incrustado em nossa prática cotidiana, inclusive das instituições.

Ninguém poderia se dizer bem formado por uma universidade saindo dela sem saber fazer uma análise social informada pela existência de classes sociais e de conflito de classes. Uma pessoa assim, ignorante de um marxismo básico, seria empregada onde? Uma pessoa assim estaria aquém das necessidades do mercado de trabalho. Imagine um médico que não sabe como surgiram os conceitos de classe, de luta de classes, de direita e esquerda?

Um médico assim talvez imaginasse que o nazismo fosse de esquerda! E quando alguém dissesse para ele que os pobres deveriam ser atendidos, ele gritaria no meio do corredor: "Isso é coisa que já ouvi na esquerda, é o Hitler!". Daí a outras imbecilidades haveria menos que um passo.

Já imaginou um executivo, um engenheiro ou um jornalista ignorantes quanto à ideia de uma sociedade sem Estado, nascida, entre outros, da cabeça de Marx? Tomariam o Estado como algo natural, como uma árvore. Não imaginariam utopias. Seriam tacanhos em suas tarefas empresariais e empregatícias!

Nossa Constituição não garante a liberdade de cátedra apenas para garantir a liberdade, mas também para proteger a nação da imbecilidade.

Entender a época em que vivemos é, hoje, uma necessidade não mais do verniz de classes abastadas. É entender o que se pode fazer no âmbito de uma vida burguesa, que é a nossa vida. Temos de entender a modernidade porque somos modernos e porque nossa própria sobrevivência é dependente desse nosso entendimento.

"É triste ver o Brasil tendo que ter gente como eu gritando pelo óbvio e tendo de invocar a lei (e o bom senso) 
contra as autoridades que não a conhecem. 
Jamais imaginei que um dia fôssemos 
chegar a isso!"

Os clássicos contemporâneos das ciências humanas nos colocam de modo apto a manter nosso mundo funcionando. A universidade é o lugar para o qual vamos para nos habilitar a melhor viver. Não vamos viver melhor se não pudermos compreender os clássicos. Marx está entre eles, como Platão ou Machado de Assis ou Newton ou a Bíblia.

É triste eu ter que escrever isso, o óbvio. É triste ver o Brasil tendo que ter gente como eu gritando pelo óbvio e tendo de invocar a lei (e o bom senso) contra as autoridades que não a conhecem. Jamais imaginei que um dia fôssemos chegar a isso!
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*Professor da ECA-USP e autor, entre outros livros, de "Dez lições sobre Sloterdijk" (Vozes, 2018)
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/01/a-lei-esta-do-nosso-lado.shtml 28/01/2019

“Elixir da juventude”. Nova terapia contra o envelhecimento chega em quatro anos

 
Marta Leite Ferreira
 
Estamos a viver mais, mas nem sempre melhor. Novos medicamentos prometem livrar-nos das doenças da idade. Talvez nos possam rejuvenescer. Será este um mergulho na Fonte da Juventude?
Os dois ratos no laboratório de Jan van Deursen, investigador na Mayo Clinic, são do mesmo sexo, têm a mesma idade, vieram do mesmo criador e têm o pelo exatamente da mesma cor. Estão os dois velhos, mas não podiam ser mais diferentes: o primeiro tem cataratas, sofre de artrite, o pelo está mais fino e a coluna mais curvada; o segundo vê perfeitamente bem, não tem artrite, o pelo ainda é frondoso e a coluna está saudável. Porquê?

Porque esse segundo rato foi injetado com aquilo a que o Citi GPS — ramo do banco norte-americano Citigroup que estuda as grandes tendências na economia, ciência e tecnologia — chama de “Fonte da Juventude”: uma nova classe de medicamentos que manipulam as células do corpo humano para travar o envelhecimento do organismo ou, pelo menos, erradicar muitas das doenças que surgem com o avançar da idade. Chamam-se senolíticos e são uma das invenções disruptivas consideradas mais promissoras para o futuro porque parece ser capaz de “puxar o tempo para trás”.

A Food and Drug Administration (FDA), a agência federal que analisa e aprova medicamentos nos EUA, aprovou uma dessas terapêuticas, que já está em laboratório a ser estudada em pessoas com problemas nos joelhos. As expetativas são tão altas que o Citi prevê que essa terapêutica esteja no mercado em 2023. Ou seja, é possível que dentro de quatro anos já se possa viver não só durante mais tempo, mas também com menos dor e doenças crónicas. Mas será que o remédio que funcionou em ratos também vai ser bem sucedido em humanos? Não se sabe ainda. Mas vamos descobrir ainda este ano.

FONTE:  https://observador.pt/especiais/elixir-da-juventude-nova-terapia-contra-o-envelhecimento-chega-em-quatro-anos/# 28/01/2019

Leia um excerto de ‘O Processo Violeta’, o novo romance de Inês Pedrosa

Lisboa, 17/03/2016 - A escritora Inês Pedrosa fotografada esta tarde em Lisboa. Inês Pedrosa 
(Gerardo Santos / Global Imagens)
‘O Processo Violeta’ é o novo romance de Inês Pedrosa e o primeiro que a escritora edita pela Porto Editora.

Neste livro, a autora inspira-se na história real de uma professora americana que, nos anos 90, se apaixonou por um aluno adolescente, 22 anos mais novo, de quem engravidou. Acabou por ser condenada a sete anos de prisão. Quando foi libertada casou-se com o aluno e hoje são pais de duas raparigas.

No livro de Inês Pedrosa a história passa-se no Portugal do final da década de 1980, entre Violeta, uma professora de 32 anos, e o seu aluno Ildo, de 14 anos, filho de uma mãe solteira cabo-verdiana, e do qual engravida. O Insubmisso, novo jornal de uma elite em ascensão, perseguirá a história e descobrirá que o pai de Ildo é um cavaleiro tauromáquico aristocrata. Ao mesmo tempo que o escândalo produz o que se designará de “processo Violeta”, Ana Lúcia, amiga de Violeta, oculta, num silêncio absoluto, a sua violação por um outro aluno de 14 anos da mesma escola.

‘O Processo Violeta’ é lançado no próximo dia 24 de janeiro e, até lá, o Delas.pt desvenda-lhe um pouco mais sobre este romance, através da pré-publicação, em parceria com a Porto Editora, de um excerto de um dos seus capítulo.

Leia, em baixo, um pequeno trecho do novo livro de Inês Pedrosa.



Capítulo 13

“Também a Lua parecia grávida – uma grávida feliz, luminosa, inatingível, espalhando tranquilidade sobre um planeta carregado de vidas pequenas e rápidas. Deitada no colo de Ildo, no banco traseiro da sua carrinha familiar, Violeta concentrava-se em parar o tempo.
– Não era bom, ficarmos assim para sempre?

Ildo acariciava os cabelos da amada, maravilhado com o fulgor vermelho que o luar acentuava neles, mas não sabia que responder, porque tinha o princípio de nunca mentir a Violeta. E a verdade é que a expressão «para sempre» o amedrontava. Vivera ainda tão pouco. Queria experimentar voar de asa-delta, conduzir uma mota a alta velocidade, subir à Torre Eiffel onde Violeta já estivera com o marido, tornar-se o melhor toureiro do universo. Sentia um amor incondicional por Violeta, mas não sabia se queria que esse amor durasse para sempre. Para sempre era demasiado tempo. A ideia angustiava-o. Lembrava-lhe a morte. Pensou: «Para sempre são os mortos no cemitério», mas não o disse. E pensar em frases que não dizia a Violeta incomodava-o; era como se a traísse. Mas não o traíra ela, antes de o conhecer? Ela dormira com vários homens e deitava-se todas as noites com o marido. Ela já vivera o suficiente para enfrentar o para sempre – ele não vivera nada.

– Hoje estás muito calado, querido.

Então o rapaz disse:

– Amo-te. Já o dissera tantas vezes que se tornara uma afirmação branca, como a Lua. E de todas as vezes lhe parecia imóvel e inconsequente, como a Lua. Uma acção verbal que desaparecia com o próprio acto de fala. Como uma corrida, que só existe enquanto alguém está a correr. O abstracto amor, como a abstracta amizade, existia sem ser visto nem ouvido, circulava, invisível, entre as pessoas e para lá das pessoas. A expressão «amo-te» sumia-se assim que se pronunciava; era como que um antídoto à presença silenciosa do amor. Parecia que as palavras bonitas se gastavam mais depressa do que as outras.

– Porque é que os homens nunca mais foram à Lua? – perguntou.

– Porque era muito caro, e não havia lá nada para fazer. Nem um centro comercial, nem um cinema, nem um jardim. Nada.

– Acariciando os dedos de Ildo, cachinou como uma menina pequena. Nos braços de Ildo, Violeta transfigurava-se numa criança. Queria ser uma adolescente, mas já não sabia como. Aquela infância postiça pesava no colo do rapaz.

– Gostava que fosses da minha idade – deixou ele escapar. Violeta sobressaltou-se e sentou-se, olhando-o nos olhos, de muito perto, para apagar a revoada de jovens e solícitas cavaleiras que se interpunham entre o seu rosto e o do amado.

– Achas-me velha, é isso?

– Não, Vi, não estás a perceber; acho-te demasiado nova, às vezes.

Violeta tornou a soltar uma gargalhada artificial e disse que não fazia mal, desde que Ildo tomasse conta dela. As cavaleiras gargalharam em uníssono, circulando em redor do automóvel com os seus corpos afrontosamente formosos de deusas tenras, experientes em impiedade.

– Gostava de passear contigo. De ir mais vezes contigo ao cinema. De estar em casa contigo. Gostava que pudesses voltar a estudar comigo – respondeu o rapaz.

Ficavam com tão pouco, depois dos beijos e do sexo. Tão pouco para recordar. O sexo era muito bom, mas esquecia-se depressa quando não havia mais nada. Violeta percebeu-lhe o lado de fora da tristeza e, procurando arredar a matilha de amazonas, declarou:

– Que se lixe. Vamos passear.”
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Fonte:  https://www.delas.pt/o-processo-violeta-ines-pedrosa-escritora-novo-romance/ 20/01/2019